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quinta-feira, 30 de agosto de 2018

a natureza da imitação

Porque as dinâmicas são sempre estranhas que eu lamento ser o que sou e torço para o que disfarce na minha cara não entregue o que é pura nulidade. Com a natureza da imitação, eu pude estabelecer uma relação que considero justa: sou disfarce, não me esforço muito e evidencio para mim mesmo a falta de uma autobiografia. As trocas constantes de pessoas que aparecem como vulto protagonizam este anseio que só deixa mesmo de ser anseio se eu já estou bêbado ou passo a agir sem pensar (o que é cada vez mais difícil nos últimos anos). Os momentos de destaque sobrevivem como oásis que me surpreendem a partir de sorrisos instantâneos efemerizando expressões que eu desconheceria de outra forma. Em resumo, eles mostram que há um ponto a se atingir em que eu sou outra coisa e é sob a luz de ser outra coisa que eu caminho horas e horas em avenidas iluminadas sentindo os leves pingos que São Paulo sempre impôs.

Mas isso não significa que eles sejam didáticos; eles são muito rápidos e iluminados para deixar algum rascunho. Mesmo que eles sejam petulantes a ponto de rabiscar alguma promessa de importância dos dias por vir, eu cada vez mais tenho acreditado menos em sua distinção. Soam como momentos disruptivos que vão romper imediatamente quando se tentar acessá-los. É um paradoxo.

Em seu todo, a imitação se propaga como um mito moldando a matéria à indiferença no caos teatral. É uma insistência  que não descansa para um corpo muito cansado e acovardado para enfrentar tudo, todos os dias. Como um zumbido interminável numa Terra em que a música foi extinta, o corpo só quer aliar-se à origem com o menor trabalho possível. E é admirável este teatro rítmico que se propaga enquanto os zumbidos estalam convocando fantasmas e vislumbres a incorporarem um corpo alheio.


sexta-feira, 24 de agosto de 2018

um refúgio para não precisar dizer a palavra humana.

Nós finalmente cavamos e é impressionante o quanto buscamos do que estava perdido em momentos em que uma tranquilidade alienígena toma conta do lugar. O tempo é uma máquina tal qual o corpo, arrebentado e à espera de uma medição humana para se apropriar de suas inutilidades, fazendo com que tudo seja prova de um exercício restrito às subjetividades. O fogo muito alto enquanto olhos azuis pediam para ir embora, perguntando quietamente para achar um lugar menos movimentado do que aquele.

Você não pareceu o mesmo sem aquela porção de pessoas ao seu redor para te proteger de ser você, para evitar que o desastre que é a eloquência do seu verbo interrompesse a tranquilidade de todos que só queriam existir, só queriam se divertir. Nas fotos, sorrindo, tentando comprovar que a existência era alimentada por tudo que movia a existência de todos, um esforço considerado genuíno de quem nunca soube respirar sem sentir tantas farpas. As companhias bonitas, as companhias tão sorridentes que eram um excesso, um devaneio- uma fantasia de quem ousou ingressar na Terra dos juízos perfeitos considerando-se inocente pela simples ato de ter nascido e falar a mesma língua que os outros.

Não esqueça quem te salvou quando os dias eram torrencialmente solitários, nas tarde em que você só conseguia ouvir música num quarto escuro, aguardando uma chegada e torcendo para que viesse antes da morte. Não esqueça quem fez os dias serem mais suportáveis, quem te fez tolerar o falatório enquanto você só queria dizer que estava enfeitiçado pelo movimento das folhas sacolejadas pelo vento e buscou nessa agonia um refúgio para não precisar dizer a palavra humana.

Você achou que conseguiria sustentar-se enquanto farsa de planos? Ou você achou que tudo quebraria como indubitavelmente quebrou? Sob o peso de ser você, e é estranho porque se alguém chegasse perguntando o que é "você?", você não saberia minimamente esboçar uma explicação, mas poderia fazer uma lista cansativa de momentos em que tudo quebrou e talvez você saiba apenas dizer :"sou uma conjugação pretérita numa Terra de devaneios". Quando você estava na ponte, cansado, olhando para uma metrópole cheia de turistas e pessoas sem teto, olhando para um rio poluído e pensando apenas em esboçar uma disciplina, um contexto em que você pudesse ser produtivo. Um vasto espaço vazio esperando para ser ocupado pelo delinear de todas as vidas, mas era impossível preencher alguma coisa quando qualquer ameaça de movimento era erradicada por pretensões covardes. Quando você partiu com pressa, sem ligar para quem ficou para trás, quando você partiu e estava convencido de que podia suportar a vida em outros ares. Sem um segundo para desperdiçar em locais que não lhe diziam mais nada, lugares habitados por fantasmas que surgem quando uma tranquilidade alienígena toma conta. Você tornou-se uma memória  congelada distante para todos e só é evocado em momentos muito esquisitos porque o mundo continuou a dar voltas e ninguém sentiu sua falta, ninguém lhe parabenizou por qualquer conquista. Você mesmo materializou sua invisibilidade. Quebrado por seus erros, sem lugar para morar, vivendo de favor e esperando salvação em poemas ridículos, em músicas para derrotados. Você achou que podia transitar ferindo tudo e todos, que podia agir egoistamente e que isso não lhe custaria nada? Queimar pontes torna impossível retornar e a dor de não ter direção materializa-se na cidade como um horizonte diluído. Os fragmentos do que você deixou têm mais vida do que você. Têm mais afetividade, mais amizades, enfim, são muito mais desenvolvidos e te superaram de maneira que você é menor do que qualquer um deles. Espalhados e perdidos no tempo, acessar qualquer fragmento é impossível. Restam os rostos cansados deteriorando-se na memória.

Ver o passado da segurança da solidão dá aos arrependimentos um novo significado.

Arrepender-se não muda nada. É um crime sujo e mesquinho esconder-se neles para não habitar a província da insistência. É uma vergonha essas lamúrias, essas desculpas de que retornar é impossível. Como se não houvesse perdão, como se tudo o que existiu não tenha sido verdade. Ver o passado da segurança da solidão dá aos arrependimentos todo um novo significado. Dá aos arrependimentos uma possibilidade de despertarem e assombrarem a vida toda.

Flagelação de Piero della Francesca