Nada nunca é bom o suficiente, eu sinto falta de algumas
coisas que eu perdi. Eu quero dizer, eu sinto muita falta. Pessoas com quem eu
dividi uma intimidade gritante hoje se dispersam em memórias de dias bons e não
tão bons. É como se eu tivesse em uma estrada e, pelo retrovisor, eu pudesse
enxergar rostos queridos se dispersando pela velocidade da vida.
Meus braços ficam cansados porque eu tento segurar coisas mais
pesadas do que eu posso. Eu atribuo um peso para as coisas e passo a viver
sobre minha atribuição. Minhas mãos estão suadas, eu estou ansioso. Eu olho no
celular para ver fotos de nós sorrindo, lutando de nossa maneira contra a
passagem do tempo. De dedos cruzados, esperando que nós nos transformemos em
algo mais do que memórias- de que nossa comunhão, mesmo que passageira, tenha
significado algo que nos ajude a enfrentar o dia-a-dia e não se torne um
epicentro negativo que sugue toda nossa energia vital.
Talvez porque eu queira sentir transcendência em tudo e
passe batido pela manifestação mais simples das cosias. Como, por exemplo,
passar a língua e sentir o formato caricato dos meus dentes ou a espessura das
minhas gengivas.
Como nós viramos o relógio e nos transformamos no que éramos
antes- em uma época que ainda nos orgulhávamos de ter algo em comum. Em uma
época que nós nos bastávamos e o mundo era extenso, porém tateável. E eu tento
repetir os mesmos gestos e, embora eles pareçam ser os mesmos, falta alguma
característica sua para configurar qualquer ato terreno como milagre. Cá estou
eu buscando por milagres novamente. É como sair de uma caminhada tranquila
beirando o mar cristalino e ser arremessado ao espaço urbano cinza novamente. É
como ter testemunhado o divino e, de repente, ter que lidar com o mundano
novamente.
Eu estou cansado de me sentir vazio em uma festa cheia de
gente. Mas sempre foi assim. Eu sempre vi tudo isso como uma possibilidade.
Raramente como algo concreto. Mas tem seu lado bom- eu nunca neguei a ninguém a
possibilidade de me maravilhar e a gente conseguir ser algo fantástico, algum
degrau para uma existência compartilhada. Eu valorizo muito quem me fez atingir
esse estágio. Meu erro, no entanto, deve ser só querer viver nesse estágio.
Eu lavo a louça e a água fria do inverno congela meus dedos.
Mantendo dentro de mim toda essa ansiedade gritante. Maquinando coisas
ficcionais e as misturando com a realidade- uma antecipação assombrosa de que
poderia acontecer e nunca vai se concretizar. Eu queria voltar a ficar acolhido
em lembranças e não senti-las se despedindo de mim com um desdém, como se eu
tivesse sido insignificante o tempo todo e toda transcendência que creditei
àqueles momentos fossem apenas maravilhas da minha imaginação e recuperações de
uma nostalgia sadia. Eu durmo com as lembranças bombeando minha mente, mas como
elas são para as outras pessoas? Eu fico ansioso e tento ficar empático com
pensamentos que nunca serão meus, por pensamentos que se despedem como
desconhecidos. Até a gente se ver qualquer dia desse e trocar um “olá” como se
apenas fôssemos meros conhecidos. Como se esse beijo selasse uma aproximação
possível e nunca houve um “nós”.
Eu respiro profundamente. Eu só estou perdendo o controle.
EU só estou sendo um “eu mesmo” escondido e que nunca se revela. Eu só preciso
superar esse terror. Eu preciso parar de ver todo minuto como uma possibilidade
de tentar antecipar um futuro que nunca irá se realizar.
Se “dois anos” é um tempo medido e se esses “dois anos”
foram a suspensão de minha constante irregularidade, eu tenho que aceitar que
esses dois anos nunca mais vão se repetir. Um amigo sempre diz “mas irão vir
melhores”. Mas eu quero AQUELES dois anos, eu não quero o desconhecido agora,
eu quero recuperar o que eu tinha. Eu preciso entender isso melhor. Eu preciso
entender esse mecanismo complexo que me faz olhar para o futuro e ainda ver tua
imagem borrada como uma possibilidade. Esse copo de cerveja do lado, com as
marcas irregulares de minhas digitais, o balcão lotado de desconhecidos, o piso
branco na parede, o cobrador atrás de uma minicabine vitral. Tudo isso, e ainda
é só tua imagem que borra todo o real.
Então, eu tento me movimentar nas formas obscuras do que um
dia nós fomos. Eu tento me locomover, não para frente como em um livro de autoajuda,
mas entre os espaços vazios dessas formas tão conhecidas ainda assim tão
desdenhosas e perturbadoras. Como Dylan disse, “I don’t understand the pain
inside my chest It’s all in my head”. A solidão é minha casa e eu preciso
aprender a viver com as crateras do que um dia eu fui.