CURTA NOSSA PÁGINA NO FACEBOOK

domingo, 31 de janeiro de 2016

Otacílio Melgaço – Brutalism

A arquitetura brutalista emergiu na década de 1950 radicalizando preceitos da época, embora não fosse um “movimento” rígido, suas explorações na forma influenciam a produção contemporânea. Os clamores que surgem na primeira faixa fazem questão de preencher tudo que é possível, não há silêncio porque não há tempo para ficar calado. Devemos apreciar as variações de Brutalism como um preenchimento em que é muito difícil de respirar. Eu encaro o transbordamento do disco como um ato de liberdade. De qualquer forma, Brutalism soa cheio e feito de movimentações inesperadas.

A concepção sonora de Otacílio Melgaço para esse disco parece ter nascido dessa vontade de preencher o vazio de maneira que não há pausas para fôlego, e embora os elementos predominantes remetam ao jazz, toda a ambientação de Brutalism trabalha no contrassentido do vácuo. Novamente, essa necessidade de expressão do músico que combate formações medianas e uniformidades.

Esses condicionamentos limitantes que esvaziam a maioria das tentativas artísticas e as transformam em mera mímesis. Melgaço diagnostica esse esvaziamento contemporâneo e reconhece nos atos mais libertadores do jazz formas que propulsionam todos os contornos musicais do álbum. Mais do que linhas retas, toda a estrutura de Brutalism (o noise rock, a música eletrônica e também a música clássica) opera de maneira que redimensiona um tempo e espaço que parecem opacos. Leiam todos esses desvios de Otacílio como uma maneira da aparência (o som) desvelar as estruturas em favor de qualquer ideia de “verdade” que você possa ter.

Essa apropriação do conceito da arquitetura brutalista não é em vão; somente os contornos podem desnudar a essência da estrutura. A produção musical contemporânea, seja pelo excesso de zelo na produção ou apenas uma estratégia de mercado, usualmente esquece-se de brindar o ouvinte com uma “crueza” ou qualquer outro ato de sinceridade. Brutalism encontra uma sinceridade há muito esquecida para transpor uma ideia de ocupação em uma época criativamente vazia. É uma gravação que escava até a raiz de seu criador para fugir de procedimentos fáceis ou confortáveis e estimular todos que a escutam para se apropriarem e tomarem parte nessa nova construção. Eu sei que soou confuso, mas é como não somente a ideia de construção musical fosse posta em jogo, mas também a verdade por trás dessa construção.

Brutalism começa focando exatamente nessa ideia de ocupação, como se as estruturas já dadas não fossem suficiente e há uma necessidade evidente de Melgaço reelaborá-las e sem se preocupar com qualquer espécie de desconforto que isso possa causar. A seção rítmica depois dos primeiros cinco minutos iniciais mais caóticos, se reorganiza e segue caminhando para caminhos inesperados. O álbum soa como uma alçada que não pode ser freada, uma alçada preocupada em reconstruir, ocupar e desvelar as principais ideias artísticas (em constante movimento) de Otacílio.

A primeira peça é a que traz todos esses conceitos e também é o mote que colabora com a ideia do músico. Não é muito fácil diagnosticar precisamente os instrumentos utilizados nessa, mas temos uma ambientação que a recorrência percussiva coexiste com elementos de sopro, eletrônicos e outros escapes. Melgaço não quer se resignar em nenhum momento e por isso todo o disco é uma batalha contra um conformismo artístico e a voracidade de alguém que anseia em ver seu projeto realizado. Brutalism é a captura desse momento de tensão e criação, em que se percebe que nada é permanente, tudo é ocupável.


Finalmente, todos esses conceitos e ideias não devem atrapalhar sua audição. Entendam o disco como uma tentativa de sair de esquemas convencionais de composição (estruturas) para, na batalha parar criar seções mais radicais, estabelecer algum tipo de movimentação (ocupação). Vai além de meros conceitos ou usurpações para usar esquemas tradicionais e mostrar que o que cria essa tradição (instrumentos) também é capaz de criar outros contornos, esperançosamente mais verdadeiros. Somente os sons são deixados e tudo que podemos sentir dentro da estrutura que eles criam.

sábado, 30 de janeiro de 2016

Naðra – Allir Vegir Til Glötunar

A referência minimalista que emerge do Naðra, a priori, soa como uma referência às outras bandas que apostaram nesse conceito ao longo dos anos. O quinteto islandês infelizmente cai na repetição entediante que tenho reparado em muitas bandas desse gênero. Ao invés de uma saturação que cria realmente um ambiente, Allir Vegir Til Glötunar soa como a aplicação dos elementos centrais do Black metal (tremuladas, blast-beats, vocais esganiçados) de forma completamente desordenada.  Longe de construir algo com tudo isso, a banda simplesmente joga na nossa face na espera que, só por nós gostarmos de metal extremo, iremos apreciar a confusão sonora instalada.

Frequentemente explorados, os blast-beats derrubam qualquer estrutura que Allir Vegir Til Glötunar poderia garantir. O que anteriormente era uma expressão única e necessária, agora é utilizado apenas para agradar certo nicho. Realmente não consigo imaginar a serventia desse álbum senão apenas para utilizar certas tags e cumprir respectivos papéis. Tudo estaria perfeito se não houvesse bandas que já fizeram isso melhor e tantas outras atualmente que desafiam mais os ouvintes e estendem seus limites sonoros.

Depois de toda transformação que o gênero passou, cabe a nós ouvintes indicarmos as bandas que exploram o radicalismo que sempre foi o que o gênero propôs. Não há dúvidas que o Naðra explora os elementos básicos de forma bem precisa, mas é muito difícil não acreditar que eles apenas fizeram isso para se agarrar aos fãs mais fiéis, enquanto praticam durante quase quarenta minutos uma mesmice que com certeza nós já ouvimos antes. No entanto, e talvez esse seja o único mérito do disco, pode levar um ouvinte novo a conhecer outras bandas que protagonizaram esse estilo de Black metal, em especial as da Noruega nos anos 1990. As influências não só tomam o Naðra, elas são o disco.


Uma das primeiras coisas que eu aprendi quando comecei a amar isso era que se tratava de radicalismo e não de certo conservadorismo (tudo no âmbito estético). Allir Vegir Til Glötunar é um álbum novo que poderia muito bem ser lançado há vinte anos. Tudo nesse disco transpira devoção. São cinco faixas que poderiam ser apenas uma e que nós não iríamos reparar diferença alguma. Allir Vegir Til Glötunar nos introduz uma banda que realmente parece um peso morto.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Steve Roach - Emotions Revealed

Um dos meus trabalhos favoritos de todos os tempos na música eletrônica é o Structures From Silence, disco no qual Steve Roach conseguia suspender toda sujeira sonora em áudios cristalinos em uma estética sensitivamente densa. Emotions Revealed se trata de duas peças compostas anteriormente à obra-prima de Reich e que felizmente puderam vir ao mundo no começo de 2016. Enquanto na primeira faixa podem-se sentir as influências de músicos notáveis e um Roach que ainda estava desenvolvendo uma personalidade, a relaxante segunda peça revela vislumbres da genialidade que o Structures From Silence viria a ser, com fortes influências dos primeiros lançamentos da Escola De Berlim.

Naquela época, os experimentos ainda estavam sendo feitos e muitos lançamentos seriam considerados anos depois como pioneiros em vários subgêneros da música eletrônica. Os próprios primeiros trabalhos de Roach se mostram um tanto quanto imaturos e genéricos, o que ele perderia já na elaboração de Emotions Revealed. Aqui temos um músico extremamente à vontade com suas ideias de repetição, em duas gigantes peças com uma textura onírica e sintetizadores que criam um espaço digno para exploração. Seria tolice afirmar que Roach foi um dos primeiros a trabalhar nessa linha, mas o talento revelado nesse disco não deixa dúvidas de que sua produção se divorciaria inevitavelmente de outras eletrônicas generalizadas.  Aliás, esse disco mostra meditações menos distorcidas do que os trabalhos posteriores de Roach e as orquestrações de cordas são o plano de fundo para a repetição de uma simples melodia que fica sempre em primeira instância e trabalha sentidos que conseguimos relacionar facilmente. Esse trabalho de associação imediata é importante porque na segunda parte do álbum Roach vai criar uma ambiente insistentemente mais obscuro e distorcido, se aproximando muito de algumas obras de Klaus Schulze.

A segunda peça se assemelha bastante a Structures From Silence; o tempo é devagar de forma gradativa, ou seja, cada momento soa mais lento que o próximo, assim como os detalhes vão ganhando mais relevância e a estética de Roach vai, aos poucos, se delineando- como um pequeno ato do cotidiano em ultra slow motion. A continuidade massiva de Firelight caracteriza uma instalação em que, aos poucos, pode-se mergulhar. Lentamente, as máscaras das influências de Roach vão se pulverizando para o movimento desgastado e repetidamente modificado exibir um artista com conceito próprio. Os sintetizadores criam uma estrutura etérea de eternos e lentos movimentos que se integram justamente pela instalação criada por Roach, sendo um exemplo das primeiras produções de música ambiente, executada por um jovem Steve que claramente ansiava não repetir suas influências.


Toda a transformação artística que Roach exibiu ao longo dos anos evidencia um artista ligado às novas formas de produção, mas que ainda assim, nunca completamente se submeteu a elas. Nesse tempo, suas abordagens tem-se mostrado cada vez mais grandiosas e que necessitam de muitas análises para realmente compreendermos os detalhes dos álbuns; isso tudo é compactuado dentro de Emotions Revealed que revela um Steve muito mais acessível do que nos anos decorrentes. Esse disconão é apenas “material para fãs”, mas é objetivamente uma revisitada a um dos artistas mais importantes em sua área de atuação e que indica os rumos diversificados que sua obra de vida registraria. Ainda assim, Emotions Revealed não é uma peça de museu, é uma obra que claramente pulsa por sua vontade.

terça-feira, 5 de janeiro de 2016

David Robert Mitchell - A Corrente do Mal (It Follows, EUA, 2014)

A Corrente Do Mal é um filme labiríntico. Poderia ser um filme de “ver o que vai acontecer”, mas aqui a pulsação da sensação de perseguição não precede o desastre propriamente dito. Ela é o desastre. Se o diretor Roger Corman foi a porta de entrada para muitos do que se convencionou de chamar filmes B, a transformação do gênero “horror” passou de pesadelos monstruosos como metáfora da invasão comunista, para se desvirtuar das monstruosidades de Corman e representarem um retrato de microestruturas falidas dos Estados Unidos. Microestruturas sociais que, conforme a obra de Romero, aos poucos escavava no indivíduo e encontrava base em diversos ramos da ciência, em especial na psicanálise. É justo ressaltar que o “horror” se espalhou como gênero importantíssimo para o desenvolvimento do cinema, especialmente a partir dos anos 1970 (considerando os Estados Unidos), e que, talvez, foi o que mais de genuíno existiu sob os holofotes durante um tempo considerável para aquele público e aquele tipo de cinema. Isso porque a ameaça se estabeleceu nos subúrbios norte-americanos. A perseguição de Fred e os corpos deixados para trás por Michael Myers evidenciavam que a classe média não estava mais segura. Esses filmes não foram baseados em jogos simplistas, mas o “horror” era parte latente do subúrbio, seu desligamento era impossível. A falta de limites ficou evidente na manifestação sinistra que Fred representava; o sono estava ameaçado, até o mais resguardado nível do descanso não desempenhava mais uma guarda segura. A partir de maio de 1968, os jovens reverteram a ordem e alteraram as relações de poder. Mas algo ainda estava guardado.

Mas o que A Corrente do Mal teria a ver com isso? Esse filme é resultado objetivo dos desdobramentos de obras sinistras criadas nos anos 70 e retorna com novo fôlego; tudo o que os EUA se orgulham de seu “estilo de vida” está lá. O filme carrega lendas “bem sucedidas norte americanas”- os parques, as casas sem muro, a vizinhança tranquila, os carros, a piscina no quintal- e as transmuta em seus mais contrários movimentos. Evidência disso é quando os jovens ultrapassam os “limites” do subúrbio.


Mas, mesmo assim, A Corrente do Mal trata de temas que correspondem a certo ideário de juventude (branca, magra) de uma maneira clássica, ao mesmo tempo rejeitando clichês. Os adolescentes querem fazer sexo, mas ao contrário de filmes como A Casa de Cera, por exemplo, esse ato nunca é confortável; há sempre algo de estranho no ato sexual (e os ângulos escolhidos por Mitchell utilizam muito disso). É um filme de grandes mosaicos (o primeiro que a protagonista fica amarrada em uma cadeira de rodas é impressionante), de cadência lenta e que utiliza de signos usualmente associados ao prazer (adolescentes em casacos de times de futebol dando uns beijos) para ironizar a saturação desses símbolos. É como se aquelas imagens que certa hora nos tranquilizassem tivessem perdido qualquer resquício de ingenuidade. Tanto que a inocência não aparece em nenhum momento emA Corrente do Mal , já que temos aquele primeiro plano. Sim, Pânico já utilizou dessas mesmíssimas técnicas, mas esse novo filme de Mitchell diminui o tom; impossibilita qualquer diversão. Uma cena em que dois jovens sentados no sofá falam alegremente sobre seu primeiro beijo é desestruturada por uma simples mudança de ângulo da câmera. O filme, ainda que farpeando dessas imagens saturadas, as utiliza para algo muito mais poderoso que eu não via há tempos em filmes desse gênero; um estado calado permanente, em que reclusão e certa timidez destoam de ambientes tão intencionalmente padronizados, idealizados e belos. É esse labirinto que inicialmente mencionei em que os personagens são mais ou menos parecidos e eles não estão inclinados a nenhuma grande atitude seja de humor ou exclamação de temor (a não ser quando a Coisa em si aparece). Essa ressignificação e certa inclinação à morbidez e a melancolia que cortam o filme de qualquer ação melodramática. E isso tornaria o filme de Mitchell apenas interessante não fosse o horror intrínseco em cada cena.
A Corrente do Mal caminha entre a exploração dessas imagens intencionalmente belas e óbvias (o primeiro plano), aplica a obviedade do gênero nessas cenas (a calma que é interrompida), e a partir desses pontos, o filme tenta encontrar alguma vida que pulsa naqueles jovens. As situações de A Corrente do Mal sempre descaracterizam esse ideário instituído para atravessar e revelar, quase sempre simetricamente, até como um retrato perfeccionista, o caráter voyeurístico de pessoas que esperam apenas sangue ou perseguições (tanto que as perseguições são curtas e interrompidas). É significativo que o único “eu te amo” do filme seja entregue quando a personagem inicial já se rendeu. Ela compreendeu a fragilidade que se encontrava e a partir dessa compreensão pôde realmente dizer algo. As casas espaçosas, as ruas largas e as belas árvores outonais são simulacro de uma existência, são símbolos-enfeites para fetichizar certo padrão de vida. Os familiares ausentes, a nostalgia da infância e a agregação onipresente de “sexo-morte” instauram jovens amputados e que reproduzem todo o ambiente idealizado que vivem.

O plano depois da abertura de A Corrente do Mal focaliza em outra jovem do subúrbio. O filme não se trata de individualidades, mas sim de certa indiferença que “persegue” essa geração. Perdida na piscina, Jay observa a calma que a cerca. De volta para casa, ela recusa um convite da irmã e seus amigos para ver um filme. Ela tem um encontro. Parecem situações corriqueiras, mas é o olhar da garota que denota certa morbidez. Ela integra totalmente sua época e cumpre exatamente seu papel ao esperar “encontro com rapaz legal, conhecê-lo e fazer sexo”. Funde-se a sua normalidade a dos outros jovens; eles vão ficar em casa assistindo filmes de terror antigos. Entre esses jovens e a mãe de Jay, que está na cozinha, há várias barreiras; eles estão de costas, há o sofá e também uma parede. Jay começa a transar com o rapaz dentro do carro até, depois do ato, ser dopada por ele. O plano que ela acorda é assombroso; um mosaico arruinado com várias entradas e saídas, o rapaz que a drogou está do seu lado e ela está amarrada em uma cadeira de rodas e sua boca está laçada. O garoto conta para ela a maldição que ele a “transmitiu” via sexo. Trata-se de uma maldição que vai caçá-la, lentamente, até que ela a passe andante transando com outra pessoa. Um gênero como esse, normalmente, tentaria criar um ambiente por pessoas que não acreditam nessa maldição; mas em A Corrente do Mal, Jay é sustentada pelos seus amigos. Essa é a forma que Mitchell apela para a juventude e é só em seus comportamentos mais usuais (para o bem e para o mal) que Jay pode encontrar conforto e sentir alegria de vez em quando. Dessa maneira, esses jovens compreendem que sua cidade (Detroit) é o espaço que eles podem agir como agentes modificadores.
Falar sobre como a sobrevivência, em A Corrente do Mal, não está ligada às artimanhas e sim a um cerne de castigo (morte por sexo) é uma das principais reflexões do filme. É uma sobrevivência mais essencial e por tanto mais difícil, pois lida com traumas e reproduções externas de situações vividas (a “coisa” sempre tem forma de alguém). Esta é uma obra que não visa uma redenção, mas se trata, sobretudo, da construção de ambientes que personificam camadas inseguras e objetivamente frágeis. As várias cores dos cenários visitados não são o suficiente para excluir a “monocromia” de Jay; apenas o horror consegue. Nada acontece no filme a não ser as alterações crônicas do ambiente. Pois as mudanças do horror também se adaptam e se rendem aos ambientes vastos. Eles se impõem ao horror (ao contrário de todos os filmes mencionados anteriormente) e, se o horror não se molda ao ambiente, ele seria pulverizado. É como se ele não fosse o suficiente, como se ele fosse incompleto. Esse jogo pode ser encarado como a “retirada” das máscaras desses jovens que se percebem suspensos nesses espaços.  A Corrente do Mal é uma obra-prima sobre o fascínio e seus subsequentes desencantos. Há quem talvez não consiga visualizar essas abruptas quebras e a ironia dos planos banhados de cor e como os zooms operam não só como ferramentas autorreferenciais (obviamente uma homenagem a outros filmes do gênero), mas, intencionalmente, já revelam uma América superada. A Corrente do Mal flagra no ultramodernismo que vivemos condições históricas que não mais personificam essa geração. Os jovens não querem mais esse debate. O filme investiga a pulverização de um objeto específico como signo do horror para ser ampliado em um ambiente constantemente ameaçador, ainda que muito abstrato.

A importância histórica de A Corrente do Mal está situada nas transformações de Detroit e como essa cidade representa os vários estágios socioeconômicos que os EUA passaram nos últimos cento e cinquenta anos e como essa constante mutação foi capaz de destruir qualquer ideia de segurança possível. A transferência constante de signos de satisfação pessoal (carros e propriedades distantes do centro urbano) já está completamente naturalizada com o horror. A busca pelo rapaz que passou a maldição para Jay mergulha em bairros pobres, casas desabitadas, fábricas que não mais funcionam e moradores de rua- o mito americano transformou-se em um refúgio de fantasmas. A Corrente do Mal se apropria das visões que Jay tem da janela do carro para explorar como as próprias ruínas já se transformaram em parte intrínseca do deserto de promessas quebradas.

Mas A Corrente do Mal não pretende estudar relações que formaram o mito do horror. O filme não advoga que essas ruínas são a causa do horror, absolutamente não. Mitchell, através dos adolescentes, poetiza o desamparo de uma geração e seus olhares carregados para o deserto urbano que os faz sentir tão solitários. O que poderia ser as ruínas de Detroit se não a constatação da desgraça que essa geração experimenta a cada caminhada na rua e a falta de eco quando tentam expressar essa visão? A Corrente do Mal é sobre a vertigem de se proteger em espaços que necessariamente nunca foram protetores, apenas idealizados dessa forma. O filme de Mitchell revoga que, já que sempre vamos ser caçados, podemos estar desprotegidos apostando na vastidão que essas ruínas ainda podem oferecer. A Corrente do Mal reconhece que a fuga é impossível; mas estar desprotegido não significa que não há mais espaços para explorar.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

Sketchquiet - The Nature Only Wants To Please Itself // Seize The Moment

Ninguém está em casa. As lembranças se fundem e os signos externos são apropriados assim como o canto dos pássaros; a noite passa lentamente, a observação transforma-se em absorção. As músicas de Sketchquiet são esse processo de absorver e reordenar o mundo que nos cerca de forma interna. Os versos de guitarra acolhedores de Seize The Moment flui com umas palavras em seu plano de fundo; são memórias que preenchem a vastidão do céu noturno e solidificam sensações como saudade e nostalgia. Mas o que o Sketchquiet realiza não é uma celebração e/ou tristeza em cima do que já passou, mas como Mário Alencar (ele é o Sketchquiet) é atravessado por essas lembranças. Porque elas surgem, e se decidem ficar, não há como combater e aí que músicas como as do Sketchquiet fazem todo o sentido. Elas existem não para lutar contra os nossos sentimentos, mas para acolher e dar vazão para eles, para estetizá-los de forma que eles também caracterizem uma presença. Sketchquiet pinta um cenário que sentimentos paradoxos são possíveis, nenhum contorno é simplesmente objetivo nessas duas canções. Todos os rabiscos são precisos e necessários.


Amanheceu e pouca coisa ainda faz sentido. Os versos de guitarra ainda são aquela mesma melodia da última noite, mas tanta coisa mudou, meu humor é outro. Eles continuam acolhendo minhas sensações. Na pausa de uma música para a outra, realidade se mostra existente, rígida como um concreto. Nós podemos acordar todo dia na mesma hora, mas o céu está sempre diferente. Indiferente a todos nós. O que eu sentia, ontem, na primeira vez que ouvia essas músicas, eu não me lembro. Acho que assim eu posso entender um pouco melhor a fragmentação da voz em The Nature Only Wants To Please Itself. Afinal, nossas memórias só obedecem a si mesmas e suas ordens malucas e caóticas. Elas são como os cantos dos pássaros; determinadas por suas vontades.

domingo, 3 de janeiro de 2016

Cássio Figueiredo – Presença

Eu realmente ficaria feliz se os leitores, para chegar a Presença, ouvissem os três trabalhos anteriores de Cássio e suas relações explosivas com o instante. Cássio descreve lugares e como ele se sente neles. É a manifestação de uma ocupação. Mas Cássio descreve por impressões, por surgimentos abruptos; nesse tipo de estrutura em que “descrever” é um atravessamento de lugares. Ele descobre a “presença” indo além das formas; ele ouve os ruídos, as cordas do violão, a mesma risada; a presença é a insistência e o que se repete, mas também é o que morre ante mesmo de ganhar contornos definidos. Não podemos confiar na presença, como demonstra Cássio. Ela é pueril. Nem sempre o instante ganha formas e é exatamente aí que Cássio opera todo esse disco. Mas muito mais do que uma questão filosófica, a afirmação do músico e de sua existência passa por cada som que é vazado em Presença; existe muito mais do que pensamos, existe muito mais do que podemos definir.

Presença é um cuidadoso processo de catalogar instantes altos e monótonos que ganham muita importância quando são sentidos de outras maneiras; os barulhos constantes saem então do campo da simplicidade significante (as buzinas de carro) para se transformarem em símbolos dos multielementos que nem sempre ganham forma definida. Por isso que são encontrados monumentos em toda operação de Cássio; os sons saem da esfera cotidiana porque seus contornos não são limitados. O que Cássio faz é dar liberdade e vazamento para esse emaranhado de “lugares-comuns”. Ele musica esses lugares. Devolve a eles o formato artístico que eles são.

A intenção de Cássio fica evidente já na primeira peça, que tem participação de Cadu Tenório; uma imersão sensível em lugares que, através do processo de imersão e desconstrução, vão nos presentear essências sonoras que precedem a forma. Isso porque o músico é muito transparente em relação às suas ferramentas; a investigação contida em Presença também é uma exposição de alguém que foi passado por esses lugares. Suas ações são atitudes do dia-a-dia que se potencializam na música contida nessas peças justamente pela sensibilidade de Cássio; o lugar é indiferente a ele, mas é graças ao músico que esses lugares que se misturam em sua estética repetitivo-agressiva podem ganhar uma afirmação tão positiva, ainda assim que não estejam completamente definidos, que não estejam completamente dissociados uns dos outros. Ele releva as frestas do cotidiano, o quão explorador uma caminhada a dois pode ser, quando você está andando ao lado de alguém e as risadas dessa pessoa se misturam com uma melodia que você lembra, com o barulho dos metais da cidade.

Todo esse mistério é manifestado na maneira que ele manipula esses elementos, esses encontros aglutinados. Cássio é um observador de seu ambiente e suas percepções do que pode ser musicado são evidenciadas em faixas como Condução, em que a saturação extrema é cortada abruptamente, porque ele chegou a algum lugar, ou porque simplesmente ele decidiu parar. A quantidade de sentimentos que ele consegue demonstrar através de barulhos considerados não musicais refletem uma abertura do músico a esses lugares. Apesar da agressividade aparente de Presença, suas consecutivas ouvidas mostram quão sutis são os detalhes que Cássio explora. São deslocamentos frequentes, explosões imprevisíveis que interrompem uma frase, ainda assim continuam o clima ambiente. Porque Cássio não quer modificar as estruturas que o cercam, mas obviamente suas percepções são frágeis, constantemente incertas e, mesmo assim, ele quer evidenciar essa fragilidade. É sua única certeza.

Musicalmente, Presença representa uma tentativa de recolher o caos interno e externo e dar alguma ordem possível. A ordem escolhida é representada de forma caótica também, mas dessa vez Cássio recolhe essas impressões incertas e as cataloga de acordo com sua memória afetiva e seus laços, como o lindo final de “Dois”, em que as risadas fecham a peça. Essas memórias estritamente individuais também garantem para o músico um escape, porque muitas vezes o peso de Presença recolhem sentimentos mais monótonos, um afogamento lento em repetições que refletem um mundo que está se esgotando de si mesmo. O que fica evidente em “Caminhão de Lixo”, que tem a participação de Cadu Tenório e que se repete exaustivamente, insatisfeita com os destinos que uma grande volta pela cidade revela. “Condução” e seu corte final me soa como um símbolo da repetição extrema em que essa mesma cidade esgotada na faixa anterior revela para alguém; mas ela é mais nervosa e rápida, ela é a saturação de toda insinuação anterior. Parece que a presença da cidade nunca vai ceder, e que essa sensação na verdade vai se amplificando- desde as buzinas da primeira faixa até ter essa explosão agonizante. Mas se é a partir daí que Cássio prefere discursar, ele atesta sua vida na metrópole, todas as vibrações escondidas em Presença afirmam de algum modo a existência.


Inspirações como pessoas extremamente próximas se juntam na percepção de Cássio, e ao mesmo tempo em que as risadas dessas pessoas se desintegram e outros barulhos ganham mais vida, essas memórias, ainda que distorcidas e distantes, mostram alguém que ainda não se rendeu. Exatamente essas distorções podem ser encaradas como metáforas estetizadas das alterações constantes de humor do músico. Ele desconstrói suas memórias e é nesse processo que todo intervencionismo exterior se instala e se torna parte do processo também. Uma mente que está constantemente indo para frente e regredindo. E é essa movimentação que instaura uma Presença, ainda que obscuramente definida.