as florestas da Terra não deveriam me assustar. O que me assusta é a luz, na verdade. A luz deixa-me visível e à mercê do olhar alheio e eu tenho vergonha do olhar alheio. Um olhar substancial, que provoca um exibicionismo macabro, que contorce minha mente em especulações subordinadas à tortura do intelecto. Todas essas visões que movem cortinas na sala-de-estar, o modo imperativo que o mundo impõe seus símbolos são destituições nucleares que destroçam os átomos na instância do presente, tornando tudo uma nostalgia imediata. A capacidade do mundo em oferecer nostalgia-expressa alavancada pelo avanço tecnológico, pela possibilidade da troca instantânea de dados. Nessa velocidade fica a minha sombra, a sombra violável pelo satanismo da luz. A sombra que sabe em quais colunas de concreto devo-me esconder, observando pessoas mais importantes guiando pessoas ainda mais importantes na esfera do mundo administrado. O mundo impossível. E tudo é pó, tudo retorna de maneira alquímica. Eu anseio este dia vindouro: em que todos os mortos celebrarão o retorno essencial. O único retorno que fez sentido sob a devastação diária solar. A devastação que são os diálogos, as corridas, o desespero contra os números e a vergonha. A vergonha numérica, a vergonha medida, a vergonha objetiva experimentada em desmedidas. É tão vívida a imagem de Betel olhando-me com ódio & rancor. A imagem veio de um sonho. Mas eu posso imaginar que Betel sentiu exatamente isso quando decidiu excluir-me do seu ciclo. A exclusão essencial, no entanto, ela não conseguiu estabelecer. Ela só aderiu à exclusão personalizada em cliques e boatos. Mas não conseguiu apagar o fato de que mais de um ano depois de nossa última conversa ela estaria presente, clandestinamente, no meu sonho. Impedindo-me que eu embarcasse para o Japão enquanto recusava, de maneira nada polida, meu bom-dia.
na prisão que é o sonho porque sonhar não liberta. Sonhar é o irracional em sua potência máxima, encerrando potencialidades racionais. Depois que tudo passou e mais de um ano segmentou o caminho absurdamente diferente que tomamos, será que ainda pensamos em formas de defender e atacar? Será que ainda gostamos das mesmas bandas ruins e será que não estamos aferrados a gostos anteriores para tentar preservar o pouco de nós que ainda podemos controlar? São questões que se põem como armadilhas sem respostas. São questões que ficarão vazias durante anos até um de nós ser atormentado por um sonho que remeta a um passado tão antigo enquanto presente inexistente.
sonhos que queimam nosso pensamento transformam-se em ficção do cotidiano. Um método cíclico de organizar esses estilhaços que compõem o espelho desfigurado que somos. E só refletimos o teatro do outro. Então fazemos assim: ninguém foi pior que ninguém, você precisou de sua ficção como eu precisei de minha mentira e dessas palavras que se esforçam para serem algo além de vazias. Porque foi muito recentemente que eu aprendi que quase todas as palavras as quais eu mais me aferrava não traziam nada consigo além de banalidade autoexplicativa.
foi preciso que meus olhos se tornassem nuvens nubladas e na distância que Lavras parece ter com todas as outras cidades do Universo eu visse a fragilidade de nossos elos forjados. Eu ouvisse cânticos antigos embalados pela prepotência da vontade de pertencer a algo e por isso me esforcei com textos quase diários sobre o deslocamento na espera de que a produção incessante criasse algo tão inútil quanto amizade.
o mapa morto que é essa cidade: as casas de barro sem coloração emprestando aos enormes sobrados construídos a lembrança de que ainda se trata dum país de terceiro mundo, de que você pode tentar constituir arquitetonicamente o visual que quiser e, ainda assim, não vai escapar do fardo carnal que é seu pertencimento. Nesta cidade não há mar e as cachoeiras são distantes. Minha vizinha, que pinta a unha da minha mãe em troca dos perfumes que esta vende, nunca viu o mar. O mar mais perto daqui é da praia de Ubatuba. Ubatuba é uma praia intangível: tudo lá é caro e o provincianismo globalizado de alta-renda conseguiu até transformar a paisagem em um visual artificial. Em um ponto morto para quem nunca ultrapassou os limites lavrenses
eu deveria nunca mais descansar aqui. Nunca mais atribuir qualquer estupidez interna a essa enorme indiferença diante da qual me deparo. E se eu te dissesse que aqui é o ponto-limítrofe? E se eu dissesse que essa espécie de ficção formada por qualquer pretenso "nós mesmos" estivesse, sempre, na beira de um estilhaço de um mundo mal-resolvido. Um mundo cuja beleza negou nossa entrada total. Um mundo exibicionista cuja principal construção poética é a aparência do efêmero. Porque até mesmo esta ideia pretensiosa de efemeridade é uma tentativa de poetizar o que é só aparência. O que nem tem densidade o suficiente para se caracterizar como efêmero ou qualquer outra atribuição tola que discorra sobre nossa fragilidade ao nomear tudo que é impossível. Nesta escala necrótica os dias têm passado: impressionado com o barulho da urina, impressionado com o prazer de umas coisas nada a ver, tipo depilar-se. Tipo ouvir a teimosia da água do chuveiro tentando acobertar o doom metal que sai do meu celular. Como se essa junção específica da arte (por falta de um substantivo melhor) pudesse erradicar a perdição do meu cotidiano.
como se essa concentração em tentar definir a distância fosse erradicar esta falta de ar
na prisão que é o sonho porque sonhar não liberta. Sonhar é o irracional em sua potência máxima, encerrando potencialidades racionais. Depois que tudo passou e mais de um ano segmentou o caminho absurdamente diferente que tomamos, será que ainda pensamos em formas de defender e atacar? Será que ainda gostamos das mesmas bandas ruins e será que não estamos aferrados a gostos anteriores para tentar preservar o pouco de nós que ainda podemos controlar? São questões que se põem como armadilhas sem respostas. São questões que ficarão vazias durante anos até um de nós ser atormentado por um sonho que remeta a um passado tão antigo enquanto presente inexistente.
Johannes Vermeer -Het melkmeisje |
sonhos que queimam nosso pensamento transformam-se em ficção do cotidiano. Um método cíclico de organizar esses estilhaços que compõem o espelho desfigurado que somos. E só refletimos o teatro do outro. Então fazemos assim: ninguém foi pior que ninguém, você precisou de sua ficção como eu precisei de minha mentira e dessas palavras que se esforçam para serem algo além de vazias. Porque foi muito recentemente que eu aprendi que quase todas as palavras as quais eu mais me aferrava não traziam nada consigo além de banalidade autoexplicativa.
foi preciso que meus olhos se tornassem nuvens nubladas e na distância que Lavras parece ter com todas as outras cidades do Universo eu visse a fragilidade de nossos elos forjados. Eu ouvisse cânticos antigos embalados pela prepotência da vontade de pertencer a algo e por isso me esforcei com textos quase diários sobre o deslocamento na espera de que a produção incessante criasse algo tão inútil quanto amizade.
o mapa morto que é essa cidade: as casas de barro sem coloração emprestando aos enormes sobrados construídos a lembrança de que ainda se trata dum país de terceiro mundo, de que você pode tentar constituir arquitetonicamente o visual que quiser e, ainda assim, não vai escapar do fardo carnal que é seu pertencimento. Nesta cidade não há mar e as cachoeiras são distantes. Minha vizinha, que pinta a unha da minha mãe em troca dos perfumes que esta vende, nunca viu o mar. O mar mais perto daqui é da praia de Ubatuba. Ubatuba é uma praia intangível: tudo lá é caro e o provincianismo globalizado de alta-renda conseguiu até transformar a paisagem em um visual artificial. Em um ponto morto para quem nunca ultrapassou os limites lavrenses
Big Little Lies, de David E. Kelley |
como se essa concentração em tentar definir a distância fosse erradicar esta falta de ar