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terça-feira, 5 de janeiro de 2016

David Robert Mitchell - A Corrente do Mal (It Follows, EUA, 2014)

A Corrente Do Mal é um filme labiríntico. Poderia ser um filme de “ver o que vai acontecer”, mas aqui a pulsação da sensação de perseguição não precede o desastre propriamente dito. Ela é o desastre. Se o diretor Roger Corman foi a porta de entrada para muitos do que se convencionou de chamar filmes B, a transformação do gênero “horror” passou de pesadelos monstruosos como metáfora da invasão comunista, para se desvirtuar das monstruosidades de Corman e representarem um retrato de microestruturas falidas dos Estados Unidos. Microestruturas sociais que, conforme a obra de Romero, aos poucos escavava no indivíduo e encontrava base em diversos ramos da ciência, em especial na psicanálise. É justo ressaltar que o “horror” se espalhou como gênero importantíssimo para o desenvolvimento do cinema, especialmente a partir dos anos 1970 (considerando os Estados Unidos), e que, talvez, foi o que mais de genuíno existiu sob os holofotes durante um tempo considerável para aquele público e aquele tipo de cinema. Isso porque a ameaça se estabeleceu nos subúrbios norte-americanos. A perseguição de Fred e os corpos deixados para trás por Michael Myers evidenciavam que a classe média não estava mais segura. Esses filmes não foram baseados em jogos simplistas, mas o “horror” era parte latente do subúrbio, seu desligamento era impossível. A falta de limites ficou evidente na manifestação sinistra que Fred representava; o sono estava ameaçado, até o mais resguardado nível do descanso não desempenhava mais uma guarda segura. A partir de maio de 1968, os jovens reverteram a ordem e alteraram as relações de poder. Mas algo ainda estava guardado.

Mas o que A Corrente do Mal teria a ver com isso? Esse filme é resultado objetivo dos desdobramentos de obras sinistras criadas nos anos 70 e retorna com novo fôlego; tudo o que os EUA se orgulham de seu “estilo de vida” está lá. O filme carrega lendas “bem sucedidas norte americanas”- os parques, as casas sem muro, a vizinhança tranquila, os carros, a piscina no quintal- e as transmuta em seus mais contrários movimentos. Evidência disso é quando os jovens ultrapassam os “limites” do subúrbio.


Mas, mesmo assim, A Corrente do Mal trata de temas que correspondem a certo ideário de juventude (branca, magra) de uma maneira clássica, ao mesmo tempo rejeitando clichês. Os adolescentes querem fazer sexo, mas ao contrário de filmes como A Casa de Cera, por exemplo, esse ato nunca é confortável; há sempre algo de estranho no ato sexual (e os ângulos escolhidos por Mitchell utilizam muito disso). É um filme de grandes mosaicos (o primeiro que a protagonista fica amarrada em uma cadeira de rodas é impressionante), de cadência lenta e que utiliza de signos usualmente associados ao prazer (adolescentes em casacos de times de futebol dando uns beijos) para ironizar a saturação desses símbolos. É como se aquelas imagens que certa hora nos tranquilizassem tivessem perdido qualquer resquício de ingenuidade. Tanto que a inocência não aparece em nenhum momento emA Corrente do Mal , já que temos aquele primeiro plano. Sim, Pânico já utilizou dessas mesmíssimas técnicas, mas esse novo filme de Mitchell diminui o tom; impossibilita qualquer diversão. Uma cena em que dois jovens sentados no sofá falam alegremente sobre seu primeiro beijo é desestruturada por uma simples mudança de ângulo da câmera. O filme, ainda que farpeando dessas imagens saturadas, as utiliza para algo muito mais poderoso que eu não via há tempos em filmes desse gênero; um estado calado permanente, em que reclusão e certa timidez destoam de ambientes tão intencionalmente padronizados, idealizados e belos. É esse labirinto que inicialmente mencionei em que os personagens são mais ou menos parecidos e eles não estão inclinados a nenhuma grande atitude seja de humor ou exclamação de temor (a não ser quando a Coisa em si aparece). Essa ressignificação e certa inclinação à morbidez e a melancolia que cortam o filme de qualquer ação melodramática. E isso tornaria o filme de Mitchell apenas interessante não fosse o horror intrínseco em cada cena.
A Corrente do Mal caminha entre a exploração dessas imagens intencionalmente belas e óbvias (o primeiro plano), aplica a obviedade do gênero nessas cenas (a calma que é interrompida), e a partir desses pontos, o filme tenta encontrar alguma vida que pulsa naqueles jovens. As situações de A Corrente do Mal sempre descaracterizam esse ideário instituído para atravessar e revelar, quase sempre simetricamente, até como um retrato perfeccionista, o caráter voyeurístico de pessoas que esperam apenas sangue ou perseguições (tanto que as perseguições são curtas e interrompidas). É significativo que o único “eu te amo” do filme seja entregue quando a personagem inicial já se rendeu. Ela compreendeu a fragilidade que se encontrava e a partir dessa compreensão pôde realmente dizer algo. As casas espaçosas, as ruas largas e as belas árvores outonais são simulacro de uma existência, são símbolos-enfeites para fetichizar certo padrão de vida. Os familiares ausentes, a nostalgia da infância e a agregação onipresente de “sexo-morte” instauram jovens amputados e que reproduzem todo o ambiente idealizado que vivem.

O plano depois da abertura de A Corrente do Mal focaliza em outra jovem do subúrbio. O filme não se trata de individualidades, mas sim de certa indiferença que “persegue” essa geração. Perdida na piscina, Jay observa a calma que a cerca. De volta para casa, ela recusa um convite da irmã e seus amigos para ver um filme. Ela tem um encontro. Parecem situações corriqueiras, mas é o olhar da garota que denota certa morbidez. Ela integra totalmente sua época e cumpre exatamente seu papel ao esperar “encontro com rapaz legal, conhecê-lo e fazer sexo”. Funde-se a sua normalidade a dos outros jovens; eles vão ficar em casa assistindo filmes de terror antigos. Entre esses jovens e a mãe de Jay, que está na cozinha, há várias barreiras; eles estão de costas, há o sofá e também uma parede. Jay começa a transar com o rapaz dentro do carro até, depois do ato, ser dopada por ele. O plano que ela acorda é assombroso; um mosaico arruinado com várias entradas e saídas, o rapaz que a drogou está do seu lado e ela está amarrada em uma cadeira de rodas e sua boca está laçada. O garoto conta para ela a maldição que ele a “transmitiu” via sexo. Trata-se de uma maldição que vai caçá-la, lentamente, até que ela a passe andante transando com outra pessoa. Um gênero como esse, normalmente, tentaria criar um ambiente por pessoas que não acreditam nessa maldição; mas em A Corrente do Mal, Jay é sustentada pelos seus amigos. Essa é a forma que Mitchell apela para a juventude e é só em seus comportamentos mais usuais (para o bem e para o mal) que Jay pode encontrar conforto e sentir alegria de vez em quando. Dessa maneira, esses jovens compreendem que sua cidade (Detroit) é o espaço que eles podem agir como agentes modificadores.
Falar sobre como a sobrevivência, em A Corrente do Mal, não está ligada às artimanhas e sim a um cerne de castigo (morte por sexo) é uma das principais reflexões do filme. É uma sobrevivência mais essencial e por tanto mais difícil, pois lida com traumas e reproduções externas de situações vividas (a “coisa” sempre tem forma de alguém). Esta é uma obra que não visa uma redenção, mas se trata, sobretudo, da construção de ambientes que personificam camadas inseguras e objetivamente frágeis. As várias cores dos cenários visitados não são o suficiente para excluir a “monocromia” de Jay; apenas o horror consegue. Nada acontece no filme a não ser as alterações crônicas do ambiente. Pois as mudanças do horror também se adaptam e se rendem aos ambientes vastos. Eles se impõem ao horror (ao contrário de todos os filmes mencionados anteriormente) e, se o horror não se molda ao ambiente, ele seria pulverizado. É como se ele não fosse o suficiente, como se ele fosse incompleto. Esse jogo pode ser encarado como a “retirada” das máscaras desses jovens que se percebem suspensos nesses espaços.  A Corrente do Mal é uma obra-prima sobre o fascínio e seus subsequentes desencantos. Há quem talvez não consiga visualizar essas abruptas quebras e a ironia dos planos banhados de cor e como os zooms operam não só como ferramentas autorreferenciais (obviamente uma homenagem a outros filmes do gênero), mas, intencionalmente, já revelam uma América superada. A Corrente do Mal flagra no ultramodernismo que vivemos condições históricas que não mais personificam essa geração. Os jovens não querem mais esse debate. O filme investiga a pulverização de um objeto específico como signo do horror para ser ampliado em um ambiente constantemente ameaçador, ainda que muito abstrato.

A importância histórica de A Corrente do Mal está situada nas transformações de Detroit e como essa cidade representa os vários estágios socioeconômicos que os EUA passaram nos últimos cento e cinquenta anos e como essa constante mutação foi capaz de destruir qualquer ideia de segurança possível. A transferência constante de signos de satisfação pessoal (carros e propriedades distantes do centro urbano) já está completamente naturalizada com o horror. A busca pelo rapaz que passou a maldição para Jay mergulha em bairros pobres, casas desabitadas, fábricas que não mais funcionam e moradores de rua- o mito americano transformou-se em um refúgio de fantasmas. A Corrente do Mal se apropria das visões que Jay tem da janela do carro para explorar como as próprias ruínas já se transformaram em parte intrínseca do deserto de promessas quebradas.

Mas A Corrente do Mal não pretende estudar relações que formaram o mito do horror. O filme não advoga que essas ruínas são a causa do horror, absolutamente não. Mitchell, através dos adolescentes, poetiza o desamparo de uma geração e seus olhares carregados para o deserto urbano que os faz sentir tão solitários. O que poderia ser as ruínas de Detroit se não a constatação da desgraça que essa geração experimenta a cada caminhada na rua e a falta de eco quando tentam expressar essa visão? A Corrente do Mal é sobre a vertigem de se proteger em espaços que necessariamente nunca foram protetores, apenas idealizados dessa forma. O filme de Mitchell revoga que, já que sempre vamos ser caçados, podemos estar desprotegidos apostando na vastidão que essas ruínas ainda podem oferecer. A Corrente do Mal reconhece que a fuga é impossível; mas estar desprotegido não significa que não há mais espaços para explorar.

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