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sábado, 31 de março de 2018

cicatrizar as feridas

Com todas nossas palavras nós construímos um esboço de futuro enquanto tentávamos acreditar que esse mesmo esboço nos redimiria de todos os nossos erros. Eu usei durante três anos a pulseira que você me deu até que um dia, bêbado, eu quebrei ela numa mesa de bar. Ainda que bêbado, eu consegui lembrar nossas brigas culpando um ao outro enquanto qualquer esboço de futuro mostrava-se imprestável para cicatrizar as feridas.

Antes de voltar a Santo André eu fiquei te observando do lado de fora da janela, esperando que nascesse alguma força inconsciente, minha ou sua, para restabelecer um equilíbrio na relação entre mãe e filho. Eu reconheço  você em cada café ruim que eu faço e, especialmente, nos domingos de manhã sinto falta do cheiro forte invadindo a casa (acho que agora eu tenho que especificar qual casa). Os domingos aqui têm amanhecido ensolarados e as velhas do bairro perguntam-me sobre como você está. Eu respondo com meu pior sorriso, como se suportasse o peso de vinte e seis anos transitando na desconhecida estrada dos sentimentos. De volta a casa depois da feira dominical, eu vejo os restos de onde nós vivíamos e tentávamos demonstrar amor.

No ponto mais alto do bairro, o último andar comercial do Shopping, eu esbocei uma carta para te mandar pelo correio. Algumas lágrimas caíram sobre ela e eu desisti da ideia achando que era piegas e idiota e sentimentaloide. Eu tenho te dado flores em todos os últimos aniversários porque nunca te vejo usando as roupas as quais te dei. Eu amaldiçoei tantas vezes nossa relação que fiquei com vergonha da ideia de redenção ser só um remendo para algo sem conserto. Ou que a carta tenha sido impulsionada com um pesadelo sobre o dia que você morreria: quem escreve cartas a partir de pesadelos? Veja bem, eu não sabia que eu perderia tanto de mim quando moramos longe pela primeira vez. Eu não sabia o que sacrifício queria dizer e triste tê-lo apenas reconhecido ao ler um livro de uma inglesa morta há mais de cento e cinquenta anos. Sua ausência foi a consagração do meu elo de distanciamento. Sua ausência cortou o filtro suportável dos dias, como uma espada que desvela um mundo sem amor e atenção. Nossa história é de como perdemos as coisas importantes até percebermos como a casa vazia materializou-se pelo excesso de ressentimento.

A incredulidade de São Tomé - por Caravaggio

sábado, 24 de março de 2018

quarto quente

Eu não conseguia mais acessar os significados dos textos que eu escrevia, eu lia-os e questionava-me, "sobre o que mesmo são todas essas coisas?". Questionava se eram literais ou metafóricos, não lembrava os dias, não lembrava a cor da paisagem ao fundo e nem as cores dos olhos das pessoas que passaram. Elas são como uma fila inacessível e eu misturo todas elas e deixo as qualidades no modo aleatório como se apenas houvesse minhas interpretações diluindo qualquer individualidade alheia. As palavras, rígidas e estancadas num branco perpétuo, estagnavam qualquer fluxo de significado ou memória para um imediato presente-emergente tão frágil quanto curto. Eu fiquei bravo com tudo aquilo e meu cérebro agitado ordenou que minha mão socasse as paredes do meu quarto. Eu soquei e soquei. As partes inferiores dos meus dedos sangravam e as lágrimas que caíram, com certeza, foram uma reação à dor e não ao que acontecia. E não entendia o que acontecia e de qual origem surgia aquele desespero somado à incompreensão. Talvez eu tivesse bebido demais e a gente nunca consegue evocar significados precisos quando se está muito bêbado, eu lembro que deitei na cama e enrolei-me com edredom num calor desgraçado tendo a certeza de que vultos rodeavam-me. Convenci-me de que havia lábios para beijar-me e corpo para eu tatear quando aquela alucinação toda terminasse, como se eu passasse pelo Vale Da Morte e encontrasse afeto materializado do outro lado através de olhos bem intencionados. Mas a esperança evaporou quando a sobriedade chegou e eu descobri que não havia nada a não ser um quarto quente.

Portrait Painting - Merge by Michael Lang

segunda-feira, 12 de março de 2018

interações grotescas e performadas

Foi a minha pequena morte e foi lindo. Tudo desvanecia numa mancha irrepresentável, como se o próprio tempo fosse abolido em função daquele líquido instantâneo. Eu perdi o interesse em tudo ao redor e qualquer esforço para contatar alguém parecia em vão. Fatigado de interesse, fatigado de ter que ser cênico (e não corporal!) o tempo todo. Não havia isso enquanto eu estava lá: refém da dopamina e sua urgência. Ali, eu não queria poupar nada para o Efeito Coolidge, eu queria ser a combustão e a efemeridade e se tudo terminasse no clímax eu morreria com um sorriso satisfeito. É claro que depois eu fiquei triste, é claro que depois eu olhei uma casa vazia que se esquecia da presença de outros corpos, tão habitada com meu excesso: os feijões prontos, os pães e os cafés solúveis. A mesma linha que promove a euforia é arrebentada num desgosto vulgar ao reparar nas cores tingidas das paredes se descascando, neste quarto em que eu me enfiei com esperança de triunfos através de interações grotescas e performadas.

Depois que o ato estava completo eu encarei meus pés e a onda oculta de cansaço invadiu-me e fez-me arrepender instantaneamente do que havia sido feito. Eu pedi desculpas e jurei não fazer aquilo nunca mais, eu encarei o espelho desfocado como se aquilo fosse um transe: como se o cansaço que me abatia fosse temporário, ainda que eu soubesse que nada é capaz de rasgar essa convivência. Eu convivo há anos com essa vergonha e esse arrependimento-instantâneo.

Dane-se as interações, eu pensei. Dane-se ser qualquer coisa de sociável, há vida o suficiente neste cubículo onde tenho me enfiado. O que importa é a carne e essa criatura, o que importa é a fantasia que eu criei para alimentar meu avatar, a ponto de eu não saber quem domina e quem é dominado: se os comportamentos são reféns da distância, ou se a distância que fabrica esses esboços de relacionamentos. A mesma neuroquímica que produziu todo o prazer transformou-se em arrependimento, o mesmo racionalismo -do qual no ato eu me abdico ter- cresce volumosamente depois que só resta a mesma casa silenciosa e as mesmas esperanças estúpidas de encontrar algo online. Eu já vi coisas piores e mais reais, eu já vi pessoas próximas passarem pelos desafios nos quais eu nunca encontraria forças.

Todas as coisas ridículas a serviço da auto-estima se desvanecem depois que a máscara do pseudo-prazer cai e só resta um rosto em carne viva encarando. Ser desejado, a força que isso carrega, os hábitos que isso carrega e o quanto eu me anulo em prol desse objetivo irreal. A alegria fajuta das interações, a alegria completamente metabolizada de egoísmo ao ser procurado, ao aceitar o jogo de desejo-atração. A demonstração pública de necessidade, a submissão constante do próprio desejo às avaliações completamente aleatórias elencadas em um tribunal fluído do qual tanto dependo.

Eles são outros, eles são fantasmas e eu sou uma aparição para eles. A minha webcam não responde nada. Ela só pisca e pisca até a hora de eu dormir e, mesmo nos sonhos, ser preenchido pelas próprias aparências tão distantes de mim, tão inequivocadamente grotescas em seus aspectos sóbrios de onipresença. Redes extensas conectadas pelo consumo da falácia e da exposição, das fotos quadradas e redondas e da eterna vegetação no simbólico.

Eu vou tentar não ser tão duro comigo mesmo e pensar que isso acontece com todos.

Small Pleasures, 1913 - Wassily Kandinsky

sábado, 3 de março de 2018

vingança (The Spirit of Versailles - A Form of Closure)

Eu nunca pensei que isso seria tão difícil. Que, conforme a idade avançava, eu me fecharia mais e mais a ponto de os contatos serem sempre amenizados com um desvio de olhar. Sentimentos assim nunca me ocorriam até então. Essa "suspensão na vida adulta" desestabilizou o que tínhamos por regularidade ou idoneidade. Os dias passaram rápidos demais ao mesmo tempo em que senti que eles eram longos, demorando-se em sonolências arrependidas sobre a falta de perspectiva e o cansaço inebriante de quem sempre quis se retirar. De quem nunca soube falar nos momentos de que sabia serem marcantes. As palavras faltaram quando mais nos aproximamos, quando mais estivemos próximos retiramo-nos por lacunas auto-depreciativas e irônicas. Eu não posso saber o que isso tudo significou para você. As conversas de madrugada, o apoio, os desabafos. Eu queria sair desse labirinto que é imaginar os outros. Porque até mesmo minhas coisas são inacessíveis. Ou estarei sempre aqui, no início/fim de um ciclo repetitivo que se locomove por lacunas estranhas demais, as quais não cessam de nos surpreender pela capacidade de sufocar?