CURTA NOSSA PÁGINA NO FACEBOOK

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Adeus, Mineral

When I was a boy I could hear
Symphonies in seashells
So why am I so deaf at twenty-two
To the sound of the driving snow
That drives me home to you

Uma pequena tradição: ir pra casa da minha parceira ouvindo Mineral. Eu lembro bem, exatamente tudo vem pra minha mente em um fluxo incontrolável de memória involuntária. Os longos, intermináveis dias em um quarto escuro, ouvindo EndSerenading e The Power Of Failing- me identificando completamente com as letras de Simpson, que em suma tratavam de sentimentos como ansiedade, tristeza, isolamento e desconforto. Identificando talvez seja uma palavra forte. Não havia processo algum de identificação ali. Mas sim um acolhimento entre duas fontes (eu e a música) que tratavam a vida e os acontecimentos centrados no “interior do mundo” com um espanto imenso.

Afinal, como as pessoas faziam o milagre de existir? Como as pessoas passavam a um plano de convicção absoluta de realidade e ali residiam, sabendo sorrir e chorar na hora certa?

-Falta empatia em você, Henrique.

Sempre me diziam isso. Absolutamente toda hora. Mas eu me simpatizava muito com vários enigmas- a borboleta se debatendo pelo excesso de luz, as crianças gordinhas com cara de emburradas no banco do ônibus, os cachorros velhos e abandonados que não conseguem mais latir. Esse “simpatizar com certas coisas mortas” foi motivo para uma surpresa comovente de minha mãe, que em alguma hora do ido dos meus dezesseis anos, disse:

- Esse negócio de você ficar espantado pelo crepitar das folhas no chão e pelas árvores secas de Inverno não faz sentido.
-
E hoje, ouvir Mineral continua sendo uma espécie de rito sagrado. Enquanto dirijo para a casa da parceira e aquelas guitarras dilacerantes alternam com as lamúrias vocais, eu sinto uma saudade. Uma nostalgia imensa do garoto que fui. Quero desesperadamente utilizar uma máquina do tempo e voltar ao garoto que fui e dizer


- Vai tudo ficar bem. Você só tem que suportar com esperança. Afinal, esse é seu período de esperar a estalagem até que chegue a diligência do abismo.
Ele tinha muita vergonha e medo de tudo. Mas faltou alguém falar para ele que aquela timidez e pavor, embora reconhecidos como fracassos no mundo das representações, era sua potência para outro mundo.

E se eu tivesse morrido em um dos dois acidentes de carro em que me envolvi (ambos os carros ficaram amassados com o teto no chão) eu não teria tempo de me reconhecer e tudo teria sido sufocado num grito mudo eterno em baixo do solo.

Faltou alguém dizer para aquele garoto que todas as coisas que o mundo insistia em melhorar com psicanalistas, livros de auto-ajuda ou casas corretivas apenas representavam a doença de “luminosidade” que dominava seu mundo-casa, seu mundo-escola ou seu mundo-amigos. Um mundo de medidas pronto para massacrá-lo com exigências de opinião, progresso e bem-estar.

Hoje eu sei disso tudo e falo de boca cheia. E se eu insisto em ouvir Mineral, mais do que pra representar “como me sinto” atualmente, é para lembrar aquele período que vivi e pensei que seria eterno. Quando acabo de cantarolar The Last Word Is Rejoice- as milhares de luzes de carro atravessando o vidro e morrendo mais fracas nos meus olhos, o céu vasto noturno sem estrelas-eu estaciono, abro a porta do carro (sou tomado de surpresa pela forte corrente de ar quente) e sorrio.

Ela sai para a manhã, deixando o sol secar seu cabelo, eu queria dizer como ela estava bonita, mas apenas encarei. Sua presença dobrando meus medos como aviões de papel, perdendo-os nas árvores.
E todas as coisas que eu pensei que não merecia- a capacidade de sentir, chorar e louvar por viver, respirar e acordar todo dia- se convergia naquela sensação efêmera de compartilhar o mundo com uma graça, em um estranho movimento glorioso.

Então, eu ainda carrego aquele garoto dentro de mim todos os santos dias, mas eu já não me reconheço nele. Embora deva absolutamente tudo a ele.

How blessed we are for crying now,
For we will laugh someday…and how

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Hilton Lacerda e a redução da dor - Tatuagem (Brasil, 2013)

"Olhe para cada ser existente como sendo uma entrada para outro lugar."
― Tom Stoppard, Rosencrantz and Guildenstern Are Dead

Hilton Lacerda decididamente gosta do que atravessa os planos. Isso fica muito específico nas cenas que encerram Tatuagem- um filme “dentro” do filme supostamente experimental, dirigido por um intelectual filósofo amigo do grupo Chão de Estrelas- onde a única nostalgia verdadeiramente transmitida é as lembranças que adquirimos menos de duas horas atrás, ao sentar na poltrona. Aí é que temo que nosso cinema dito marginal resida- numa mera projeção de colorações “apenas” vivas resplandeçam e tomem o espaço de tudo que também deveria ser periférico.

A fragilidade de Tatuagem pode ser medida na relação simpática que o público adquire com as personagens- todas e todos são queridos! Embora o filme dialogue sim com conceitos de criação, arte e composição, sua saturação onde quase tudo é harmônico estimula sua vulnerabilidade. Essa impressão de um cinema onde, sim, as “leis” vigentes são desrespeitadas e todas as morais parecem ir para o ralo sofre de um aneurisma impressionante. Ora, todas as morais não vão para o ralo! Na combinação de entretenimento e discurso sociopolítico sua força peca em ambos.

Vale notar que a principal locomotiva do filme são duas figuras emblemáticas no cinema nacional contemporâneo. A fotografia de Ivo Lopes Araujo e a atuação de Irandhir Santos justificam os registros. As cenas de Santos surgem com alto teor de entrega, como se ele quisesse se emancipar do que no cinema é “pronto”. Ele revitaliza cenas perdidas e toda carga dramática do filme gira em torno de sua figura, produzindo contrapontos e ambigüidades, sofrimento e alegria juntos, abraçados. Essa singular manifestação combina com a entrega de seu personagem em sua arte. Os nervos expostos, a musculatura de Irandhir apresentando robustez em estado de tensão- como se qualquer momento fosse o clímax.


A participação de Araujo talvez, ironicamente, justifique certa preguiça de Lacerda na direção. Reconhecidamente um dos fotógrafos mais importantes do cinema nacional contemporâneo, sempre figurando em filmes com pequenos orçamentos, sua fotografia realiza um majestoso jogo cênico com os atores, nunca deixando as cenas “vazias” (o que seria um crime para outro tipo de cinema). É justamente seu pulso que torna as personagens menos “curiosidades” e mais palpáveis, especialmente nas fantásticas coreografias que envolvem o grupo Chão De Estrelas. E não é por abelhudice que o filme peca- Kleber Mendonça Filho fez isso magnificamente em Som Ao Redor- mas é uma clara defasagem entre o que foi apresentado e o que tentou ser o discurso do filme.
O principal problema de Tatuagem, o que acarreta em diversas divergências nas seqüências de cenas, é a “limpeza” da marginalidade. Embora, todos nós concordamos, seja linda uma defesa tão vigorosa da maneira anárquica que a trupe leva a vida, o que temos na constituição desse ambiente em Lacerda é um processo onde todos “têm” razão- uma facilidade superabundante em nos recolhermos nesses personagens. Nós- a classe média- não ficamos nem um pouco incomodados com o filme. Antes de proferir um “comunismo pequeno burguês”, opto pela ingenuidade e paixão pura do projeto. Eduardo Coutinho, conhecido por retirar beleza de situações do cotidiano, consegue incomodar e discursar sobre uma determinada classe com muito mais vigor no belo Jogo De Cena (2007). O que qualifica o documentário de Coutinho mais que o discurso de Lacerda é justamente sua intensidade na dramaturgia- no desenrolar de Tatuagem, temos a impressão sempre que está tudo muito bem e o Brasil é um país que recolhe bem transexuais, travestis, pobres, negros e poliamorosos. Qual a necessidade de algo intitulado como “marginal” se não sentimos uma ameaça ou nada é verdadeiramente transgredido?

Incomoda-me muito a positividade reinante no filme. Em um dos momentos que, pela construção, surgiria um “clímax”, na reconciliação de Paulete com Clécio, o que temos são meras ruminações. Não é um filme de rupturas e dói demais ver um ator como Irandhir simplesmente chorar em vão. Vejam bem, não é como se as personagens não fizessem besteira. Mas a construção do filme é tão solidificada em cima desse “bem-estar” que não acreditamos. Suas personagens falecem de um bem eterno que não encontramos nem em histórias das Disney. Há diversas relações possíveis entre seres humanos tão “libertos” de convenções e doutrinas sociais como afirmam serem os representantes do Chão De Estrelas, mas Lacerda teima em reduzir as ações e reconduzi-las a uma espécie de “pureza marginal”. Lacerda quer dizer o que para nós? Na tentativa de defender um “modo de viver” ele faz apenas uma declaração de amor intragável desse estilo.

Espantoso isso se considerarmos que Hilton Lacerda é um roteirista experiente. Temos um drama que nos retrai à medida que seu desenvolvimento se “prolonga”, sempre optando por saídas mais fáceis e reconciliações estancadas. Cenas como a da tatuagem, que deveria ter forte impacto no público, ficam condicionadas a toda a afirmação nauseante que é o filme.  Por isso devemos duvidar, também, do tão chamado “cinema de autor”. Obviamente, se o autor não tem nada a dizer, para onde ir, então? Ficaremos reclusos à boa atuação do protagonista e aos planos deslumbrantes do fotógrafo? Nós já chegamos a um ponto da Arte em que não precisamos desses “fofismos” escondidos sobre a fantasia de “cinema marginal”.

E não quero aqui promover um manifesto contra a celebração. Celebração e êxtase se confundem porque convivem com o horror e a angústia. Uma comemoração autêntica exige contrapontos porque a existência não é desenhada apenas em um plano. Pior, nem a defesa de certo estilo de vida (se falamos em uma defesa sólida) é escrita apenas por um viés. Temos o erro do desígnio histórico em um filme que pretende ser contra designações. Filmes como Os Monstros (dirigido pelo coletivo formado por Luiz Pretti, Ricardo Pretti, Pedro Diógenes e Guto Parente) apontam para um futuro menos condicionado e mais caótico, cujos prazeres são experimentados na carne.
Sem perversão não há cinema. Sem perversão não há arte. Há muito que se duvidar de um filme onde uma dicotomia simples é construída, “quartel x Chão das Estrelas”, e temos uma exaltação da vida dos artistas ao mesmo tempo em que os militares se mostram sempre carrancudos e nervosos. Sabemos que não é assim. Nunca foi.

Tatuagem acaba pro ser um filme que recusa o conflito. Um feel-good movie para um público dito “alternativo”, mas que carrega os mesmos clichês dos filmes que lotam as salas de cinema. Tatuagem não tem coragem de indagar, não tem coragem de mostrar o exército metendo bordoada no cabaré, não tem coragem de mostrar a dor de Paulete, não tem coragem de se debruçar sobre o “seu” Romeu e Julieta. Hilton Lacerda prefere deixar tudo para fora de campo. Mas essa jogada, aqui, não trabalha com nosso espectro especulativo, com nosso recolhimento de signos externos. Ele não quer dor. Simplesmente. Se eu teimo muito em zombar de filmes panfletários, Tatuagem não quer zombar de nada. Tatuagem é uma paródia das coisas que mais quis atacar e tenta nos seduzir justamente pelo que nunca vai poder ser. Isso é; um filme que problematiza o inter-relacionamento entre diferentes ideologias em um período de opressão. O problema é que Hilton Lacerda não só não consegue problematizar, mas consegue reduzir algo tão sério e grave.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

The Arms of Sleep - Chinese Houses [2014]

Acredito que, para muitos de vocês, a maior dificuldade hoje em dia é, “onde catalogar música boa e daí descobrir algo que realmente valha à pena”? Eu mesmo já segui e fui atrás de vários sites para “acompanhar”, até que dei um chega- pelo menos pra mim, que conheço uma quantidade relativa de gente cujo gosto eu considero “próprio”, as informações tem simplesmente chegado. Deste modo, surgem diferentes ritmos- um mais dissonante e maluco que o anterior- que caem no meu colo e descubro uma grata surpresa. Note-se que, obviamente, o primeiro lançamento do The Arms Of Sleep é um desses registros que surgem quando todas as listas de melhores discos já foram feitas e abala sua própria noção de música. Fico muito, muito contente com a capacidade sistêmica de a música me surpreender.

A integração dos sons compõe sistemas de conceitos que não sabíamos que habitavam em nós- calma, tranqüilidade, relaxamento e paz. Mesmo nos seus instantes mais tensos e fragmentados, Chinese Houses se estabelece como uma proposta fixa de que, no fim, há uma espécie inflexível de calma. Mais do que isso, todos os sons “paralelos” às melodias principais intensificam essa sensação. Tudo isso se envolve numa obra que, quando visitada de uma só vez, corporifica em seu fim tudo o que esperávamos desde seus primeiros versos. Não é como simples “fim, inicio e começo”, não! Mas uma continuidade que vai resistir mesmo quando o disco acabar. As melodias são eficientes ao ponto do instrumental resistir ao mundo externo. Cole Weiche (que é o The Arms Of Sleep) influência nossa percepção sensorial a esse ponto.

O contexto em que vivemos- um amontoado urbano cacofônico, trágico, perturbardor- necessita de pausas tão serenas e meditativas como The Arms Of Sleep. Para nossas perspectivas não persistirem tão depressivas e amparadas em um estado inerte de melancolia. Outras perspectivas merecem serem erguidas e construídas como “esperanças”- porque ao existir uma esperança, existe um momento de espera. O momento de espera é sagrado à medida que este providencia transcendências apesar da realidade.


Embora tenha lá seus clímaces, Chinese Houses é construído sobre um sistema de pensamento decididamente sereno. Um sistema de pensamento que planeja rotas de fuga da velocidade opressiva do mundo. Um período para fechar os olhos e respirar fundo. Não tem uma finalidade porque vamos precisar de instantes assim a todo o momento. Chinese Houses é o presente que merece ser desfrutado, esquecido por preocupações mundanas e temporais. No entanto, há vários “cortes” que desconstroem a música- como para lembrar o fim da efemeridade. Chinese Houses se torna ele próprio um paradigma de suas esperanças. Se repararmos bem, seu interior está cheio de “desconstruções”. Isso porque Cole sabe bem que música não é utopia. Na falta de construções objetivas- temos a esperança. É um disco que clama por nossa relação com ele. É um disco que, de certa forma, nos compreende. Um ponto para fugir. Um ponto no meio do caos.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Gustavo Jobim- Tsunami [2014]

Gostaria de lembrar que, segundo seu bandcamp, Gustavo Jobim encerrou 2014 com sete trabalhos lançados. O que já é fascinante por si, mas ao analisar vários desses trabalhos (uma pena que não consegui resenhar todos, pois merecem) percebe-se que o compositor carioca aplica uma abordagem, sutil ou bruscamente, distante em suas obras. Isso impressiona mais ainda, pois (creio) que os instrumentos com o qual ele viabiliza sua música são basicamente os mesmos. Podemos começar lembrando que o excelente Inverno, lançado no primeiro dia de 2014, tem uma estética rigorosa e relativamente divergente de Tsunami- se em Inverno temos uma ambientação fria e desolada, em Tsunami temos sobreposições que atingem proporções bem ruidosas. Os momentos mais “quietos” simbolizam uma ameaça. Como uma ponte que lentamente vai se deteriorando, até os estalidos se juntarem compreendidos em uma massa sonora. Talvez seja um tipo de música que resida no nosso medo. Certamente, por um desconhecido retumbante que vai se formando visualmente enquanto ouvimos.

A criação de Jobim implica no mistério. Uma admiração que não se fundamenta na técnica. Como se fossem formas abandonadas que reclamam por sua existência em um mundo que não é tão nítido. É uma música que não cria seus parâmetros em medidas regulares. Como se fosse uma espécie de deboche, “suas medidas valem do que, hein?”. O “eletrônico progressivo” em que seu corpo musical se insere, claramente não caminha ao lado do “progresso” da cena musical contemporânea. Creio que Gustavo Jobim não se importa com isso. Embora ele tenha suas preferências musicais, o que vemos ao longo desse ano de lançamento é uma criação cada vez mais individualizada, singular. Jobim acredita em seu trabalho e isso basta.

Todos os sons que integram as duas faixas parecem com desencontros que “tem” de estar no mesmo bloco. É como se os blocos sonoros ruidosos fossem simplesmente inevitáveis. Por isso a espera antes da “junção”, os micro sons se organizam e merecem existir tanto quanto quaisquer outros. Quase no encerramento de Atlantis, percebemos uma melodia. Uma melodia que segue certo “esquema” e também reclama sua existência. Essa melodia seguida de uma espécie de microfonia que vai encerrar a obra. Tudo isso é música! Os blocos sonoros, a “ambientação” quase muda.


Gustavo Jobim manteve ao longo desse ano um corpo sonoro sóbrio que se recusou a ir por caminhos fáceis. Uma obra que dá espaço para diversos segmentos, obviamente dentro de uma espécie de “ética de criação”. Percebe-se que ele tem essa necessidade imensa de criação. Preservando uma inquietação que traduz em suas modulações, sempre sob a casta de algum “mistério”. Se me perguntarem seu “papel” na música brasileira, certamente não vou ter respostas. Talvez a melhor resposta seja; “entregar”, simplesmente assim.

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

30 Melhores álbuns de 2014

Foi uma alegria fazer essa listinha. Tanta coisa boa deixada de fora, mas creio que os escolhidos DEVEM ser ouvidos por todo mundo.

30- Paul Baran -The Other 
The Other Um álbum eletro-acústico político! Uma fusão bizarra de colagens sonoras com ruídos, mas ainda dá para dançar. Muito experimental, muito divertido.

29- Gustavo Jobim - Inverno 
InvernoGustavo Jobim é um cara que tem tanta coisa boa esse ano, que até fiquei em dúvida. mas fico com Inverno, lançado no primeiro dia de 2014 e um contra-ponto estético ao nosso verão colorido muito bem construído.

28- Cadu Tenório- Cassettes 
CassettesCassetes é um espaço vazio para as colagens, que revelam um músico distante de uma autoconstrução racionalizada, em meio a reflexões múltiplas que contemplam uma obra carregada e sombria.

27- Darius Jones- The Oversoul Manual 
The Oversoul ManualCom certeza um dos discos mais ambiciosos desse ano. Um trabalho realmente "futurista" e complexo.

26- Ideal Bread- Beating the Teens: Songs of Steve Lacy 
Beating the Teens: Songs of Steve LacyDizem que essa é uma captura muito semelhante das insanas apresentações ao vivo do conjunto. Para fãs de música que não admitem a ideia de "fronteiras".

25- Paul Bley- Play Blue - Oslo Concert 
Play Blue - Oslo ConcertMais de cinquenta anos de carreira e o mestre continua com um piano PERFEITO.

24- Dan Weiss- Fourteen 
FourteenUma belíssima composição com espaço para improvisos e solos. Estes que são tão integrados à composição que não aparentam ser solos. Não é um disco para "balançar" (como o começo dele sugere), mas nem precisa. Está muito ocupado explodindo sua mente durante o processo.

23- Concreto Morto Viver-só 










Um álbum que representa fielmente a sensação de exílio.Para berrar.


22- Moskus Mestertyven 
MestertyvenTudo livre improviso; canto, piano,instrumentos de sopro. Tudo junto evoca uma rara beleza. Com certeza é um disco que ainda tenho que ouvir mais vezes, mas meus ouvidos pedem uma visita todo santo dia.

21-Gazelle Twin- Unflesh 
UnfleshA catarse com que esse disco aborda temas tão caros e que, por algum motivo louco, são pouquíssimos explorados na música.

20-This Lonely Crowd Möbius and the Healing Process 
Möbius and the Healing ProcessEm Mobius and the Healing Process, o This Lonely Crowd nos contempla com infusões profundas em diversos aspectos sonoros. Na produção contemporânea acelerada, onde muitos falam que a música está em ruínas (e não dizem isso há cinquenta anos?), essa banda consegue um verdadeiro sucesso estético ao resignificar distintas abordagens em um ambiente tão transbordante.

19-Ava Luna- Electric Balloon
Electric BalloonSeja o gênero que você queira lhes dar (e cabe muitos;Pop Soul, Experimental Rock,Math Rock, No Wave, Funk, Post-Punk) o som do Ava Luna é completo. Eles têm o direito de se chamar o que quiserem.

18-Paul Rodgers- The Royal Sessions
The Royal SessionsProvavelmente a coisa mais descaradamente pop dessa lista, TRS mostra um Paul usando mais grooves, métricas super limpas e sua voz para dissertar sobre inutilidades, orgulho e tristeza.

17- Matthew Shipp- Trio Root of Things
Root of ThingsOutro que para mim dispensa apresentações. Acho que se eu fosse fazer uma lista de "álbuns" do ano, desde 2010, o Matthew estaria em todas.

16- St. Vincent- St. Vincent
St. VincentOutro 'hype' gigante,Annie mostrando que ainda tem muito a oferecer.

15-Kovtun- Sleepwalking Land
Sleepwalking LandQuase levantei e aplaudi depois de ouvir esse disco pela primeira vez. Não imaginava algo tão "polido" depois do Rádio Morto. A catarse continua- um ambiente árido em que tons sombrios predominam.

14- Bob Dorough- Eulalia
EulaliaCom 91 anos, Bob continua escrevendo as coisas mais gentis que se tem noticia. Um ótimo ano para pianistas.

13- J.-P. Caron- ST
STEsse é um trabalho que me "tomou" de assalto, assim como uma apresentação de Caron que testemunhei no início do ano.

12- Max Johnson- The Prisoner
The PrisonerThe Prisoner vai demorar muito, muito tempo até "começar" a chamar sua atenção. Mas com repetidas visitas, você vai descobrir sua profundidade. E vai crescer como uma avalanche.

11- Juçara Marçal- Encarnado
EncarnadoUm passo muito corajoso para a música nacional, confirmando nossa excelente produção que a todo o momento- seja por que raios for- queremos dar como morta.

10- Death Blues- Ensemble
EnsembleHá muito para celebrar e pouco para se criticar nesse disco.Jon Mueller continua se dedicando muito em sua música. Nós agradecemos.

09- Ratos de Porão- Século sinistro
Século sinistroRDP fazendo o que faz de melhor. Desgraça.

08-Lupe de Lupe- Quarup
QuarupMuita ambição nesse disco. Brasileiro e barulhento na medida certa.

07-Racionais MC's Cores & Valores
Cores & ValoresPesad0

06-Aphex Twin- Syro
SyroQuando saiu: "não acredito, disco novo do Aphex Twin". Acho que não precisa de apresentações.

05-ruído/mm- Rasura
RasuraTraduzindo emoções em melodias e ruídos.

04-Steve Lehman Octet- Mise en Abîme
Mise en AbîmeSegundo o New York Times, "Uma explosão de futurismo urbano", " hipnótico, cinético e caleidoscópico - e funky ". Pode parecer uma descrição muito "pitchfork", mas tenham certeza que é por ai.

03-Swans- To Be Kind
To Be KindOutra que dispensa apresentações. Um corpo musical fluido que, em seu ápice, decidiu ser registrado. Insano.

02- Brandon Seabrook- Sylphid Vitalizers
Sylphid VitalizersNada em 2014 foi mais "experimental" e de "vanguarda" do que isso. Não que tais adjetivos sejam intrinsecamente bons, mas isso aqui é tipo, "caralho, que foda!".

01- D'Angelo and The Vanguard- Black Messiah
Black MessiahUm álbum super polido, decididamente "hypado". Mas que não faz por menos. Um pop enraizado na cultura à qual D'Angelo se refere. Apague as luzes e assista o declínio do ano, em paz.

Para incomodar; LUPE DE LUPE – QUARUP [2014]

"Atravessamos nossas pontes quando chegamos a elas e  as queimamos atrás de nós, sem nada para mostrar para o nosso progresso, exceto a memória do cheiro de fumaça, e uma presunção de que uma vez nossos olhos lacrimejavam."
- Tom Stoppard, Rosencrantz and Guildenstern are Dead

Quais mortos o Lupe De Lupe quer trazer de volta a vida? Por que esse título? Em um panorama bastante amplo (onde a microfonia “cresce” no cenário brasileiro, o público nem tanto), são 110 minutos de música em que é impossível ficar inerte- a passividade não representa a banda mineira, por isso essa vibração, essa obra longa. Será que nós, a audiência musical, somos os mortos?

Essa impressão pode ser dissolvida (assim como as interrogações) assim que lemos que o disco é dedicado a um amigo falecido. Mas isso não elucida completamente. Como eles querem ressuscitar os mortos? A certa altura, Vitor diz “E que diferença faz dizer todas essas palavras?”. O questionamento continua, “Minha cidade está em ruínas/ E não é uma música que vai fazer tudo isso mudar”. Pra que serve a música, então?

Quarup é um disco duplo e essa nomeação faz sentido. A primeira parte, mais “melódica”, menos arranhada. As microfonias e “pancadas” surgem na segunda metade, onde influências punks e Sonic Youth emergem. Diante dessa profusão sonora oferecida pela banda- que passeia pelo noise rock, shoegaze, dream pop e até MPB- somos orientados por letras pessoais (com tom político muitas vezes) que mais do que nos fazer “refletir”, invocam a ação efêmera e imediata, nos sacudindo inteiramente.

A banda decididamente não opta por discursos prontos. Embora na maioria das vezes estes estejam colados à intimidade profunda do eu lírico, as letras proclamam uma espécie de independência do eu. Sejam nas mais “feel good” como as três que abrem o disco, fica evidente a intenção dos compositores de emancipação seja lá do que for- dos editais de cultura, de um determinado tipo de humanismo que figura entre muitos universitários, ou até mesmo de suas próprias influências anteriores. Aliás, este é o lançamento em que o conjunto mais tem uma sonoridade claramente independente. Não que o Lupe De Lupe não tivesse isso antes, mas talvez a ousadia de lançar algo como Quarup representa a ambição que faltava para finalmente libertar a banda.


E mais do que mero entretenimento (embora o disco não nos deixe entediado em nenhum ponto), vejo Quarup como uma espécie de desafio. A banda está falando “hei, nós sabemos nos reerguer a cada lançamento. E mais forte!” Num momento em que a teoria domina muito a chamada música independente (e isso aqui não é uma crítica, ambos necessitam um do outro), o Lupe De Lupe surge com um disco “soco na cara” que certamente desafia todo o marasmo que nos enfiamos todo dia.

A vontade que eu tenho é de falar, “então vamos lá. Vamos para cima”. Mas não se enganem; Quarup é um disco de feridas e dificuldades, um álbum que certamente custou muito sangue de cada um dos integrantes. Mas são feridas que escancaram uma honestidade imensa, expostas em cada distorção, em cada vocal. Não só um espírito lo-fi e com a música independente, mas um comprometimento real e absurdo em se fazer música. Música que me agita e me incomoda também. Necessária para renascer dos pequenos assassinatos semanais e dos martírios que nos afligem.

A transcendência em Steins;Gate

"Nunca se esqueça:
andamos sobre o inferno,
olhando para as flores. "
- Kobayashi Issa

No primeiro episódio de Steis;Gate nos deparamos com a imobilidade. Signos alheios e uma sensação extrema de exílio consomem o protagonista, Okabe. É como se o transito não constituísse na verdade algo móvel, mas a mera repetição. Como um demônio que vive as mesmas vidas todas as vezes. O poder dessa “suspensão” de realidade vai estimular as futuras viagens no tempo. Um suspense que vai se estabelecer em como nossos atos aleatórios escorrem em vidas futuras. Durante toda a introdução de Steins;Gate (seus episódios, digamos assim, “preparatórios”) temos a certeza de que alguma hora tudo vai desabar. Oras, temos um ciclo e um eterno retorno, não é mesmo?

Por sua forte veia de “ficção científica” talvez o anime aparente ser “apenas” cerebral e complexo. Mas todas essas “externalidades” servem de apoio para uma singela história de como encaramos a mortalidade, uma vez que somos seres temporários. Outro ponto; como enfrentamos as constantes mudanças forçadas pela realidade. A série se constitui nos registros subjetivos do auto proclamado “cientista louco” Okabe, e à medida que todo suspense vai se mostrando como um quebra-cabeça supremo (afinal, as mudanças no tempo locomovem para; terceira guerra mundial, morte de pessoas próximas, etc.) os embates cansam tanto nosso protagonista quanto nós enquanto telespectadores. O que Steins;Gate faz é escancarar na nossa face o destino fatídico que temos. A iluminação do anime é bastante suprível nessa abordagem; sua alteração entre cores e personagens vivas e climas decididamente sombrios, com rostos sufocados pela angústia, compactua essa relação entre viver/morrer. A essência é a morte. Estamos no mundo, logo morremos. Os metrôs, os trens lotados, a comunicação hiper catalisada por aparelhos telefônicos, os comerciais- muletas tão frágeis para dissolver essa angústia eterna, que nos persegue quer onde estejamos. A morte aparece no primeiro episódio, reaparece no décimo segundo- para depois ser constante e obsessiva.


A arte de Steins;Gate é simples. Um anime sem tantos recursos financeiros, mas os desenhos constroem a atmosfera habitável que os diálogos necessitam. O fascinante em Steins;Gate é que- mesmo com personagens tão característicos, um tarado, um louco que acha que é cientista, uma garota de dezessete anos prestes a inventar a máquina do tempo, outra menina que só se comunica através de mensagens de texto- fica um sensação de que “vivemos mesmo num destino de um deus onírico” e compulsivamente cruel. Steins;Gate, apesar do seu fim “água com açúcar”, não versa e não tenta lutar contra a Morte (como no último episódio em que apenas podemos “enganá-la”), mas quais são os meios de aturar a repetição sádica do cotidiano.

Como se o tempo fosse ele próprio a “metafísica”, esse espaço que temos é como um jogo que inevitavelmente vamos perder. Steins;Gate obviamente se distancia de qualquer espectro de realismo para formular uma questão real e que fere nossa carne a cada episódio (especificamente sempre depois do décimo segundo).

Por ser uma série bem auto centrada (não que as outras personagens não pareçam “existir”, a caracterização destas é incrível, mas apenas elas não têm desenvolvimento), não vemos um clichê como o “amadurecimento” do Okabe ou algo do tipo. Sua principal conquista final é feita em sacrifico de outro “futuro” seu, em alguma outra linha do tempo. Coincidentemente, aterrissamos em um determinado Okabe que deu “certo”, mas essa conseqüência de tal prevalecimento foi realizada em função da aniquilação de muitas outras vidas possíveis- inclusive de outras personagens! Tamanha inclinação imaginativa por parte dos criadores destroça conclusões fáceis e nos aperfeiçoa ainda mais a sensação de aleatoriedade universal- ou o tempo, ou Deus, ou a metafísica.

Steins;Gate pode ser um anime um pouco “difícil” de entrar, mas assim que as engrenagens começam a rodar, o que antes percebíamos como defeitos ou “buracos” vão vagarosamente construindo uma série fascinante. Construindo possibilidades e certezas que logo em seguida serão desmanteladas, o anime versa sobre a nossa fragilidade e como pobremente enfrentamos um conceito humano, o tempo. A finitude é a única transcendência e na árdua jornada que Okabe atravessa aprendemos isso da maneira mais dolorida. Como alcançamos a a metafísica nesse mundo em que os conceitos mais rígidos são dissolvidos, no entanto, é a mais importante questão.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Rec On Mute -Hereafter [2014]

A vela só existe porque a escuridão está lá. A vela é apenas um símbolo de luz para nos lembrar da ignorância à qual nós somos arremessados. Como nossos erros pretéritos, que às vezes vêm como vertigem e escapatória do “real”, às vezes, como elemento que alimenta nossa angústia. Os momentos somem, as velas apagam. Uma música definida como “noise rock” não necessita de elementos que fujam a certa esquemática moderna. Seria besteira falar dos rumos que a música tomou nesse inicio de século e sua plena proliferação em vários sentidos. Mas parece ser- sinceramente- uma das poucas coisas que quebra esse muro de concreto rígido que é a vida contemporânea- com suas chateações, inquietações e milhares de frustrações.

Os sons do Rec On Mute (sempre acertando muito na afinação e nas microfonias) se entrecruzam e soam às vezes como unidade específica- os vocais bem quietos, divagando junto com as frases da guitarra. Outras, um ou outro instrumento ganha notável destaque e nos deparamos com uma produção acertada e surpreendentemente clara e polida para um primeiro lançamento. Como as nuvens que se movem no céu, como peças que às vezes simplesmente completam a paisagem, e em outros momentos estão cinzas e anunciam a tempestade.

As expressões caem para os “gêneros” alternativos que eu mais aprendi a gostar nos últimos anos. Dynamo é um bom exemplo da transição “post-rock-grunge”, nos contando a singela história de um garoto que deseja “apenas ir embora”. A música cai para um interlúdio bem atmosférico e a afinação refinada dá a graça. Uma banda como notável repertório e, mais do que isso, com noção clara do “colocar” em cada parte da estrutura musical.

Hereafter se constrói pelas incertezas líricas. As músicas são mais questões sobre; tempo, pertencimento e escapar. É oferecido ao ouvinte, entre distorções e alternâncias de ritmo, um tênue universo em que as distorções e sua potência reforçam mais a sensação de inospitalidade no lugar físico que ocupamos.


Um ciclo- parece, entre “choros e sorrisos” e tudo que temos entre esses opostos. Se fisicamente nosso espaço é limitado, as possibilidades dentro da música do Rec On Mute se mostram mais audaciosas. Entre os riffs mais pesados e os versos mais elegantes, há uma iminência. Estamos em um plano onde os afetos -assim como esmagar o que nos afeta- são possíveis.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Kovtun- Sleepwalking Land [2014]

Sleepwalking Land parece, ao mesmo tempo em que devemos ouvi-lo seqüencialmente, uma fragmentação de idéias. Sonoridades. Evidentemente, há um mantra que guia todas as faixas, algo onipotente e onipresente. Essa obscura ambientação criada por Raphael, porém, é um terreno inquieto, construído sobre paradoxos, causando um movimento “atrativo-repulsivo”.

Incorporamos essa terra desolada e nos agarramos nos momentos mais “belos” que o álbum estimula, para sermos silenciados e arremessados novamente de volta à trincheira pelo clima soturno. Sem dúvidas, uma viagem em que a melancolia parece ser o sentimento mais vigente, enquanto o teclado, os sintetizadores e as vozes do fundo parecem nos chamar. Mas para onde?

Álbuns assim dialogam diretamente com nosso esboço de subjetividade. Não há “bloqueios” e entram direto em nossa mente. Capaz de sacudir da alienação constante em que nos encontramos, Sleepwalking Land é um estranho abrigo para quando nos sentimos alheios demais. Seu ambiente não deseja totalidade, mas suas faixas compõem retratos e que espero que você reconheça e se amigue desse estranhamento tanto quanto eu.


Raphael Mandra retorna com sua música decididamente não comercial. E aqui ele parece não querer revelar tanto os “fatos” como no seu outro projeto, Rádio Morto. Aqui, ele parece dar mais espaço para o ouvinte impor suas dúvidas. Estas são micro movimentações que rumam a um todo invisível. Uma viagem sempre de volta a si. Sem qualquer tipo de clichê, Sleepwalking Land nos trás aquele tipo de reflexão mais importante; um diálogo com si mesmo sem “estratagemas”, optando pela ambientação e um respeito enorme pela inteligência de quem está ouvindo.

Pianos Become the Teeth e a solidez da dor

"Eu gostaria de enterrar algo precioso em todos os lugares onde eu estive feliz e então, quando eu estiver velho e feio e miserável, eu poderia voltar e desenterrá-lo e lembrar."
- Evelyn Waugh, Brideshead Revisited

I

Dois cavalos, árvores desgastadas, um campo deserto. Esse é o panorama da arte da capa de Old Pride. Quando ouvirmos a primeira canção, uma profusão de emoções vai se acender sobre nós.

Em Old Pride, nós temos uma banda que obviamente tem muito a mostrar. A natureza intensa e os gritos franzidos, embora algumas vezes percam a mão, mostram o grande talento da banda e um potencial enorme para um disco definitivo. Percebe-se que cada músico lidera com notável conhecimento seu instrumento.

Seria, de fato, um disco ainda melhor se tendesse mais  para “Cripples Can’t Shiver,” (belíssima história sobre um família destruída pela doença) do que Young Fire, que é um post-rock muito genérico. Mas, além disso, há histórias de micro deslocamentos remetendo ao cotidiano, colocando muito emoção nos momentos mais “comuns”. Transformações que modificam para sempre nossas vidas e que nem sempre são notadas. Implicando em angústia uma espécie de desespero pela urgência de melhorias. Fica em dúvida nossa capacidade de se recompor e lutar contra as adversidades. São trinta e seis minutos de screamo baseado basicamente na emoção. A produção é muito acertada, embora relativamente “polida”, consegue manter aquele climão de “show de porão”. Ainda que uma banda realmente orientada pelo “screamo”, é notável a influência de bandas como Thursday, por exemplo.


Old Pride pode conter certa dose de “falta de originalidade”, mas é muito inquestionável seu valor enquanto carga emotiva, catapultando o PBTT em uma das melhores bandas de screamo na época do lançamento de seu primeiro disco (ao lado do Touché Amoré e do Sed Non Satiata). Embora exista claramente uma tendência da influência post-rockeira em bandas desse tipo, a abordagem e atmosfera erguidas em Old Pride –suas pequenas histórias, a épica canção sobre deterioração- valem a ouvida. O que caracteriza o Pianos é a voracidade e momentos destruidores, empacotando em menos de quarenta minutos sinceras entregas emocionantes. Muita gente disse que era genérico; “repetição dos melhores”, mas os berros, “SIX HOURS, SIX HOURS”, certamente comprovam o contrário.
II

Se em Old Pride tínhamos uma banda ligeiramente perdida no seu grande leque de influências, The Lack Long After estabelece o conjunto em outro degrau. Embora seja inegável a influência de bandas como Heaven in Her Arms e Portraits of Past, o Pianos aqui sai da mera emulação para definitivamente lançar um álbum que dignifica a banda em uma categoria bem própria. Ainda temos a perspectiva da morte, de como nos comportamos perante isso, porém decididamente mais aprofundada e agonizante também. Claramente o “fim da vida” é a principal abertura que a banda encontra como expressão artística, assim como suas exaltações instrumentais e tristes passagens líricas. Deprimentes. Poucos álbuns me fizeram alguma vez chorar, mas a melodia fora do tom propositalmente na última faixa é simplesmente devastadora. É com certeza um disco mais “direto” ao ponto que o antecessor, e talvez não acuse tantas variações, mas isso se adapta surpreendentemente bem com o conceito proposto. Vale repetir: The Lack Long After é uma experiência pessoal extremamente emocional, com nuances de perdas e nossas fúteis tentativas de superá-las. Um dos meus discos de screamo favoritos e que causa devastação a cada escuta.

The Lack Long After aproveita mais os minutos de cada faixa (as conduções entre o fim de uma música e o início de outra “encaixam” o conceito), deixando o disco uma experiência mais profunda que o antecessor. Os relatos são passados em cenas que a memória irrompe como busca de explicações ou anestesia, em combate com os constantes arrependimentos do eu - lírico. Essa espécie de “não-discurso”, onde a banda fica atolada por problemas muito maiores do que ter que determinar uma estética própria, é o que valida todo o sofrimento que o álbum quer e consegue passar. Pela falta de um compromisso discursivo, acaba tudo soando mais genuíno e sincero possível.

Apesar de ele ser mais “direto” que o antecessor, The Lack Long After tem épicos momentos emocionais enquanto a banda simplesmente desmorona a cada canção. Os vocais limpos foram adicionados aqui e ali, e os berros ficaram mais intensos, quase inintelegíveis- as duas guitarras também encontram uma combinação melhor na troca de acordes. O que mudou realmente é que temos uma banda mais “comprometida” com a sonoridade e estética. Parece que eles deixaram para trás aquela idéia de “temos que unir post-rock e screamo, fazer crescendo na parte correta antes da tremulada, etc.” e deixaram-se guiar pelo que eles realmente intentavam revelar. A maior “transformação” foi decididamente a opção pelo som mais “pesado” e “obscuro”, tornando o disco uma seqüência de canções agonizantes que tem como tema principal predominantemente a morte. Muitos talvez pensem que optar de forma tão rígida em um tópico reduzisse o aproveitamento de assuntos tão pertinentes quanto, mas o Pianos ao se debruçar sobre a morte e revela nitidamente como todas nossas outras ações parecem girar exclusivamente em torno dela. O que normalmente é realizado quando bandas não sabem mais o que fazer- ou seja, optar por uma estética mais “pesada”- foi um acerto claro para o conjunto e sua capacidade de empacotar em menos de quarenta minutos, com uma abordagem curiosamente delicada (não caindo no melodramático) ainda assim sofrida. São sentimentos resultados diretamente do caos e da paixão, naquele ponto em que as explicações não são palpáveis, mas há uma larva interna que precisa ser exposta por esses registros.

Acho que devemos reservar um espaço para I’ll Get By, a última e melhor faixa do disco. Com os tons da guitarra decididamente mais baixos, o vocal de Durfey soa fraco, exposto e frágil. Enquanto o clímax da canção se desenvolve, esse sofrimento parece inabalável e continua- mesmo nos berros, parece que não há saída para essa debilidade- nas sensíveis alternâncias entre vocais gritados e limpos na mesma frase! (aliás, aceito sugestões de bandas que também fazem isso). Pode-se afirmar que o disco todo é escrito tão visceralmente quanto Filial, música que inaugura Old Pride, onde caos e beleza se encontram e são apresentados nos mesmos momentos. As abordagens continuam excelentes, sempre com uma propensão à tristeza e dor, sentimentos que a banda parece conhecer tão bem ao criar dois discos que basicamente retratam isso (Old Pride é um pouco mais “feliz”). O que caracteriza uma temática rígida da banda, mas que ganha “validade” ao evidenciar tamanha evolução entre os discos, deixando claramente a influência de outros grandes nomes do screamo para trás.

Em The Lack Long After, a banda destrói os “limites de gênero” que demarcavam Old Pride, para nos mostrar o quão impressionante esses manos são. Em última instância, temos uma experiência limítrofe e sentimentalmente desgastante, uma viagem de encontro à certeza do fim e da solidez da dor.

III

Ok. Não temos mais os gritos. As viradas incríveis na bateria. Nem mais aquele som abrasivo, construído sob uma potente tensão efêmera à base de crescendo. Ao invés disso, uma pequena, tranqüila e solitária chama melancólica que insiste em se fazer presente mesmo no terreno frio.  Um som minimalista que estimula uma atmosfera de aceitação, apesar da intrínseca tristeza revestida. O panorama dessa nova fórmula do Pianos não é mais de caos. Mas, sim, do que ficou registrado em nossos corpos e nossas mentes depois de períodos devastadores (e pelo dois discos anteriores, realmente devastadores). Aquela profusão sonora que teve seu ápice em The Lack Long After (especialmente na última faixa) é colocada toda de lado para uma abordagem totalmente intimista, próxima. Percebe-se que a banda já achou esgotada a interpelação anterior- o assunto não é mais trauma pós-morte, as guitarras não precisam competir com os berros do vocalista- e decidiu não falar sobre o aniquilamento, mas o que fazer a partir da morte de alguém próximo. Por isso as ondulações aquáticas brilhantes.
Os instrumentos vão, aos poucos, deixando rastros. Claramente, cada parte foi muito pensada antes de ser injetada na produção. Há momentos que esses “resquícios” (as músicas não são construídas especificamente em cima de acordes) se juntam para incorporar uma única entidade sonora que eu chego a pensar, “uou, é isso!”. Infelizmente, eles perdem a mão um pouco em algumas canções que são simplesmente monótonas, onde a bateria, por exemplo, poderia estar em algum disco do Capital Inicial ou Jota Quest que acharíamos a mesma coisa.

Com certeza, a maior mudança na estética sonora foi o vocal de Kyle. Agora mais do que a convicção da tristeza inerente à sua condição, temos registros cheios de dúvidas e indagações, frases que se contradizem. O problema é que, embora em canções como a que abre o disco, às vezes essa oralidade fica muito monótona, e algumas músicas simplesmente “passam” despercebidas. A sonoridade do Pianos se modificou não só nesses berros, mas em todas as outras dimensões instrumentais. Não podemos exigir que um conjunto não passe transformações e, considerando que eles tinham uma base de fãs relativamente sólida, é sim um mérito alterar radicalmente sua proposta sonora. Curioso o “símbolo” que estabelecemos para algumas bandas e, ao mesmo tempo em que exigimos para muitas delas se arriscarem, elas tem que ficar reféns de nossas próprias expectativas. Caso contrário, eles fariam algo como The Lack Long After sempre e pensaríamos “nossa, que foda”.Mas, e aí?

Mais uma vez, a faixa que encerra o disco é o grande destaque. “Say Nothing” representa tudo o que o álbum tem de melhor, delicadas frases de guitarra movimentando-se junto com vagarosas baterias, eclodindo com o vocal triste e angustioso de Kyle. Poderíamos afirmar que é praticamente “outra banda”, mas se pegarmos os aspectos erguidos por “Keep You” temos a mesma fissura e as mesmas incertezas. A diferença, agora, é que pelo menos há uma brecha em toda essa neblina.

Com certeza é um disco que não surgiu visceral como todos imaginavam. Ainda assim, o Pianos consegue nos intrigar com uma atmosfera redentora imanando aceitação (isso não tinha nos álbuns anteriores) e deixar um marco totalmente diferenciado em sua recente discografia. Em última instância, é uma banda que deixa para trás suas companheiras e se lança um futuro totalmente imprevisível. O perigo, claramente, é ressoar como as canções mais “sem graça” de Keep You. O perigo também vem de nunca mais ser tão feroz quanto antes, mas claramente é um conjunto que não se importa tanto em simplesmente agradar os fãs.

sábado, 22 de novembro de 2014

O horror em Concreto Morto - Viver-só [2014]

“Você acha que eu conto os dias? Há apenas um dia restante, sempre começando de novo: ele é dado para nós na madrugada e levado para longe de nós ao anoitecer.”
― Jean-Paul Sartre

Não há dúvidas de que a realidade é confusa e obscura. Às vezes, parece que há apenas uma reinante anarquia de acontecimentos sem sentido, impulsionados por forças tão abstratas quando um suposto “si - mesmo”. A construção sonora de Viver-só causa deslocamento perante essas disparidades tão obtusas e cruéis. O absurdo apaga o ser, fica a sensação de estar suspenso. Esse tipo de arte, para alguns, pode ser vista como um reconhecimento de ecos (muito gritados!) nessa espécie de limbo. Desde Mersault, a primeira música, a banda apresenta o ambiente conturbado que deseja sinalizar. Ficamos saturados em velocidade, agressão. Nós (os ouvintes) também temos que nos dedicar e tentar recolher as referências, reconhecer o terreno árido e (aparentemente) pouco convidativo.

Todos os sons que se entrecruzam num turbilhão que honra a tradição das melhores bandas de screamo (Orchid, Pg. 99, etc) se integram nessa totalidade disforme. Mas também acusam e apontam contra essa loucura! É como se o álbum, ao mesmo tempo em que representasse o transe psicótico da humanidade, dinamitasse (ou ao menos tentasse) as armadilhas da existência. Não é muito difícil, se você já caminhou pela rua numa dessas noites querendo sumir, reconhecer-se nos sentimentos de “auto-exílio” que as letras expõem. Sentimos o absurdo. Estamos inseridos nele! A realidade enlouquece. Não compreendemos muito bem o que sentimos, mas essas sensações primárias têm que, de algum modo, ficar registradas. Pelo menos eu trago tudo isso quando ouço Concreto Morto.


A concentração da desmotivação do Concreto Morto também mira em alvos e falácias capitalistas, como a ocupação urbana, por exemplo. Enquanto as músicas do disco são muitas vezes locomovidas pela mera sensação de “não pertencimento”, as revoltas sociais talvez indiquem um ponto de encontro com outros não pertencentes, mesmo que seja na sarjeta. A banda fala sobre os excluídos, claramente. Apagados do sistema pelos fatos confusos e ordens reinantes, Viver-só irrompe como um grito contra toda a opressão da besta que é a Vida, assim como seu sistema e meios de produção que desintegram qualquer esboço de humanidade. Mais do que “análises” políticas ou psicológicas, os gritos surgem como experimentados, dilacerados pelas instituições, em uma crise de ordem pessoal/social que parece não ter fim, conforme o tempo vai avançando. Fica a dúvida: existe alguma brecha para uma integração real entre pessoas reais? A diversidade de elementos dentro de um subgênero específico, as mudanças abruptas de tempo, em conjunto com uma bateria que não nos deixa respirar- são elementos que se revoltam e buscam por uma integração inaugural. A sinfonia do desolamento moderno. Um relato explícito das desigualdades, dirigido especificamente aos indivíduos “párias” da humanidade.

Viver-só é construído sob esses complexos. Porque a sensação de “estrangeiro” persiste onde nós percorremos, nos trabalhos idiotas que suportamos, aturando as conversas fiadas, quase como autômatos- nós personificamos Mersault, fazemos jus a criação de Camus e seu absurdo. A guitarra irrompe dilacerante, conduzindo uma avalanche de despejos, depois há uma recaída para pequenos momentos de pausa, curtíssimos interlúdios para o ressurgimento da pancadaria. A concentração da raiva se justifica nas letras, numa troca implorativa, que atenua sensações como aprisionamento, tormentas, destruição, desmoronamento e queda- como a torre na página 7 (do excelente trabalho de arte que acompanha o disco). Resultando no surgimento de impressões perceptivas pela lógica concreta- uma espécie de “leitura” de signos que antecipam um desastre imensurável conhecido como humano- que se ergue contra o estabelecido. Estamos ouvindo nossa ausência, nossa errância. Uma ruptura no enredo tecido de nossas seguranças. Alguém que sempre residiu ali, com um medo monstruoso de se manifestar. Por que o contexto que vivemos não tinha evidenciado ainda essa criatura? O álbum incita nossas partes quebradas e transtornadas a se expor.

Em Viver-só, ouço essas partes ocultas. Aqueles componentes de nós que ainda não é integrada ao todo arredio- por isso, mesmo com as claras referências à literatura e academicistas, o vocal irrompe em algum momento, “jogue fora seus livros!”. É por uma transformação de consciência, também- a vida cruel está aguardando lá fora e em algum momento vamos ter que sair para o embate. As citações podem sim nos estimular muito, mas nossas ações concretas que vão realmente dizer algo.

Fica a sensação de tempo suspenso, em contraponto à velocidade incessante das músicas. Por mais “estrangeira” que a banda afirma ser, há ecos e ressonância. Não há mais hora para comodismo. Não me refiro a um egoísmo apenas panfletário e ideológico, mas a certo modo de viver e encarar as situações cotidianas. Há uma espécie invisível de “mística urbana” (com as convicções instituídas) que nos oprime, como O Processo de Kafka.

Viver-só é um registro contra esse ciclo infinito. A expressão da desmotivação e descrença nos modelos de sistema vigente. A cada momento, nossa liberdade parece ser mais cerceada, sendo renegados a meros seres obedientes. Vivendo sob desígnios improváveis- deus, trabalho, livre mercado- a face humana fica coberta e impossível de ser revelada. Um jogo de sofrimento cínico e bastante cruel. Viver-só revela o futuro sombrio que nos aguarda, mas vamos simplesmente desistir? Mesmo com as centenas de coisas à nossa volta que tiram nossa vontade, se ficarmos estancados e indiferentes, aí sim, realmente, nada vai acontecer e a vida vai ser um período de espera eterno. Viver-só me desperta todas essas sensações, e é sem dúvida um levante contra a passividade. A realidade não se apresenta compatível com a vida que desejamos. Queremos “viver, e não só existir”. Por isso é importante o “dizer” do exílio. De quem não consegue “revelar” sua verdadeira forma para os outros, carregando a pressão de ser esmagado pela falta de “identidade”. Parece que tomaram nossa intimidade mais profunda. Por isso o tempo passado e futuro se bifurcam e tudo é confuso demais. O horror de não pertencer.

terça-feira, 18 de novembro de 2014

A coragem para cair em Ping Pong: The Animation

"Não há nada que eu não faria para aqueles que são realmente meus amigos. Eu não tenho nenhuma noção de amar as pessoas pela metade, não é a minha natureza.
― Jane Austen, Northanger Abbey

Em Ping Pong, a vitória não é romanceada. Uma sensação de mobilidade contínua afasta essas meras dicotomias de “quem perde ou quem ganha”. É como se a repetição dos confrontos não necessariamente transformasse as pessoas em entidades melhores, mas uma sensação de mutação constante sobre como agimos. Não é um fim objetivo; tudo termina e recomeça e não temos muito tempo para raciocínios lógicos (como em uma partida!). Deixa a impressão nítida de que todas as vitórias serão desfeitas, todo treinamento resultará em algo concreto e todas as outras possibilidades afrontadas pela perpetuação do real. Mas em cada retorno existe a transformação. Colocados sob pressão e racionalizações instituídas, esses regressos representam o que evoluímos, mas também um aspecto adjacente do nível de evolução que poderíamos atingir.

Ping Pong aborda o modo cruel que “as forças que operam em nossas vidas” são cinicamente distribuídas. Temas como; talento, esforço, disciplina e seriedade, operam dentro de cada indivíduo, e até que ponto um supera o outro é muito incerto. Principalmente quando de fato fazemos muito pouco do que desejamos. A namorada de Kazama diz, “seu pai tinha muita sorte em fazer o que queria”- este que não sabemos se suicidou-se ou se morreu em um acidente. Os paradoxos se destacam em Ping Pong. Há o menino que tem a certeza que vai ser campeão mundial e joga simplesmente para se divertir (Peco), Smile que via no tênis de mesa sua única escapatória para sorrir de verdade (e que vai perdendo isso com a idade, até seu apelido- sorriso- fazer completamente sentido inversamente), e não se sabe exatamente quais forças motoras que determinam quem é o “melhor” no jogo e, obviamente, na vida.


O fracasso é um tema recorrente da série. Na verdade, de todos aqueles garotos, apenas Peco prossegue carreira. São divisões muito tênues que nos caracteriza como indivíduos únicos lançados no mundo e é isso que Ping Pong busca acentuar. “Você é tudo o que você tenta ser até chegar a seus limites”. No primeiro episódio, alguém diz, “sempre há alguém melhor que você”. O show ratifica esse bordão, ainda fortalecendo, “do seu lado há alguém melhor que você, mais inteligente, esteticamente mais aceito”. A noção do próprio fracasso é fundamental. Mas tudo isso se restringirmo-nos às convenções sociais! A série também exalta que é um mundo repleto de possibilidades- quando o exilado chinês descobre que talvez o Japão seja realmente seu novo lar. Não é viver sem dor. É viver apesar de. É viver carregando todos os fardos que um dia pareceram impossíveis com a certeza preponderante de estar se fazendo o melhor possível.

É sobre acreditar nas pessoas. Ter empatia pelos seus limites. A dor é o que nos une. Por mais que alguém sonha, sempre vai ser impossível se ausentar da competição que o comportamento neoliberal estimular. Mas, então, o que fazer? Reconhecer as fontes de prazeres genuínos nesse caos.

Em cada prazer também há tangencialmente uma fonte de fracasso esperando. Mas não deveríamos ter medo de cair porque o sangue prova que estamos vivos. O chinês Wenge, que inicialmente odiava o Japão, perde e é obrigado a passar algum tempo com seus companheiros de equipe, e acaba se transformando num mentor da equipe, esta que genuinamente o admira. Um mundo de possibilidades anteriormente impensadas se abre quando observamos a ótica mais vasta do universo. Trata-se de ver além do que fomos projetados e, também, além de sonhos que alimentávamos- talvez por ingenuidade, por teimosia ou pensamentos unilaterais- para encontrar pequenas brechas na existência que nos estimulem.

Em Ping Pong, pessoas que inicialmente se viam apenas como oponentes e adversários aos poucos vão compreendendo suas similaridades e que são parte de um todo. Esses antigos inimigos adquirem empatia pelos seus próximos e deixam de vê-los como simples obstáculos, mas como seres humanos. Na partida entre Peco e Kazuma, este último começa a perceber o que Smile vinha em tanto tempo aguardando. Ao passo que a animação se desenvolve e a “vitória final” vai parecendo cada vez mais como um conceito infantil e simplista, nós nos deparamos com um desenvolvimento tremendo das personagens no que se refere à autoconsciência. Nesses termos, a estética de Ping Pong se parece muito com seu enredo- animações aparentemente pictóricas e desleixadas que vão adquirindo vida no desenvolvimento da trama.

Peco é o herói de Ping Pong e representa tudo o que a série quer dizer. Não porque ele não falha. Ele é o ídolo porque apesar de tudo o que acontece com ele, nenhuma queda e nenhuma derrota vai destruir o amor incondicional que ele tem pelo jogo. Ele “zomba” dos outros, não por se sentir superior, mas ele simplesmente deseja que as outras pessoas “voem nas mesmas alturas”. Porque o tempo voa quando estamos nos divertindo. Podemos voar com essa diversão também. Peco ensina, principalmente, Kazama e Smile de que todos os limites impostos surgem de nós. Nada precisa ser tão frio e o esforço não vale tanto se não há prazer. Precisamos repensar em nossa relação diante do que enxergamos como “dificuldade”. Precisamos encontrar as possibilidades ocultas e admirar o que é intrínseco em cada entidade.

Os pássaros podem voar. E embora nós não tenhamos essa facilidade, é nossa obrigação mirar o céu. E cair e levantar quantas vezes conseguirmos. E ter prazer em todas essas tentativas. Peco arriscou, ele era o pássaro preso na jaula, que surgia em certas tomadas em alguns episódios. Já dizia o Campbell Trio, “The day is coming, don't be afraid, and we all will be back to life.”. Ping Pong mostra os possíveis caminhos para esse retorno- amor incondicional, prazer em ensinar, alegria ao cuidar de flores. Estamos todos vivos porque há o gosto de sangue na boca. Ping Pong se estabelece no que podemos construir ao nosso redor. Porque os acontecimentos certamente serão bem desconfortáveis, mas já estamos lançados na existência e o aborrecimento é algo inerente. Algumas pessoas desenvolvem resiliência, outras continuam caminhando por aí até encontrar alguma paisagem que justifique a errância, outros ficam fechados em seu mundo e ali vão perecer. Das poucas pistas que a vida deixa, o que podemos concluir é que um sentido instituído ela nunca vai apresentar. Depende de nossa capacidade. Não a competência para vencer, mas a coragem para cair e beber o próprio sangue.

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Gustavo Jobim & Visszajáró – Arrival [2014]

A abertura que os sintetizadores em Visitor (uma das melhores músicas do ano) propõem, pode resumir bem todo o conceito de mais um disco lançado pelo Gustavo Jobim, dessa vez com a dupla sérvia Visszajáró.

Embora ainda haja muitos sons na mesma freqüência, parece que Jobim decidiu expandir seus temas e os contra-pontos são desenvolvidos com mais “espaçamento”, enquanto ainda nos deparamos com as passagens tão habituais de signos sonoros que não conseguimos identificar claramente, uma espécie de aparição. Mesmo sendo decididamente experimental, há certos espectros sonoros que se fixam em nossa mente, apesar do minimalismo dominante. Curioso que certo “radicalismo” estético interaja com essas projeções e tanta coisa floresça daí.


Essa ambiência “obscura” criada pelos artistas, porém, abriga elementos eletrônicos que podem até ser considerados “dançantes”. Talvez Jobim não aumente sua base de fãs em função desse lançamento, e sinceramente duvido que esse seja o principal objetivo. Já estamos no ponto de afirmar que é algo “típico” de Jobim, o que certamente significa uma construção de uma obra muito prolífica. Certamente, em progresso.