A Corrente Do Mal é um filme
labiríntico. Poderia ser um filme de “ver o que vai acontecer”, mas aqui a
pulsação da sensação de perseguição não precede o desastre propriamente dito.
Ela é o desastre. Se o diretor Roger Corman foi a porta de entrada para muitos
do que se convencionou de chamar filmes B, a transformação do gênero “horror”
passou de pesadelos monstruosos como metáfora da invasão comunista, para se
desvirtuar das monstruosidades de Corman e representarem um retrato de
microestruturas falidas dos Estados Unidos. Microestruturas sociais que,
conforme a obra de Romero, aos poucos escavava no indivíduo e encontrava base
em diversos ramos da ciência, em especial na psicanálise. É justo ressaltar que
o “horror” se espalhou como gênero importantíssimo para o desenvolvimento do
cinema, especialmente a partir dos anos 1970 (considerando os Estados Unidos),
e que, talvez, foi o que mais de genuíno existiu sob os holofotes durante um
tempo considerável para aquele público e aquele tipo de cinema. Isso porque a
ameaça se estabeleceu nos subúrbios norte-americanos. A perseguição de Fred e
os corpos deixados para trás por Michael Myers evidenciavam que a classe média
não estava mais segura. Esses filmes não foram baseados em jogos simplistas,
mas o “horror” era parte latente do subúrbio, seu desligamento era impossível.
A falta de limites ficou evidente na manifestação sinistra que Fred
representava; o sono estava ameaçado, até o mais resguardado nível do descanso
não desempenhava mais uma guarda segura. A partir de maio de 1968, os jovens
reverteram a ordem e alteraram as relações de poder. Mas algo ainda estava
guardado.
Mas o que A Corrente do Mal teria
a ver com isso? Esse filme é resultado objetivo dos desdobramentos de obras
sinistras criadas nos anos 70 e retorna com novo fôlego; tudo o que os EUA se
orgulham de seu “estilo de vida” está lá. O filme carrega lendas “bem sucedidas
norte americanas”- os parques, as casas sem muro, a vizinhança tranquila, os
carros, a piscina no quintal- e as transmuta em seus mais contrários
movimentos. Evidência disso é quando os jovens ultrapassam os “limites” do
subúrbio.
Mas, mesmo assim, A Corrente do
Mal trata de temas que correspondem a certo ideário de juventude (branca,
magra) de uma maneira clássica, ao mesmo tempo rejeitando clichês. Os adolescentes querem fazer sexo, mas ao contrário de filmes como A Casa de Cera,
por exemplo, esse ato nunca é confortável; há sempre algo de estranho no ato
sexual (e os ângulos escolhidos por Mitchell utilizam muito disso). É um filme
de grandes mosaicos (o primeiro que a protagonista fica amarrada em uma cadeira
de rodas é impressionante), de cadência lenta e que utiliza de signos
usualmente associados ao prazer (adolescentes em casacos de times de futebol
dando uns beijos) para ironizar a saturação desses símbolos. É como se aquelas
imagens que certa hora nos tranquilizassem tivessem perdido qualquer resquício
de ingenuidade. Tanto que a inocência não aparece em nenhum momento emA Corrente do Mal , já que temos aquele primeiro plano. Sim, Pânico já utilizou
dessas mesmíssimas técnicas, mas esse novo filme de Mitchell diminui o tom; impossibilita qualquer diversão. Uma cena em que
dois jovens sentados no sofá falam alegremente sobre seu primeiro beijo é
desestruturada por uma simples mudança de ângulo da câmera. O filme, ainda que farpeando
dessas imagens saturadas, as utiliza para algo muito mais poderoso que eu não
via há tempos em filmes desse gênero; um estado calado permanente, em que
reclusão e certa timidez destoam de ambientes tão intencionalmente
padronizados, idealizados e belos. É esse labirinto que inicialmente mencionei
em que os personagens são mais ou menos parecidos e eles não estão inclinados a
nenhuma grande atitude seja de humor ou exclamação de temor (a não ser quando a
Coisa em si aparece). Essa ressignificação e certa inclinação à morbidez e a
melancolia que cortam o filme de qualquer ação melodramática. E isso tornaria o
filme de Mitchell apenas interessante não fosse o horror intrínseco em cada
cena.
A Corrente do Mal caminha entre a
exploração dessas imagens intencionalmente belas e óbvias (o primeiro plano),
aplica a obviedade do gênero nessas cenas (a calma que é interrompida), e a
partir desses pontos, o filme tenta encontrar alguma vida que pulsa naqueles
jovens. As situações de A Corrente do Mal sempre descaracterizam esse ideário
instituído para atravessar e revelar, quase sempre simetricamente, até como um
retrato perfeccionista, o caráter voyeurístico de pessoas que esperam apenas
sangue ou perseguições (tanto que as perseguições são curtas e interrompidas).
É significativo que o único “eu te amo” do filme seja entregue quando a
personagem inicial já se rendeu. Ela compreendeu a fragilidade que se encontrava
e a partir dessa compreensão pôde realmente dizer algo. As casas espaçosas, as
ruas largas e as belas árvores outonais são simulacro de uma existência, são
símbolos-enfeites para fetichizar certo padrão de vida. Os familiares ausentes,
a nostalgia da infância e a agregação onipresente de “sexo-morte” instauram
jovens amputados e que reproduzem todo o ambiente idealizado que vivem.
O plano depois da abertura de A
Corrente do Mal focaliza em outra jovem do subúrbio. O filme não se trata de
individualidades, mas sim de certa indiferença que “persegue” essa geração.
Perdida na piscina, Jay observa a calma que a cerca. De volta para casa, ela
recusa um convite da irmã e seus amigos para ver um filme. Ela tem um encontro.
Parecem situações corriqueiras, mas é o olhar da garota que denota certa
morbidez. Ela integra totalmente sua época e cumpre exatamente seu papel ao
esperar “encontro com rapaz legal, conhecê-lo e fazer sexo”. Funde-se a sua
normalidade a dos outros jovens; eles vão ficar em casa assistindo filmes de
terror antigos. Entre esses jovens e a mãe de Jay, que está na cozinha, há
várias barreiras; eles estão de costas, há o sofá e também uma parede. Jay
começa a transar com o rapaz dentro do carro até, depois do ato, ser dopada
por ele. O plano que ela acorda é assombroso; um mosaico arruinado com várias
entradas e saídas, o rapaz que a drogou está do seu lado e ela está amarrada em uma cadeira de
rodas e sua boca está laçada. O garoto conta para ela a maldição que ele a
“transmitiu” via sexo. Trata-se de uma maldição que vai caçá-la, lentamente,
até que ela a passe andante transando com outra pessoa. Um gênero como esse,
normalmente, tentaria criar um ambiente por pessoas que não acreditam nessa
maldição; mas em A Corrente do Mal, Jay é sustentada pelos seus amigos. Essa é
a forma que Mitchell apela para a juventude e é só em seus comportamentos mais
usuais (para o bem e para o mal) que Jay pode encontrar conforto e sentir
alegria de vez em quando. Dessa maneira, esses jovens compreendem que sua
cidade (Detroit) é o espaço que eles podem agir como agentes modificadores.
Falar sobre como a sobrevivência,
em A Corrente do Mal, não está ligada às artimanhas e sim a um cerne de castigo
(morte por sexo) é uma das principais reflexões do filme. É uma sobrevivência mais
essencial e por tanto mais difícil, pois lida com traumas e reproduções
externas de situações vividas (a “coisa” sempre tem forma de alguém). Esta é
uma obra que não visa uma redenção, mas se trata, sobretudo, da construção de
ambientes que personificam camadas inseguras e objetivamente frágeis. As várias
cores dos cenários visitados não são o suficiente para excluir a “monocromia”
de Jay; apenas o horror consegue. Nada acontece no filme a não ser as
alterações crônicas do ambiente. Pois as mudanças do horror também se adaptam e
se rendem aos ambientes vastos. Eles se impõem ao horror (ao contrário de todos
os filmes mencionados anteriormente) e, se o horror não se molda ao ambiente,
ele seria pulverizado. É como se ele não fosse o suficiente, como se ele fosse
incompleto. Esse jogo pode ser encarado como a “retirada” das máscaras desses
jovens que se percebem suspensos nesses espaços. A Corrente do Mal é uma obra-prima sobre o fascínio
e seus subsequentes desencantos. Há quem talvez não consiga visualizar essas
abruptas quebras e a ironia dos planos banhados de cor e como os zooms operam
não só como ferramentas autorreferenciais (obviamente uma homenagem a outros
filmes do gênero), mas, intencionalmente, já revelam uma América superada. A
Corrente do Mal flagra no ultramodernismo que vivemos condições históricas que
não mais personificam essa geração. Os jovens não querem mais esse debate. O
filme investiga a pulverização de um objeto específico como signo do horror
para ser ampliado em um ambiente constantemente ameaçador, ainda que muito
abstrato.
A importância histórica de A
Corrente do Mal está situada nas transformações de Detroit e como essa cidade
representa os vários estágios socioeconômicos que os EUA passaram nos últimos
cento e cinquenta anos e como essa constante mutação foi capaz de destruir
qualquer ideia de segurança possível. A transferência constante de signos de
satisfação pessoal (carros e propriedades distantes do centro urbano) já está
completamente naturalizada com o horror. A busca pelo rapaz que passou a
maldição para Jay mergulha em bairros pobres, casas desabitadas, fábricas que
não mais funcionam e moradores de rua- o mito americano transformou-se em um
refúgio de fantasmas. A Corrente do Mal se apropria das visões que Jay tem da
janela do carro para explorar como as próprias ruínas já se transformaram em
parte intrínseca do deserto de promessas quebradas.
Mas A Corrente do Mal não
pretende estudar relações que formaram o mito do horror. O filme não advoga que
essas ruínas são a causa do horror, absolutamente não. Mitchell, através dos adolescentes,
poetiza o desamparo de uma geração e seus olhares carregados para o deserto
urbano que os faz sentir tão solitários. O que poderia ser as ruínas de Detroit
se não a constatação da desgraça que essa geração experimenta a cada caminhada
na rua e a falta de eco quando tentam expressar essa visão? A Corrente do Mal é
sobre a vertigem de se proteger em espaços que necessariamente nunca foram
protetores, apenas idealizados dessa forma. O filme de Mitchell revoga que, já
que sempre vamos ser caçados, podemos estar desprotegidos apostando na vastidão
que essas ruínas ainda podem oferecer. A Corrente do Mal reconhece que a fuga é
impossível; mas estar desprotegido não significa que não há mais espaços para
explorar.
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