Provérbios 28:1
O
regulamento -ou ordem judicial vigente-parece não interessar muito aos
efeitos estéticos propostos pelos irmãos Coen. Ainda mais se essas
ordens puderem interferir diretamente no convívio cotidiano-para os Coen
a ordem não explica os fatos nem o porque das conseqüências, a lei que é
uma seqüência da falta de ordem. Ou melhor, sendo examinada toda a
carreira dos cineastas, não há causas determinantes e sim efeitos
desestruturados. Na maioria das personagens que habitam suas fábulas, a
falta de um regulamento específico os faz criar um código de conduta
próprio (vide os inúmeros crimes cometidos em filmes como Gosto de
Sangue, Fargo, E Aí, Meu Irmão, Cadê Você?, A Roda da Fortuna), embora
esse não seja definitivo nos fatos que marcarão suas vidas, se o
indivíduo age de acordo com seu histórico perceptivo subjetivo, o acaso é
que determina seus efeitos, em um eterno onipresente de consequências
aleatórias. O que fica implícito em Onde os Fracos Não tem Vez, onde não
há vergonha e até um certo exibicionismo voyeurístico da tragédia
catártica ocasionada pelo vazio (ou acaso, ou cosmos, ou Deus). O que
rege os filmes com essa marca na obra dos Coen, é que não há uma
divergência ideológica simplista instituída, apenas menção das
personagens que querem pertencer a algo (como Larry em Um Homem Sério, e
Javier Bardem em Onde os Fracos Não Têm Vez). Somos levados ao limite
do conflito com a falta de raiz existencial, quem perambula pelo palco
dos Coen não leu Sartre ou Heidegger, eles não são seres ontológicos,
eles se definem por suas ações em um mundo basicamente de apostas.
Por
isso -pela falta de bases da ordem, onde o que comanda as ações pode
não ser visto, não ser palpável e não ser planejado-quando foi anunciado
um filme deles com uma história faroeste, não foram poucos que pensaram
“Isso é cinema Coen!”, e talvez foi assim que os diretores imaginaram o
grande cenário como uma definição de tudo que eles tinham construído no
cinema. Mas seria isso apenas uma reunião de seu argumento ad infitum
da falta de estrutura judicial ou um passo a mais para o caminho de sua
obra? Uma história de faroeste é livre par excellence justamente por ser
uma terra onde não há regulamentos e as instituições são os modus
operandu da população que a constituem. Mas a própria desconstrução
desse gênero narrativo (ou um experimentalismo maior de imputar idéias
de outras obras em um típico faroeste) é o passo que garantiria para os
Coen uma brisa de ar fresco, mesmo abordando a vingança como mote (o que
fica óbvio desde a bela cena inicial, onde uma voz em off feminina
narra suas causas), coisa tão convencional nesses filmes-há como falar
de faroeste e não lembrar que todos filmes de John Wayne eram sobre
vingança? Os diretores se inserem no “road-movie à cavalo”, e não largam
mão das lendas estruturais que constituem uma história em uma terra sem
lei. Estamos novamente em uma reinvenção na terra quente que não deve
nada aos mitos adorados e refilmados por Wenders, outsiders solitários
que sentem indiferença pela ordem, caubóis que se sustentam pela morte
alheia e suas recompensas, a força como lei de sobrevivência, aos
curadores do deserto, rios, mato seco, cobras. Contorcer o gênero e
esmiuçá-lo foi a saída encontrada.
Mas sabemos que quando
se trata dos Coen nada é tão simples e tão óbvio. Se estivermos
inseridos no mais típico conceito faroestiano, os homens que transitam
por essa terra enxergam outras formas de resolver seus anseios além do
mais cativante bang-bang, não podemos nos esquecer que a mis-en-scène
acontece na base da politicagem. Os diálogos são longos, com
afirmações e respostas, um bang-bang de palavras, ironias (o que fica
evidente quando Matt Damon sofre um ferimento na língua e mesmo assim
não cessa de falar, de usar a arma mais válida mesmo com um cano colado à
sua cintura). Welles invade o universo de Ford. O bang-bang fica em
segundo plano porque os indivíduos são dotados de intelligentsia e se
ferem mortalmente na base da palavra, analogias possíveis com o mundo de
Hitchcock, onde o jogo cênico é mais empolgante que os assassinatos.
É
que a politicagem e o mundo dos negócios invadiu qualquer tipo de
relação, mesmo na terra sem ordem quem articula melhor sai na vantagem.
Isso, mais do que os diretores citados, é o que os Coen procuram em
todos os filmes (a exceção talvez seja Inside Llewyn Davis), exibir que a
articulação das palavras doma as ações imprevisíveis. Como as
personagens nunca têm o que querem, abusam das palavras e ao prazer de
suas injúrias. O fim disso é sempre evidente porque o cinema dos Coen
não nega a tragédia de nossa existência, não nega que sempre perdemos
tudo (em Matadores de Velhinhas e Onde Os fracos Não Têm Vez metade do
elenco morre, a vitória não existe em Bravura Indômita, mas há sempre
uma cobra para aplicar seu veneno).
Bravura Indômita é o
menos “porra-louca” dos filmes dos Coen, sem signos deslocados e até uma
certa extravagância comedida, talvez isso mostre um certo
amadurecimento ou falta de experimentalismo informal, eles habitam nesse
filme um gênero e suas artimanhas são limitadas. Mas isso é porque se
formou um mito ao redor da dupla, e talvez por este motivo eles
recorreram a um gênero morto, ressuscitando e apresentando-nos seu filme
mais prazeroso; dialogamos com figuras icônicas em uma linguagem
diegética simples ou até inexistente. Sua inserção no universo de John
Wayne é para nos mostrar que ainda há vida no cinema, seja ela por qual
gênero for.
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