Uma música nova do D’Angelo ressoando em algum streaming.
De repente, os fóruns musicais começam a ressaltar a qualidade de Really Love (destaque do disco), pelo
romance, insinuações e melodia cativante que se confunde muito com os grandes
nomes da música negra norte-americana. Pequena amostragem que exemplifica bem a
qualidade Black Messiah e os
trabalhos anteriores de D’Angelo.
Ressaltando sua criatividade e apelo vocal que fez notícia, mesmo nesses
quatorze anos de ausência.
Ele só foi dar as caras e se
amigar do rádio em 1995, com Brown Sugar, que teve um impacto fulminante,
influindo bastante nos futuros lançamentos de um ritmo que incorporava rap,
jazz, funk e house, sendo com certeza um “genre
defining”. Mas o melhor ainda estava por vir e, em 2000, o mundo conheceu Voodoo, que tem uma produção muito
polida e lindas harmonias, um álbum que pode parecer “quieto” na primeira
audição, mas que imprime texturas em nosso imaginário sempre que acabamos de
ouvir (pode parecer loucura, mas eu juro que não tomei tóxicos pra escrever
isso). Depois de dois sucessos e uma carreira que obviamente mostrava uma
evolução muito gradativa, ficou a dúvida de quando e como seria o novo disco.
Faria ele mais do mesmo? Em Black Messiah
temos a prova de que, embora não em uma inovação propriamente dita, o
desenvolvimento de D’Angelo nesse
intervalo de quatorzes anos se projetou para fazer algo diferente. Voodoo é sua obra-prima, já está lá, mas
nesse novo álbum temos reformulações de seu ponto de vista musical, ao mesmo
tempo em que sua voz deixa claro que ele permanece o mesmo.
Com o tempo passando, parecia que
nunca mais iríamos ouvir nada de novo do
D’Angelo. Várias foram as suposições no meio do caminho- alcoolismo,
drogas, etc. Algumas revistas estreavam manchetes indagando a localização do cantor. Doze anos depois, em
2012, ele estava de volta aos palcos. Mais saudável do que nunca, suas
performances prometiam um novo e interessante lançamento. Ficou então a dúvida
se D’Angelo manteria a fidelidade às
raízes que o catapultaram como dos artistas mais impressionantes de sua época,
ou se renderia aos modismos e representaria apenas uma adição intoxicada da
indústria fonográfica. Surpreenderia ou não?
Mas então ele sumiu de novo e
ficamos mais de dois anos sem ouvir falar do D’Angelo. Até que, no final de 2014, um álbum seu foi anunciado
numa sexta-feira, uma música liberada para audição no sábado e o disco lançado
no domingo. Eu mesmo não vacilei muito e fui logo atrás para ouvir o disco.
Juro que, mais do que para “acrescentar” na lista de melhores discos de ano, me
intrigava muito saber o que ele lançaria.
O que mais me chama a atenção no
retorno do D’Angelo não uma antipatia
de sua música com o que é feito no pop hoje. O que surpreende é justamente o
contrário. Em Black Messiah tudo soa
em seu devido lugar- o baixo, as guitarras, os sintetizadores, a bateria é
precisa- em uma gravação análoga impecável. BM é um disco quieto e relaxante e
pop que contraria as matizes das músicas que tocam na rádio hoje em dia. D’Angelo implode essas esquemáticas
simplistas que grande parte da música popular decide fazer e apela para a
simples iminência e talento de cada instrumento, assim como na integração do
todo. É um plano bem simples até- mas o esmero que cada instrumento é
aproveitado deixa maior ainda a sensação de máximo cuidado em todas as etapas
criativas desse álbum. As composições são detalhadas e saem de um virtuosismo
mais fetichista que muitas gravações análogas proporcionam para aproveitar não
só a sonoridade de tudo que envolve o disco, mas também o ambiente que D’Angelo propõe criar. Obviamente que a
escolhe do nome, messias negro, não é arbitrária.
A maneira como a voz de D’Angelo foi aproveitada também segue
uma formulação bem particular. A voz, ao contrário de muitos álbuns que seguem
essa linha, fica muitas vezes abaixo do peso do contrabaixo ou dos instrumentos
de sopro. As letras, em muitos momentos, são indiscerníveis. Esse sub
aproveitamento do potencial vocálico seria tosco se não justificassem as raras
vezes em que o vocal é evidenciado em toda sua capacidade. Essas vezes, como em
algumas partes da sincera Really Love,
evidenciam que D’Angelo é sim o foco
do disco. E justamente por ter todo esse poder e controle sobre as levadas que tangencia
seu desempenho- os grooves dançantes,
os refrões com grande influência gospel- que podemos dizer que esses catorzes
anos de espera contribuíram em uma visão musical cada vez mais fluída e que tem
um desenvolvimento constante.
E é dessa zona quieta que D’Angelo controla as constantes tensões
que são dissolvidas em Black Messiah.
Sejam em letras que abordem o ato sexual, as canções mais relaxantes com um
clima decididamente atraente, em BM temos um artista que coloca suas variáveis
emoções dentro da mesma música, estabelecendo e negando clímaces- um violão
aqui, um assobio melódico ali, uma gravação de algum líder falando sobre Jesus.
Impressiona como a banda pula dos temas para outros nas mesmas canções assim
como varia os andamentos e constantes estruturas musicais. Isso faz de BM um
disco denso que vai exigir constantes visitas, pois está tudo muito unido que
temos que vasculhar bastante para encontrar suas enormes divergências ocultas
por todo esse balé de ritmos. Varia;
Black Messiah é um álbum dançante, politicamente consciente, sexy. O que
também leva a questionamentos como, “que porra estava D’Angelo fazendo nesses catorze anos para esconder tamanha
imponência musical?” Eu quero dizer, escute o desenvolvimento de 1000 Deaths, o ritmo funk, sua letra direta, até eclodir em
um solo de rock’n’roll para voltar a
ser mais pesada e grooveada
novamente. Realmente não se trata de nenhum iniciante.
O que apenas ratifica o
acompanhamento no nome da banda, The
Vanguard. Mesmo com essas ricas texturas e envolvimento de ouros
instrumentos, a base para todas as músicas é estabelecida na interação baixo-guitarra-bateria. O baixo faz um
trabalho bastante alto e desconstruindo a própria atmosfera das músicas e
lidera a banda instrumentalmente, muitas vezes. D’Angelo toca a guitarra em ritmos menos ofensivos e mais
acolhedores, influenciado no blues e nos grandes mestres do funk dos anos 70. Embora exista toda uma
fidelidade à construção da música negra norte-americana, é justamente por não
deixar tudo tão “exposto” e combinar diversas dinâmicas que protegem a criação
e lhe dão um ar de novidade.
Não apenas as influências
sonoras, mas também as letras destacam toda a história negra. Sendo planejadas,
mais ou menos, em 2007, elas refletem a situação de humilhação que a população
negra- desde a brutalidade policial até os negros da “linha de frente” nos
exércitos norte-americanos- sofre constantemente. Como mencionado
anteriormente, o nome do disco não é em vão e D’Angelo considera todas as variáveis para mapear as sensações de
impotência, amor, sexualidade, alegria e medo que a população que ele
representa atravessa no dia-a-dia. A adoção dessa perspectiva não é realizada
de forma panfletária nem idealizada, mas através de relatos de um eu - lírico
que atravessou essas experiências. Fica evidente que é impossível o
distanciamento desses relatos e também não é como se ele ambicionasse isso. O
comportamento de todo disco transpira calma, mas um equilíbrio merecido entre
todas essas batalhas duras da vida. D’Angelo
não tem medo de explorar essa sonoridade tradicional e estabelecer o
comando de seus direcionamentos estéticos.
Embora Black Messiah aponte mais direções que Voodoo, ele não avança tanto em algumas explorações- D’Angelo quis resenhar sobre quase tudo
em quase todas músicas- e prioriza uma interação sofisticada entre os membros
da banda, uma interação mais simples que relembra os melhores momentos de Brown
Sugar.
Black Messiah então- por apontar
tantos caminhos e habitar zonas que privilegiam uma abordagem mais relaxante,
mesmo nas canções com conteúdos pesados- se apresenta como um disco,
surpreendentemente, sem “pressão”. Depois da obra-prima que é Voodoo e depois de catorze anos sem
nenhuma produção em estúdio, muitos esperariam um D’Angelo angustiado pela
pressão. Não temos nada disso. Somos apresentados a um artista no domínio de
sua técnica e intuição. Alguém que não se apressou para criar canções tão
cativantes e ricas como às desse disco. Não há um destaque em Black Messiah. É sua abordagem tão
ampla, ainda assim ressoando muito íntima e próxima de experiências pessoais,
que garante esse disco como o único sucessor que a obra-prima anterior poderia
ter.