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quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Jair Naves- Trovões a me atingir [2015]

Em alguns casos, como em todos os lançamentos de Jair Naves, fica difícil pra eu não levar para o lado pessoal e não lembrar aquele garoto fascinado com Ludovic, Joy Division e o The Cure. Falar sobre Jair Naves é falar sobre um cara cujas letras e melodias estiveram presentes desde o lançamento de Servil. Eu associo a “descoberta” do Ludovic como um período de imersão em pensamentos mais, digamos, “profundos” em que eu ainda não tinha me aventurado. Provavelmente foi coincidência, eu sei, mas foi um período em que a música se impôs e se tornou uma das cosias mais gratificantes do universo.

Daí a minha inevitável confusão ao falar sobre tudo isso. Ouvi muito falar sobre esse disco ser “mais do mesmo”, mas penso que não é exatamente assim. Ainda que Araguari seja o trabalho dele que mais me agrada, há uma divergência conceitual e sonora bem aparente nesse espaço de tempo.

E o impacto continua. Jair tem um comprometimento incrível com sua obra e essas canções comprovam muito suor e muito trabalho. São tentativas da construção, além da banalidade simplista que permeia muito a música contemporânea, onde os choques vividos e as cicatrizes que depõem. São essas dores que autorizam Jair a falar com a autonomia dos espaços atravessados. Sua habilidade enquanto letrista não seria tão verossímil se as letras fossem apenas mimeses. Elas são condicionamentos da existência, das brigas. São investimentos que não querem “descobrir” a causa, mas simplesmente deixar de sofrer e buscar situações mais frutíferas. Essa me parece a diferença gigante entre o Jair do Ludovic e o Jair de Trovões A Me Atingir. Enquanto Ludovic era a encarnação da dor, em Araguari temos uma documentação nostálgica sobre o vivido, E Você Se Sente Numa Cela Escura [...] a tentativa de buscar um lugar mais “puro”, Trovões A Me Atingir aponta as decisões, uma posicionamento mais definido.

E assim- para o pior e para o melhor- temos um artista que definitivamente sai dos “enquadramentos” a ele designados em suas obras anteriores. A catarse mais absoluta e imponente cede espaço às outras mediações. As cicatrizes ainda estão lá, mas menos nocivas, o peito pode se abrir de novo. Esse direcionamento musical mais “vasto” desapontou muita gente, mas decididamente Jair não quer se reter apenas naquelas explosões emocionais tão características do início de sua carreira. “O peso da decisão, da escolha definitiva cai sobre mim”, é mesmo um verso que implica maior aceitação.

Mas essa aceitação não significa, de maneira alguma, que não temos alguém completamente assustado e, mesmo que em menor grau, condenado em sentenças confusas que a vida propícia. Trem Descarrilhado, a última faixa, é talvez o mote do disco- um mundo que está ruindo e é nesse caos, atravessando as cicatrizes, que Jair tenta encontrar brechas e motivos pelos quais lutar, mesmo que a desordem já seja reinante e aparentemente não há muito que se fazer.


É sem um itinerário fixo que avança a obra de Jair Naves. Acompanhamos imagens que são formadas por angústia, sofrimento, amor, expectativas... Tornou-se rotina pra mim, desde que comecei com esse negócio de gostar muito de música, ter suas canções como abrigo para os diversos momentos. É que eu acredito em testemunhos tão entregues e tão intensos. As fraquezas versadas e expostas pressionam porque não queremos frustrar ninguém, não queremos produzir a dor. É desse ponto que Jair discursa e faz sua arte, do ponto de uma incerteza absoluta (pessoalmente, não esteticamente) em um mundo que parece nos bloquear a todo instante. É tudo tão repentino e não podermos prever os trovões que vão nos atingir. Mas se há receptáculo, há vida. E isso é o suficiente.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Ricardo Donoso - Saravá Exu [2015]

Penso em Saravá Exu com um disco de retaliação. Um álbum que tem seus ambientes cuidadosamente estruturados para serem esmagados depois. Reduzidos em pó. Penso em cada renascimento e cada rompimento como poesia, como a aniquilação da estagnação. Nasce a beleza e o perverso absurdo. Uma histeria tensa que é produto de uma enorme inquietação por parte de Donoso, onde se especula ciclos que convivem com as pluralidades disformes que caracteriza a sonoridade.

As abrangências dos temas de Ricardo, e a sonoridade sofisticada, convergem para a sensação contínua de rompimento. Pensamos até que ponto ele consegue esticar esse elástico e experimentos, cada passagem como uma volúpia de desencontros. É um não reconhecimento de ambiente que, lentamente, se transforma numa abstração que é a única demonstração possível. Eu evito ler qualquer coisa sobre discos antes de ouvir e com esse não foi diferente. Aqui temos um distanciamento da pessoa Ricardo e tentativas árduas de uma conexão com uma espécie de vazio onisciente. O fenômeno das coisas. Fico com essa impressão porque é, indubitavelmente, um disco de persistência e perseguição. Mas a formulação que cada empreitada busca, em consequência de uma necessidade de continuação, soa incompleta. Não podemos deixar de relacionar o “ritual de busca” que é esse disco com os Exus e Pombagiras, que são as entidades da Quimbanda mais próximas aos humanos. E é nessa proximidade (onde elementos iminentes me remetem à sensação poética que falei no primeiro parágrafo) que reside a força maior do álbum- uma incessante busca, apesar de sua impossível conquista.

A ênfase em um “tema” em cada faixa, onde a repetição caracteriza esse vetor de busca incessante. Uma estratégia, porque cada faixa é o sintoma da condição que Donoso estigma esse disco- o ponto de bifurcação entre suas procuras enquanto “indivíduo perdido” com o mundo externo, sensorial e tangível. Assim como os Exus. Essas iterações ecoam abordagens mais radicais, em meio às manipulações eletrônicas que propositalmente rompem (utilizando ruídos, distorções, etc.) qualquer esboço de linearidade. É preciso dizer, por tantos avanços e recuos, que não há um “gênero” próprio que Donoso se ancora. Mas como qualquer artista que busca autenticidade, essas precipitações inclassificáveis que saturam a obra em devaneios, rompimentos e (des) encontros.

As mudanças bruscas de Saravá (como o processo de retaliação que mencionei no começo do disco. Aliás, esse processo é mais uma transcrição, uma realocação de um espaço fechado –mundo- para algum lugar menos árido) intensificam a sensação de desamparo. As alterações graduais de volume, os sons “primários”- esses métodos incomuns (que cada vez mais estão sendo utilizados) e, de certa forma, desconfortáveis, estimulam a perseguição. Caça essa que atinge o auge em Diluculum, onde uma imensa massa sonora coexiste com um ambiente convidativo. Sem dicotomias simples, essas variações são como o sistema nervoso que percorre a meditação de Donoso.


É nessa tensão que vibram as possibilidades, nas diversas inversões que formulam um ciclo de, basicamente, erros. Não há a exclusão entre “ser” e “mundo”, e é em manifestações como as de Saravá Exu que há uma espécie de compartilhamento (e aí o exilado, após anos de perambulação e reflexões, pode se maravilhar com a simples existência das coisas). Em uma época que os assujeitamentos  e padrões instituídos ameaçam a simplicidade e beleza do exílio, Saravá Exu é uma indagação necessária e urgente. Ricardo Donoso não banca uma busca com  perspectiva definida, mas a esperança para que ainda exista uma perspectiva. Os Exus procuram, então, um retorno a uma humanidade essencial. Esse álbum é o terreno de chegada, o momento de espera num período de uniformização e sepultamento do alheio e do disperso, onde as técnicas e resultados que determinam o jogo. Já é muito esquisito fazer uma metáfora de jogo, então é melhor se amigar desses demônios e expurgar essa compulsiva devoção à claridade.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Cássio Figueiredo - Dias [2015]

Há pouco menos de um mês eu falei sobre o primeiro EP que Cássio lançou esse ano, Dias, e de como me inquietava o que os músicos contemporâneos (principalmente os ligados ao noise e suas variações) tinham em mente quando criam suas obras, muitas vezes estas, o contrário de conceitos chulos e clichês como “música orgânica, fluída, sólida, etc.”. Se em Diário, Figueiredo já não se subordinava às execuções simples –inclusive “desobedecendo” a temporalidade suposta na nomeação das músicas- em Dias temos esse rompimento transcrito de forma concreta.

Os dias transcorrem mesmo de forma segregada, disparates que são impossíveis de “justificar”, “conceituar”. Isso seria domar o “tempo” e reduzir o poder iminente de cada momento. Por isso os cortes bruscos, a superfície inconstante e alta- é difícil situar com precisão, é complicado tentar encontrar a ligação que torna uma explicação real possível. Só há reminiscências do que entendemos por realidade e a forma que se pode absorvê-las para transformá-las em algo que ecoe. Não uma apreensão que tente copiar o que aconteceu- mas uma forma de massa sonora que seja consequência dos dias. Para isso Cássio utiliza memória e imaginação. E criatividade.

Assim como o decorrer dos dias, os elementos aqui parecem dispersos. Reúnem-se, depois somem. Essas mesmas “aparições” foram realizadas em Diários, só que nesse EP os fragmentos estão mais dispostos e mais variáveis, até. E a imposição de tantos sons periféricos integram lembranças, reminiscências e certa aleatoriedade. É a vastidão interna que Cássio compõe- as contradições cognitivas que nos possuem no passar de uma medida (no caso, o tempo). Temos uma análise final, de qualquer forma; aquele terreno descentrado onde reconhecível e irreconhecível se convergem tanto que passamos mais a acreditar no que é imediato. Essas frequências acusam, então, uma confusão mental que Figueiredo espelha em forma de retratos sonoros e imagéticos- as ondas, as músicas, as vozes.

A não divisão em faixas torna ainda mais aberto ao ouvinte à transferência destravada de memórias que caracteriza Dias. Como a partir de um minuto e quarenta, onde uma imensa onda sonora surge vibrante, para depois se aquietar. É um fluxo de lembranças e esse fluxo tem suas marés. Isso torna o “surgimento” (em qualquer das suas formas; ruídos, distorções, melodias chiadas) a característica principal dos registros afetivos de Figueiredo. São portais da percepção que preenchem toda a escuta com “entradas” e “saídas” tão surpreendentes que não podemos constatar exatamente onde começa e onde termina. Confiar “apenas” no modelo intuitivo e suas deliberadas maneiras de criação- e ainda assim produzir texturas tão incisivas e intensificadas- garante uma liberdade cuja qual Cássio tem discursado em todas suas gravações.


Fala-se tanto sobre “interioridade” e “personalidade” na criação da música contemporânea, que muitos se esquecem de que o que realmente está em jogo é o que “suporta” conceitos tão poucos expressivos. Figueiredo utiliza sons para questionar sua própria construção como indivíduo e se baseia em mundo próprio que, às vezes, parece um exílio. A memória é usurpação também, não nos esquecemos. Dos outros e da nossa confabulação. O que resulta em uma dissonância que aperta a concepção de “entidade” contra a parede. Uma espécie de apropriação desorientada e, em certo ponto, mística.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Nós vamos eventualmente ser esquecidos, um atravessamento de You Will Eventually Be Forgotten,[ Empire! Empire! (I Was a Lonely Estate),2014]

Eu poderia passar horas falando sobre como o Empire tem sido uma das bandas mais importantes pra mim desde 2009. Mas eu prefiro voltar pra lá e tentar discursar a partir daquela fenda, sem ordem cronológica- apenas através da consanguinidade que eu tenho com essa banda. Desde sua criação, 2006, a banda tem sido muito prolífica em termos de lançamentos, porém demorou cinco anos para lançar esse disco cheio. E o que não se construiu na minha cabeça sobre as possibilidades desse novo disco. As letras de Keith sempre tangeram a autobiografia e pareceu falar sobre espaços ainda “não cicatrizados”, elevando sua voz em tons que faziam um dueto com as delicadas frases da guitarra. Aliás, Empire nunca teve medo de se expor, expor a fragilidade de um eu lírico impugnado em um mundo de duvidas. You Will Eventually Be Forgotten teve muitas críticas na época do seu lançamento, mas todas ditas do conceito (“o emo revival é um saco”, etc) e eu até entendo. Mas não é sobre conceitos que eu quero falar. É tudo pessoal demais.

As duas músicas que abrem o disco falam sobre acidentes de carro. Eu passei por dois acidentes e um eu não lembro (nele minha irmã morreu) e no outro, o segundo, minha vida também não passou pelos meus olhos. Não houve flashback. Nada de filme de um segundo. Só um sangue escorrendo da minha mão, a tentativa de sair pela porta do passageiro. Eu sempre penso que tudo seria diferente, caso... O casal que forma o Empire (e que também é protagonista dessas duas primeiras faixas), Keith e  Cathy Latinen, também são donos de uma gravadora responsável por lançar coisas muito legais no tocante ao indie/emo (e o bando de órfãs de Mineral, Penfold, etc). É incrível ver esse trabalho faça você mesmo, envolvendo uma enorme quantidade de bandas honestas. Impossível, também, não relacionar ao trabalho que alguns selos brasileiros tem tanto se esforçado, e (para citar uma nesse gênero), não posso deixar de falar da Bichano Records. Existe por aí certa irmandade envolvendo pessoas que estão muito entusiasmadas (recomendo ouvir o catálogo da Bichano, fuçar as gravadoras irmãs, etc).


Eu penso nisso de “quase” morrer e o que altera na sua vida? Eu continuo me sentindo desconfortável a maioria das vezes, com a mesma timidez que me impede de dizer coisas legais para pessoas importantes. Se o disco antecessor era mais “progressivo”, na medida em que suas variações eram mais aprofundadas, em You Will Eventually Be Forgotten temos versões mais direcionadas, que não exploram tanto em termos de densidades, pois seus temas são bem focados. Então, como é dito na segunda faixa, a banda quer aproveitar seu tempo e, ao invés de prosseguir no clamor de seu álbum de estreia, reduz a variedade e oferece um exame maior do “todo” do que no antecessor, que tínhamos análises mais “individuais”.

É estranho se formos ver os dois vocalistas convidados para esse disco. Ainda me surpreende muito como a audiência daquele pequeno e tímido gênero que emergiu nos anos 90 continua leal. Mais do que apenas “amizades”, Mineral e Braid significaram muita coisa pra uma porção de gente, e ambas voltaram (o Braid, inclusive, com disco novo!) o que realmente alegrou essa porção órfã dessas bandas. Não há como não sorrir, então, com a participação de Bob Nanna e Chris Simpson, sério. A lembrança que cada uma dessas vozes evoca me suspende na temporalidade- me lembra das tardes sozinho ouvindo Mineral e das mixtapes que eu montava, colocando as energéticas músicas do Braid para abrir. Tenho certeza que a convocação de Keith para respectivas participações tem mais a ver com a conjuração daquelas vertigens, ainda tão presentes em nós. Eu, pelo menos, gosto de pensar assim. Talvez nós nos reconhecêssemos aí, talvez Keith represente cada adolescente que sonhava em cantar com eles. Triunfamos, pelo menos nisso.

E são essas aparentes lembranças que me separam e me fazem ser aquele garoto ao mesmo tempo. Eu gostaria de falar que sou melhor que aquilo, mas continuo desajeitado, continuo confuso e com uma inclinação à introspecção. A abordagem do Empire de como a memória irrompe no presente, sem objetividade cronológica, sem nada muito pensado- ela aparece em uma paisagem que nos faz lembrar nosso irmão ou dos nossos parentes mortos. A aventura do disco é do cotidiano, dos pequenos fragmentos que dizem tanto sobre nós. A casa lotada, os feriados em família, a solidão que sentíamos depois, os ídolos da infância que agora parecem estranhos, como nossos próprios pais, como nossa imagem no espelho.

É verão e eu não gosto disso nenhum pouco. É verão e eu queria estar no frio calmo do inverno, morando em outro lugar e trabalhando em outra coisa. Eu sempre enumero uma centena de acontecimentos e torço pelo verão passar rápido e deixar seus trinta graus atrás. Eu sempre enumero as pessoas que se cansaram de mim e torço para que pessoas mais incríveis surjam e deixar os vestígios daquelas para trás. As letras de Keith são questionamentos sobre sua própria condição de mortal, homem e artista. Keith não deixa de reconhecer que coisas maravilhosas têm acontecido na sua vida, mas também não deixa de ponderar quantas coisas boas poderiam ter acontecido. Não é uma nostalgia simplista, mas questionamentos que posicionam o cantor em uma condição ambulante de dúvida constante. As músicas não têm estrutura convencional e abordam histórias, micro contos que situam o ouvinte em algum lugar específico justamente para evidenciar que as dúvidas de outra época sempre nos acompanharão. São narrações bucólicas sobre afeto, cumplicidade, adolescência e comprometimento. Após algumas escutadas, sentimos que as personagens que rondam essas histórias são conhecidas. Ou melhor, relacionamos estas às pessoas importantes de nossas vidas. Sabe quando você começa a namorar alguém e pode passar a noite inteira falando com essa pessoa, contando histórias da sua vida até que, de repente, já deu seis horas da manhã, o sol nasceu- um tem que trabalhar e o outro ir pra faculdade?
As letras altamente pessoais de Keith distanciaram-se das metáforas e imagens em que se amputavam no disco antecessor para relatar casos da sua vida e das pessoas que o cercam. A própria existência é substrato o suficiente para a criação artística. Os títulos das músicas sugerem também que os grandes momentos tornam os posteriores muito difíceis, quase impossíveis de suportar. Na décima faixa, temos a história da avó do cantor que morre e de como seu avô fica dois anos como um morto-vivo, com memórias de sua falecida. É um disco de perdas, e são muitas; pessoas, infância, orgulho. A comparação da morte com imagens como árvore e outros elementos da natureza evocam seu curso natural. Mas como dói. Uma quantidade significativa aqui discursa sobre a perda ou a possibilidade dela; quando o casal se casa, mas não consegue encontrar a mão um do outro. Nesses vislumbres de perdição Keith se debruça e começa a retratar sua história, que é obviamente nossa história. Não é só uma constatação do óbvio, mas uma pergunta radical, “vale a pena passar por tudo isso?”.

O disco começa com essa frase “eu quase te perdi no dia do nosso casamento”, é sempre um “quase”, uma proximidade enorme com o grande rompimento que a perda causa. Estamos próximos disso sempre. Eu me aterrorizo quando essas coisas acontecem com alguém querido. Adivinhem como começa a segunda faixa? “Eu quase morri com vinte e um anos”. Ninguém está a salvo. Deixem-me retratar. Não é um disco sobre a perda. Mas sobre sua monstruosa proximidade. Quando estamos dirigindo para algum lugar, enquanto ouvimos nossa canção favorita- ela nos ronda, nos aflige. Então, essa enorme honestidade de Keith também é uma afirmação de sua vida. Não existem separações simples. Quando sua mulher quase morreu, ele casou com ela. Morte e casamento, tudo tão próximo. Os grandes, os piores momentos. Não à toa, choramos muito quando brigamos com alguém querido. E não existem truques, estamos expostos. Somos analfabetos sentimentais, nós tentamos fazer que tudo isso não seja um desastre, tentamos o melhor e com alguma sorte, isso será o suficiente. É um drama que embora simples (viver depois morrer) nos cansa sempre e sempre. A intimidade que o Empire oferece pode ser vista como uma confiança no ouvinte.

(Estamos em algum lugar legal, com pessoas queridas. O mundo exterior parece algo completamente alheio. Parece que somos os únicos vivos. Sentimos uma mão, um toque, uma fala baixa perto do ouvido, nós ouvimos nossas canções favoritas, lembramos-nos daquela vez que alguém disse uma besteira e rimos sem parar. Intensamente, tentando reviver quem éramos naquele momento ou tentando nos transformar em quem éramos naquele momento. Nós podemos ir e voltar, ficar na rua até mais tarde. As fotografias forçando acontecimentos, as memórias que não vão se apagar por seus retratos físicos. Sem simbolismos. Sem determinações. Passar o tempo fazendo nada com as pessoas queridas. Uma pausa disso tudo que é a vida. Um respiro, um rosto conhecido próximo. Seus lábios próximos. A gente esquece nossas carreiras, os estudos e o trabalho).

E como aquilo tudo parece distante. Como narramos com pesar na voz. Um pesar mais grave, reforçado pela sensação de fracasso. Pelo temor da perda. Ou como queremos ver no rosto do outro que ele reconhece nossa existência. Absolvendo-nos do desaparecimento. Poucos álbuns têm canções tão amarradas em uma finalidade como You Will Eventually Be Forgotten. Onde cada desdobrar- as vacilações instrumentais, as narrativas detalhistas- estimula questões importantes e fundamentais e que, infelizmente, vão apenas pairar no ar. Não há respostas. Não há métodos para se combater essas coisas. Não existe epifania e é sobre esse terreno que o Empire se debruça. O que podemos tirar disso tudo? Ficam os soluços de dor, os retratos tentando comprovar felicidade, as lembranças que irrompem bruscamente quando passamos por algum lugar que foi importante, a saudade das mãos e das palavras carinhosas. Tudo se dissolve, é estranho como fica pairando no ar, às vezes volta pra gente como um empréstimo do universo. Para depois se dissolver novamente.
E como tirar respostas? Os momentos estão fixos lá e mistificamos mil hipóteses. E os momentos continuam exatamente os mesmos. Assim como suas consequências. Mas, também, como não olhar para trás? Como não pensar que tudo poderia ter sido melhor? Isso não adianta, eu sei. Mas como? Mas não sejamos estúpidos. Olhem que, mesmo nas canções tristes e sobre a morte, há uma quantidade significativa de afeto que cobre todo o disco. São riscos porque não dá pra viver sem isso e ficamos mal porque sentimos. Não somos números! Somos pessoas! E fica a promessa de que a vida prossegue não importa quão ruim sejam nossas perdas.

Kovtun - Androginóforo [2015]

O Kovtun lançou um dos meus álbuns favoritos no ano passado, pela “desolação” e repetição de temas. Ocorre, em Androginóforo , o oposto. Aqui vemos uma obra mais aberta do que a saturação da antecessora, aqui temos mais desvios e inquietações- isso provavelmente em função de que cada uma das quatorze faixas tem participação especial. Aqui as medidas são destroçadas, pois cada movimento-canção é uma afirmação e negação da faixa antecessora. Afirmação porque reconhece sua unidade, negação porque busca outras expressões. Estamos, ao invés da uniformidade de Sleepwalking Land, em um local onde não há controle e cada imanência irrompe e se estrutura em suas próprias aflições, em seu próprio instrumental. Poderíamos pensar, “mas com essas divisões, não seria melhor ouvir o disco íntegro de cada participante? Como encontramos um núcleo criativo do próprio Kovtun?”. Mas não são objetivamente divisões, são blocos de um mural gigantesco (o disco tem uma hora e meia), e as próprias controvérsias dessa estrutura garantem a unidade de cada participante. O disco não seria o mesmo sem as aves e o barulho absurdo na colaboração com o Godpussy e assim por diante. A abertura, então, está na vastidão que o ouvinte tem que encarar, assim como na ambição do disco e suas múltiplas facetas- é mais difícil, assim tão recortado, e provavelmente mais recompensador.

As variações desafogam e trazem repentinas e interessantes mudanças de estrutura, talvez a única forma de criar um disco tão grande seja apostando tanto nas bifurcações de gêneros mais “densos”. Pois eles próprios são radicais às suas maneiras e demonstram alicerces mais dinâmicos do que a simplista nomeação de “barulho”. Com meu quarto devidamente fechado, são fascinantes os “empréstimos” imagéticos que as músicas me proporcionam, seja nas mais econômicas (ou a primeira parte, como imagino uma divisão estética) ou a segunda, que agride mais. Penso, porém, que elas se unem porque são como defuntos procurando um terreno mais hospitalar, e por isso tamanha difusão sônica e necessidade agressiva, o corpo já sabe que o mundo aparente, essa tal de “realidade”, não serve mais. Precisamos respirar em outros lugares. Nossa mente pode se atrever a isso se nos relacionamos com esse disco da forma que ele merece- sem uma “necessidade” anterior, porque as microestimulações vão jorrar com cada canção e terminar com elas também.

E ouçam isso alto. Pois há aqui uma espécie de “grito” anônimo que ecoa em cada base distorcida, cada repetição que aumenta e cada acidente que topamos. É um disco que versa sobre uma dor que é impossível de especificar, uma inquietação constante que fez com que Mandra (ele é o Kovtun) decidisse reunir esses nomes e nos oferecesse tamanho corpo que registra uma época bem importante de nossa música independente (aqui eu estou assumindo as motivações por trás do disco). O ambiente enclausura e rompe com uma organização mais “meditada”. Ao mesmo tempo em que temos aberturas instrumentais que nos deixam mais a vontade até mesmo para divagar, as pancadas dessa parede nos deixam estáticos. Não há uma limitação da experiência, apenas uma força própria que não permite titubeação. São músicas que exigem sim atenção e apresentam camadas que merecem ser ouvidas muitas vezes. Falei sobre a “possibilidade de divagação”, mas não quero diminuir nada. É um disco perturbador. São barulhos agressivos, são estruturas que nos confundem, na maioria das vezes.


Eu evitei ler qualquer coisa sobre o disco anteriormente porque queria deixar aqui somente minhas sensações, minha experimentação. Por exemplo, o nome das músicas, aparentemente científicos, o que querem dizer? Aqui eu volto à parte que questionei o porquê de um disco em que todos os faixas têm participação de outros artistas. Não há resposta, na verdade (para o nome das músicas). Eu poderia ter falado também sobre as variações e os “gêneros” que esse disco atravessa, mas imagino que tags reduziriam a inauguração que Androginóforo propõe. É através da escuridão que envolve todo o disco que, talvez, podemos encontrar algo mais simples, para podermos nos maravilhar com cada “surgimento” (e não começar a questionar o porquê do nome das músicas, ou o porquê das participações). Androginóforo é um experimento do Kovtun, mas também uma afirmação. Sem objetivo aparente, ele se ergue e exterioriza que uma música significativa sendo realizada no Brasil que não é demonstrada em charts, na Wire ou qualquer outro veículo. Mas que ela existe e é substancial. Que ela não hesita e que ela não se explica- ela só pode atravessar e ser atravessada. Espero que essas irrupções aconteçam com quer ouvir o disco. Comigo aconteceu.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Kreng - The Summoner [2015]

The Summoner pode ser encarado como uma trilha sonora que vai culminar na aceitação- até lá, vamos passar pela negação, raiva, negociação, depressão e evocação. Mas evocar o que? Qual o ponto que converge essas frustrações em uma aceitação? Esse álbum reflete os estágios pós-perda de alguém próximo, em transes melancólicos e silenciosos de alguém que está nitidamente desgastado e parece ter na criação o único meio de expressar uma dor nostálgica que também é solidão e isolamento. O universo de Kreng não visa à redenção nem uma cura, apenas reflete um mundo interno arrasado.

O luto retalha e não há nada que possamos fazer em relação a isso. Muito se fala como situações com essas catalisam a criatividade de compositores, mas gosto de pensar que não é assim. Kreng faz um registro, se pensarmos bem, não muito original. Aliás, a busca aqui é sempre de uma quietude serena e a impossibilidade de encontrá-la. É a potência da derrota que podemos ouvir, como se nós estivéssemos rodeados pelo improvável e o único fato consumado nesse mundo fosse a morte. Como se a morte do outro nos transformasse em fantasmas. Estamos aderindo a uma zona onde o caos recusa a violência, um caos mais verdadeiro, talvez, porque ele mesmo antecede à reação violenta, ele antecede tanto que talvez a tristeza seja a única emoção capaz de salvação (salvação como entrar na ordem de uma narrativa, ser narrado como experiência, mesmo que negativamente). Não podemos dizer muito, não podemos fazer muito- estamos no terreno da espera.

Aqui (e duas escutadas depois) eu faço um contraponto interessante ao primeiro parágrafo. O ponto é; quanto mais ouvimos o álbum, é passado para nós que ele não trabalha objetivamente atravessando as categorias mencionadas (negação, raiva, negociação, depressão e evocação), mas que a estrutura de cada suposta “etapa” é tão caótica que remete sempre às outras sensações. Oras, como que o luto pode ser “dividido” em fases? Seria demais simplista. “Anger”, a segunda faixa, tem uma explosão que nos faz compreender o tema principal, mas são vários momentos subjacentes que não remetem apenas à própria raiva, como serão desenvolvimentos repetidos em outros “estágios”. Então esse álbum se ergue como um corpo sonoro que rejeita a classificação. Ou melhor; refuta as nomeações reivindicadas destruindo-as por dentro. Uma entropia conceitual, também. Penso nos instrumentos como pacientes de um manicômio que tentam romper a camisa de força, em uma fidelidade ao que é interno ou a tentativa de aniquilar o que bloqueia essa introspecção.

As variações das tonalidades surpreendem no andamento, mais voltado ao minimalismo, e até, de certa forma, sedutor esse jogo de construções frágeis que o Kreng estabelece. Os músicos devem seguir rigorosamente a composição (a não ser nas partes obviamente reservadas para o livre improviso) porque, em nenhum momento saímos da aflição constante através das músicas. Essa sensação exclui a lógica que os nomes das músicas (e a sequência que elas estão dispostas) propõem, esse ressentimento reinante pode ser visto como o “núcleo”, embora nunca de forma objetiva ou determinada. Não é um álbum, então, de aceitação. Ele não oferece conclusões e soa muito instável, muito incoerente ao que podíamos imaginar antes. Kreng discursa sobre o luto e sobre isso não há explicações claras- apenas migalhas, restos, vislumbres, dias.


E isso tudo seguiria de forma bem resistente e, de certa forma, perturbadora, se as últimas duas faixas não entregassem toda a previsibilidade que, depois de escutadas especificamente essas ambas as músicas, vamos lamentar não ter reparado isso antes. Ao invés de procurar uma “aceitação”, elas desestabilizam a “fragilidade emocional” que o disco meticulosamente ensaiava construir. Penso nelas como reciclagens de ideias repetidas, apenas “adicionando” uma banda (Amenra) para tentar garantir outro ponto de vista para o corpo sonoro do disco. Não soa uma “fusão” de estilos, mas sim uma tentativa desesperada de mostrar que dá para fazer outra coisa, que o Kreng não quer se esconder sob a mesmice. Penso no conceito de The Summoner e, se no meio do disco fiquei em dúvida se o desejo era implodir as pré-determinações, no fim do álbum tenho a plena certeza de que não. A ideia era fazer um caminho da “redenção”. Penso nessa ausência como algo fundamental para tentar demonstrar o luto e escancarar seu sofrimento e a penúria que é viver sob seu desígnio. Porém, enquanto algumas composições realmente valem aqui, a sensação é de que os músicos penaram muito para algo com tão pouco a oferecer.

sábado, 14 de fevereiro de 2015

Lupe Fiasco - Tetsuo and Youth [2015]

De volta em 2007, Lupe afirmava quão preocupado ficava com os fãs e com as gravadoras enchendo seu saco para ele reduzir suas letras, deixá-las mais “simples”. Logo elas que são os maiores trunfo da maioria dos mc’s (o trunfo de outros vai para seu tanquinho ou sua aparência “gangsta”, mas não vou entrar nesse mérito)! Pegue letras como Dots & Lines, por exemplo, onde há uma preocupação notável para não se tornar apenas outra “alma vendida”. Mas aqui me atento a um contraponto. A base, definitivamente, não é ceder aos interesses comerciais. Porém, muitas vezes, toda essa complexidade nas letras me soa forçada, imposta por um pedantismo escondido em algum lugar desse universo hiperativo que é o cérebro de Lupe.

E aqui vamos ao paradoxo do que uma mente tão sucinta pode criar. De um lado, temos algo completamente singular no hip-hop. Além de seu flow que vai do estilo livre às rimas melódicas decididamente pensadas, uma complexidade que às vezes tange a abstração (e não quero dizer que “abstrair” seja algo necessariamente ruim, mas não se encaixa com sua dinâmica e proposta de hip-hop) e músicas definitivamente de resistência, tanto em sua sonoridade que está sempre, de algum modo, conectada com a formação negra norte-americana (e aqui podemos desenhar um paralelo com D’Angelo) quanto ao apelo lírico, abordando o racismo desde suas formas primárias ao show business. Falo da complexidade das letras porque nos beats, Lupe não tem medo de simplificar a parada quando assim lhe parece necessário. Esses beats ambientam micro-histórias que, com a subjetividade obviamente implantada (Lupe não consegue não “tirar” sua versão moral sobre os fatos, ele é um observador perspicaz), constrói em nosso imaginário imagens e signos que se fundem. Como expliquei anteriormente, sua imensa amplitude e variação no tocante ao instrumental alcança a música afro-americana do século XX, imersão que realmente remete o período pós-barroco e melodias passivas, meditativas e reflexivas. No entanto, ele convida algumas participações que parecem que não têm maturidade o suficiente para acompanhar tamanha variação.

As expectativas de um hip-hop mais “tradicional” serão rebaixadas e lá pela sétima faixa (são dezesseis no total) você vai perceber que não é isso que ele quer, e não é isso que você vai ter (e aqui podemos pensar numa discussão interessante entre quebrar as “expectativas” do ouvinte e praticamente negar uma tradição cuja qual você está supostamente ligado, ainda mais uma tradição que tem suas origens na subversão). Mas como uma pessoa que pensa na abrangência e tem nela uma criação calcada vai preencher expectativas , digamos, mais “baixas”? Talvez ainda não estejamos no seu nível, talvez suas raras habilidades dentro do meio mais “mainstream” assustem um pouco as pessoas ou talvez ele esteja andando mais do que sua criação permite. Para isso, nós precisaríamos de uma visita mais calma na sua discografia, mas vamos tentar nos focar na imanência e importância desse álbum, nesse ano e em seu terreno. O álbum é longo e desobedece (outras expectativas quebradas!) uma sequência lógica ou linha narrativa. Isso não teria problema algum se ele não estivesse, justamente, envolto em histórias e se valendo delas para sua expressividade. E num ponto onde as bifurcações parecem tão confusas (porém intencionalmente complexas) temos outra grande falha- dicotomias relativamente simplistas entre as melodias que antecedem os gêneros (onde ele passeia entre o popular, as ênfases pesadas e os vocais gospels) e o flow típico do hip-hop contemporâneo. Digamos assim, é excelente essa abrangência e uma mente que tente subverter expectativas só que, se analisadas com alguma cautela, essas subversões não discursam suficientemente para o tamanho que Lupe almeja.


Obviamente Lupe não quer ser purista e eu (acho que a variedade de temas no blog implica isso) não estou pedindo isso, pelo amor de deus, não. Mas parece que ele se lançou numa missão apenas tecnicista e se esqueceu de que deveria ter elaborado algo antes. Não podemos contar só com a ambição e com a técnica. Ao ponto que alguns ouvintes vão se sentir traídos, outros aparecerão por tamanho apelo ao “universal”, eu creio que ambos os tipos (e tudo entre esses dois polos) vão se sentir perdidos. E parece que Lupe está um pouco perdido, também.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Viet Cong - Viet Cong [2015]

A música “orientada” pela guitarra tem sido declarada como morta não é de hoje. Mas o que raios isso significa, “música orientada pela guitarra”? Podemos usar como contraponto, os excelentes trabalhos realizados nesse testemunho, mais precisamente, o desempenho incrível de Dinucci em seus vários projetos musicais. O que nos remete ao trabalho dos canadenses do Viet Cong. Qual o mérito na focalização da guitarra aqui? A estética deles realmente “exige” isso ou temos apenas um apanhado do legado do Joy Division, Sonic Youth ou Television? O primeiro disco deles é uma amostragem da tentativa de “sair” de suas influências e adentrar um terreno de criação própria.

Caímos em 2015 e quando uma banda tem influências tão incendiárias, imagino que fica impossível não tentar fazer um disco que abranja todas essas possibilidades e desencadeamentos, mas o necessário aqui é “discursar” entre a brecha que essas alternativas estimulam. Afinal, nós já estivemos nesse terreno, já ouvimos bandas maravilhosas (especialmente no “boom” do começo dos anos 1980) apresentar essa neurose, tensão, selvageria e expressar esses qualitativos em sonoridades que soam urgentes, catárticas. Nós já estivemos nesse terreno e sempre que surge uma banda clamando isso, pensamos, “hei, caras, qual é? Já fizeram isso e provavelmente fizeram melhor”.

A questão é que o Viet Cong pulsa e soa urgente. Sua música não é determinada pelas influências, mas pelas sensações que estas causam. Pensamos na determinação do caos e os elementos que o solidificam; os vocais desorientados enquanto a bateria inicia uma marcha e os ruídos da guitarra evidenciam uma perca- os drones da guitarra que encontram uma melodia mais pop e acessível. Mas a questão aqui não é a “acessibilidade” do disco, não poderia ser. Temos uma obra sem serenidade alguma, mas que não representa “tiros cegos”, não. Eles nem tem um alvo pra falar a verdade. Eles querem colocar a porra do Gang Of Four sob a subjetividade deles. Eles não vêm problema nenhum nisso e, quando é determinado de forma tão feroz, eu também não.

Temos uma marcha rumo ao nada que é desprovida de niilismo. Os sintetizadores claustrofóbicos de March Of Progress confirmam isso. Não é uma jornada de maturidade, mas o álbum apresenta “sete maneiras” de explodir, de se expressar- cuja única finalidade é esse núcleo descomposto que emerge em cada canção e morre nela mesma, sem necessidades, sem objetivos.

Devo lembrar, porém, que nesse farol incessante que tenta capturar cada ponto que “pode” ser focalizado, temos o tema “morte” que tange o disco todo. Antes de ser o Viet Cong, dois membros da banda formavam o Women, cuja morte de seu guitarrista, Chris Reimer, proporcionou o término da banda. Então, compreendemos um pouco algumas explosões e de como esse assunto, embora não destaque o disco, surge como uma sombra sempre à espreita e fugidia.


Agora, retorno ao ponto inicial e pergunto “por que ainda crer em Deus, ops, na música orientada pela guitarra”? Eu penso nesse álbum existindo com os grandes nomes do começo dos anos 1980, mas também o interpreto como algum absolutamente contemporâneo, na briga constante entre “simples retrô” e uma articulação própria que inaugura elementos como caos, catarse, morte. Talvez a “música orientada pela guitarra” não tenha mias um por que, mesmo. Mas quanto a mim e principalmente a galera do Viet Cong- estamos pouco cagando.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Há um ano eu falei no ano que vem vou ser um homem melhor

Eu ainda me lembro do ano passado e de nossas promessas. E você colocou um chapéu em mim, a banda passava lá trás. Dizia:

- Assim você fica bem melhor.

E roubou o meu celular e tirou uma foto.

Aquele celular que eu perdi um tempo depois. Naquele mesmo celular que eu disse “eu te amo” pela primeira vez, tantas vezes, com o álcool na minha garganta e eu me perguntava, “será que um dia vou gostar tanto de alguém a ponto que tudo o que eu diga não me soe como fingimento”?

Lembra que há um ano eu estava melhor, e larguei o emprego e tentei voltar a escrever? Lembra que você me dizia “eu nunca namorei” e meus olhos só procuravam o canto dos bares, algum ponto fixo para eu evitar te olhar.

Eu me lembro de nós dois girando e um mundo engraçado atrás, e das cervejas geladas e dos meus goles escondidos de cachaça.

Eu lembro quando você acabou comigo e eu não senti nada. Até achei engraçado na verdade e segui rapidamente em frente (eu que demoro tanto para me desapegar). E tem sido assim, com meus pais, com as pessoas que me cerco, eu digo um monte de merda, encho minha boca de palavras e no fundo eu sei que é só fingimento.

Eu só preciso matar o tempo. Tanto faz. Sei que vou voltar a caminhar sozinho pelas Avenidas. Em noites de calor, e vou olhar o movimento das nuvens e vou me lembrar daquelas raras histórias.
Dos raros momentos que vivi e das abstrações que eu reservei pra mim. Um dia desses, eu largo meu emprego e escrevo meu Grande Gatsby, um dia desses, eu paro de pensar se você foi importante pra mim. Eu até tentei voltar, tentei falar contigo

- Sinto sua falta

Mas essas coisas sempre me soam bobas e nós não temos nos visto. Daqui um tempo, meros amigos. Daqui um tempo, apenas o gosto pelos mesmos discos. Algum dia talvez eu veja sua banda tocar e a gente até divida uma cerveja. Mas a gente sabe que é impossível voltar a sentir o mesmo.

Eu estou tão cansado de tentar recomeçar sempre. Precisava duma mão garantindo que “tudo isso vai passar”.

Ou quem sabe o destino para de troçar. Enfim, ano passado a vida estava bem melhor. Hoje estou sufocado. E juro que não é pela tua ausência.


Mas como eu sou alguém que precisa entender o significado real de ausência.

Bjork – Vulnicura [2015]

Se o sofrimento é matéria-prima para muitas obras, então estaria Bjork jogando os mesmos jogos? Vejo esse disco como uma casca fechada em torno de si. É um lançamento que exige um rito, um comprometimento dos ouvintes. Ele não se desenvolve sozinho. As sessões de corda trabalham com os elementos eletrônicos, coexistem, porém com finalidades talvez não tão óbvias. A primeira faixa já antecipa a catarse posterior, Bjork vem com sua voz alta e desequilibrada, em ataques constantes- contra o coro de vozes, contra o violino perdido, em conjunto com o ambiente construído pelo acompanhamento eletrônico. Em Vulnicura, apenas duas faixas não tem mais que seis minutos e ao longo dessas nove músicas, nós encontramos uma coleção bem considerável onde o “etéreo” das cordas é envolvido por uma aura eletrônica, produzida pelo sempre competente Arca. Soa como um absoluto estilhaçado, decodificado e arrastado durante praticamente uma hora pela visão esperançosa e caustica de Bjork.

Que solidão e coração despedaçado são temas comuns no pop não temos dúvida, a diferença de Bjork é que ela tem uma perspicácia muito poética no tocante a esses assuntos (poética como iminência, como rompimento do mundo planejado e arquitetado). Se para Martin Amis a literatura é uma guerra contra o clichê, podemos dizer que ela encara a música do mesmo jeito. Bjork versa sobre os abismos não do ponto de vista da autoajuda barata que corrói o pop contemporâneo, mas sob a perspectiva de estar “inteira” e “quebrada” ao mesmo tempo. São situações limítrofes, pois o eu lírico tem emoções sem limites, teme as obsessões apocalípticas das pessoas que lhe cercam. Gera muito desconforto essas constatações, um mundo ruído em um ciclo sem fim. Ao mesmo tempo em que a voz de Bjork se ergue com uma paixão enorme, ela ao mesmo tempo tem raiva, se submete, é desequilibrada. Ela é um dos raros exemplos de como manejar a voz sob seu tecnicismo e mesmo assim não perder a carga dramática que sua música exige.

As cordas sustentam o “sofrimento” de Bjork, e as partes eletrônicas existem como contraponto e, às vezes, tomam controle. Uma “redução” a esses dois elementos e o atrito constante (a batalha constante de Bjork para sair de um estado de miséria e solidão) configuram o embate de Vulnicura. Essa espécie de redução violenta das estruturas formuladas da música comercial, uma alquimia em que ecoa uma liberdade indesejada pela artista, afinal, o que se fazer com a liberdade quando não há a possibilidade de redenção? Isso me deixa exausto, desgastado e é realmente um disco sobre desgaste. Não é como se o disco fosse focalizado nisso. Mais parece que é o rumo inevitável para a cantora. A intensidade das revelações de Bjork tornam as audições em um rito de angústia, um retorno à memórias não queridas e dolorosas. Cada música em si já tem seu peso, mas juntas, elas ficam excessivamente pesadas, ancoradas em um porto solitário, abandonado. Não há salvação, não há redenção. Não terá música acessível, não terá um escape- esse ambiente está carregado por uma alma vazia, um ente que vaga pela ruína das imagens, pela impossibilidade das palavras, pelo lago negro e gelado. Essa é a obra mais pesada e densa de Bjork, a que mais abusa de estruturas não convencionais também. Mas ela não faz isso por mero experimentalismo, mas parece uma exigência de algo que antecede ela mesma ou sua fonte criativa. Mesmo nas partes em que parece que as nuvens vão se abrir e tornar o tempo mais calmo, nós temos a implantação de dúvidas, temos a impressão de que nada será o suficiente, de que nossos esforços foram idiotas.


Vulnicura é um imenso corpo sonoro, cujas fraquezas emocionais são contrárias da edificação instrumental. As intricadas texturas colocam toda pressão sobre uma desorientada Bjork, em um deserto que parece interminável. Isso explica sua exaustão, seu longo período- temos um terreno em que as combinações abafam o sujeito em medo, desconhecimento. Enfim, morte. Vulnicura não apresenta nada “essencialmente” novo para quem acompanhava a carreira de Bjork. Mas é a maior exploração do sofrimento que a cantora já fez. E isso já é muito, muito pesado.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Magma - Slag Tanz [2015]

O que quer que aconteça no decurso de um disco do Magma, teremos a árdua tarefa de nos lançar para tentar “compreender o que se passa”. A surpresa pode ser de um cosmopolita ao ver um ritual de uma tribo canibal, por exemplo. Não controlamos nossa surpresa porque estamos em uma espécie de zona de conforto- até onde eu sei, a maioria das pessoas “simplesmente” ouve o que gosta, ou o que foram inclinadas à gostar, mas não vou entrar nesse mérito.

Ir a fundo numa música é tentar deixar de lado seus “gostos” e tentar se debruçar sobre uma criação e suas possibilidades. E não me refiro a “entender o que a banda quis passar”, mas que haja um compartilhamento que estimule uma dissecação do instituído. No caso do Magma, para encontrar uma conexão é, relativamente, complicado. Isso porque não é uma banda que opta por caminhos mais acessíveis, não subdetermina suas possíveis interpretações. É uma banda aberta, com uma estética que certamente não é passiva. Já li gente falar que ouvir Magma é uma “sessão” de terapia, mas, comigo, as coisas não acontecem dessa maneira. Magma é mais uma catálise, um rito em homenagem ao delírio e ao fantástico, numa compreensão borgeana.

“E se não há um compartilhamento possível, e se o artista tem uma proposta tão inversa à sua compreensão de arte?”. Eu poderia falar para simplesmente parar com essa merda, mas vou continuar com a música, vou tentar, pelo menos. Então surge o cômico, a usurpação de papéis fantásticos (daí a relação com Borges) para causar um riso no ouvinte. Não é um riso de troça, mas a sonoridade do impossível, do impensado. O nunca passa a ser concreto. Percebemos algo lentamente tomando forma e um monstro que, ao invés de nos assustar em estereótipos infantis, tem força o suficiente para significar algo. Aqui estão os doidos varridos, cantando vinte minutos num regozijo aural.

O ouvinte fornece suas convenções e o Magma desestrutura em um coro maluco, que apela aos sentidos que contrariam uma seriedade pressuposta por muitos que teorizam a música. É que o Magma é uma daquelas bandas que funda uma estética, que instalou uma forma nova de experiência que pode surgir com a música. E é esse “choque” (que invariavelmente vai cair mais para as risadas, mesmo) que tem desviado o rumo do tão chamado “rock progressivo” ao longo desses quarenta e cinco anos. Slag Tanz é tão esquisito quanto os melhores discos da banda e isso aqui é uma espécie de elogio. Impressionante como alguns gritos bem altos exteriorizam as mesmas sensações apreensivas (ao mesmo tempo exaltantes!) que demonstravam num longínquo 1973. Se o estigma de aberração cabe ao Magma, eles fazem por mérito.

Ao mesmo tempo em que pode ser impressionante como uma banda que se formou na década de 1960 ainda esteja junto, há um vácuo que poucas bandas ocupam como o Magma. É uma diferenciação da uniformização de bandas como Rolling Stones, por exemplo. É curioso e meio reducionista falar que eles seguem o estilo musical que eles fundaram, mas a corporificarão do líder, Vander, reflete com muita influência uma estética que, no mínimo, ele ajudou a aperfeiçoar. A banda francesa transpassa o arquétipo simples do psicodelismo para aderir, mesmo, a uma encenação bizarra. Em um resumo mais básico: eles criaram a própria língua e falam sobre o povo dessa língua que deixou o planeta e depois retornam para exteriorizar os defeitos da raça humana. Isso é uma operação mítica da banda, de transcender o realismo para criar uma fábula musical (até ai, nada demais, pois muitas bandas de Power metal fazem isso, não? A diferença é que essas bandas utilizam do mesmo modus operandi que outras do status quo, se ainda existe um status quo na música).


É uma música cuja natureza continua desafiadora e eu não recomendo isso para quem não esteja disposto. É um surto harmônico, cantando em um dialeto incompreensível com represálias à raça humana. Sim! Em um mundo onde a saturação das mídias especializadas apontam muitas variantes comercias de “esquisito”, o Magma é sempre uma boa referência para justificar o termo em seu mais glorioso ímpeto. Encontramos agressividade sônica muito diferente do “noise pop” que circula nos charts mais populares- nós encontramos o termo “bizarro” ampliado e definido musicalmente. E se alguém insistir na boba pergunta, “o que eles estão dizendo?”, revertemos a pergunta: “o que nossa música tradicional tem dito, mesmo?”.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Banana Scrait – Voo [2015]

Cantar é ser, cantar é celebração. Cantar é passar o tempo expressando o cotidiano, as singularidades e minúcias que constituem o dia-a-dia. Cantar é uma necessidade, um chamado. Uma manifestação. Cantar é negar o futuro, é afirmar o presente- um combate onde emerge partes perdidas, significados ocultos. Não quero dizer que cantar é um ato puro em si, porque ele vem das mazelas da existência, também. É uma caminhada às vezes dolorosa, difícil e o que sai da voz pode ser confundido com dor, desespero. Reconhecer uma melodia, abrigar em sua manifestação como um lugar seguro- trêmulo e compulsivo, mas seguro. Ser singular em uma tradição de muitas, muitas cantoras boas, em um mundo com muitas cantoras excelentes e, ainda assim, ter a coragem de se expor, se ariscar, querer gravar. Impor-se.

Banana Scrait nos oferece um passeio. Não me refiro a uma caminhada contemplativa num domingo ontológico, mas um método aplicado (empírico, como queiram) de descobrir sonoridades, pequenas manifestações. Voo ecoa o universo musical dos componentes. É um disco, portanto, de distribuições, de diferentes espaços em uma estética que segue certa coerência. Há um espaço que a música ocupa- um núcleo refletido por outros olhares. Cada música é um olhar. Tem  o francês, o inglês e, é claro, o português. A faixa-título expressa bem essa ideia de “diversos olhares para um mesmo núcleo”, a música é cantada em português e francês. Podemos pensar em pluralidades e conceitos descentrados, mas eu retorno ao “passeio” que mencionei anteriormente, não vejo esse disco como uma obrigação. Voo é o oposto de “obrigação” e impressiona, justamente por isso, em como sua “simplicidade” (estética, não técnica) pode resultar em um descanso merecido.

Voo é, obviamente, a variável mais otimizada do conjunto. É um espaço que as estrelas são contadas através de leves melodias pop. Variáveis apresentadas em mais de uma língua, uma diferença ligeira no arranjo entre as partes- pois os passeios variam. Se não na paisagem, mas à maneira que andamos, gesticulamos e observamos. Andamos para ver o mar, para testemunhar que o esforço valeu. Passear é envelhecer, mas também é seguir em frente, e todas as “jam” do disco não perdem tempo, prosseguem- não duram muito, o suficiente para deixar sua marca e depois continuar na próxima canção. Passeamos, pois vamos repousar e continuamos porque amamos uma vez e vamos amar novamente.

Depois da instrumental Giostra, que abre o disco (e podemos perceber alguma das interessantes variações instrumentais que vão acompanhar todo o disco), temos uma música que simplesmente fala sobre acabar com a solidão, andar por aí. Então esse disco não tem um norte específico, mas são suas variações e temas relativamente menos densos que aplicam algum tipo de conceito. Nada é determinado em Voo. Apesar de tudo; o mar e as estrelas. Apesar do mundo, Voo. Essa é sua força. Não é uma recusa de “enfrentar a realidade nua e crua”, mas indicar outra forma de realidade, outra forma de vivência que podemos encarar estando no mundo. As metáforas talvez nem sejam metáforas. Em Pra Ver O Mar, estamos falando do mar e das estrelas, enquanto entidades individuais, específicas. Eu posso ver e cantar o mar e as estrelas então é isso o que eu vou fazer.


Falei sobre cantar no começo e aqui retorno ao canto de Andrea como terreno em que o “passeio” passará a começar. Se ela é o começo, ou a palavra (como quer o evangelho de João), as diferentes transformações da banda são o espaço para a caminhada. Andrea não encontraria onde dar a confirmação de sua presença, não fosse a banda. Caminhar é estar no mundo e não só contemplá-lo, é sentir as transformações do ambiente e reproduzi-las em seus atos. Assim é cantar, assim é tocar, assim é fazer música. Tudo se dissipa e nada fica registrado- ficam as declarações, a vontade de dizer tudo sobre alguém, as músicas que não foram gravadas. Fica quase tudo para trás, mas algum dia nós andamos por aqueles lugares, ouvimos aquelas canções, conhecemos aquelas pessoas.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

10 álbuns de 2015 que merecem atenção.

Se tudo der certo, vou atualizar todo fim de mês.
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Amargo - Processo de purificação
Processo de purificaçãoProcesso de purificação é o mesmo tempo repetido diversas vezes e tentando violar conceitos como “pecado”, ”condenação”, etc. O Amargo expande sua dissonância para fragmentar e incomodar nossas convenções. E assim é feito

Astronauta Marinho - Menino Sereia
Menino Sereia não é um apelo a “técnica” musical, e sim quer comprovar um ponto de vista que encontra alegria na manifestação das coisas (dos sons, no caso). É maravilhoso que isso aconteça porque esse disco exige outras escutadas. Ele consegue radiar sem simples abordagens, ele consegue ser acessível enquanto não é “mais do mesmo”.

Kreng - The Summoner
The SummonerSeu novo álbum, The Summoner (Miasmah), é uma elegia aos entes queridos perdidos, bem como uma reflexão aural de luto.

Mobile Suit - Belial Kokoro
KokoroAs remixes vulgares estão ai para ofender quem tem que ficar ofendido, mas Kokoro transcende a mera usurpação e escava um buraco ele próprio. E escavar buracos é o que entendo como arte, pelo menos a arte necessária, aquela aberta e sem defesas. 


Cássio Figueiredo - Diário
Diário São significados disseminados através de diferentes freqüências que evocam cada dia de Diário como um espanto- parecem dias longos, perpetuados pela manipulação de Figueiredo. 

Matana Roberts - Coin Coin Chapter Three: River Run Thee
Coin Coin Chapter Three: River Run TheeNenhum gênero está a salvo da arte de uma mente como a de Matana, e isso só pode ficar melhor a partir daqui.

Lupe Fiasco - Tetsuo & Youth
Tetsuo & YouthTetsuo & Youth é um coroamento para Lupe Fiasco, e ao mesmo tempo é longo, mas não se perde no seu próprio excesso de indulgência.

Viet Cong - Viet Cong
Viet CongO fato de que o álbum poderia ter sido lançado antes de seus membros nascerem, assim como representa muito do que é produzido no "roque alternativo" contemporâneo, é prova de quão bom o álbum é, e porque surpreendeu grande parte das mídias especializadas.

Björk - Vulnicura
VulnicuraVulnicura tem a maturidade musical que esperávamos em sua música, muito mais importante do que os multimedias decorativos que muitos músicos insistem hoje.

Magma - Šlaǧ Tanz
Šlaǧ TanzPodem simplesmente classificar Slag Tanz como "retro", mas fazer isso desvia o foco que é uma banda em seu melhor! Os coros de ópera, os riffs angulares, vibes atmosféricas, e seção rítmica soberba são transcendentes.

Amargo - Processo de purificação [2015]

Seria complicado e eu me perderia muito se falasse sobre “racionalidade” em um tipo de música que aponta a extinção.  Prefiro falar me atentar mais à “decomposição” dos parâmetros mais tradicionais na criação da música. Em Processo de purifcação, podemos nos questionar o que está sendo purificado. Essa sequência irrefreável de repetições distorcidas justapostas que abre o disco pode, à primeira estância, parecer o oposto de qualquer purificação possível. Então vamos tentar não falar de uma purificação na concepção judaico-cristã, vamos tentar enxergar como purificação um mundo livre dessas concepções que nos amarram. Emerge o monstro profano na forma do barulho insuportavelmente alto da guitarra, ele se ergue e vai fazer o que tiver que fazer para instaurar seus métodos e quem sabe, com alguma sorte, nos tirar desse rebanho.

O disco tem uma abordagem minimalista à sua maneira. A saturação ocorre desde o início e não há pausas, a guitarra mais alta e os berros atrás, subterrados. Embora muitas bandas denominadas como Black metal tenham aderido às outras influências de outros estilos, o que garante autencidade ao Amargo é uma espécie de fidelidade à argamassa densa e cinzenta que podemos facilmente confundir como a estética do gênero.  Há com certeza um enraizamento na produção lo-fi e na infusão apenas da guitarra, seus efeitos e os berros.

No entanto, essa subprodução funciona como efeito catalisador para a sensação que o álbum almeja. Anteriormente falei sobre a reclusão à guitarra e vozes, mas na primeira faixa percebe-se o adicionamento de uma bateria. Essas difícil percepção das somas ocorre ou por intencionalidade ou pela própria condição de gravação. Não importa, funciona. Parece que não há orientação e nesse mundo homogêneo seria estranho se houvesse orientações em uma música de ruptura. Essa presença forte da guitarra não oculta, ela cobre como a terra. Ela está por cima do universo pesado e saturado que Processo de purificação habita, esse ambiente extremamente denso que é ele mesmo, uma amostra de um mundo cíclico, repetitivo. As sete faixas do disco sufocam-nos no mesmo ambiente, o processo é a repetição e só por ela que vamos sair purificados. O Amargo nos oferece essa uniformidade que não é a mesma monotonia dos processos tradicionalmente instituídos, sua formulação musical é uma oposição rígida contra a Instituição. É a presença do “contrário”, é a conversão de um método em outro que, embora utilize técnicas que se assemelhem, significa justamente o inverso.

Processo de purificação pode ser encarado como um disco de oposição, embora siga um enraizamento calcado nas bandas “faça você mesmo” de Black metal, enquanto o vocalista (que é a banda toda), Victor, urge em linguagem profética sobre a decomposição. Parece que estamos em um atrito constante e em nenhum instante temos brechas. As distorções soam tão altas que às vezes elas tomam conta e somos conduzidos por suas esquisitices. A guitarra que comanda essas divergências e transições entre espaços (se é que há um espaço habitável nesse ambiente enclausurado do Amargo)- em Parte Três é oferecida uma argamassa praticamente impenetrável, com os riffs repetidos e protegidos pelas distorções, é um “não se aproxime” claro.


Esse álbum do Amargo contém os elementos que ainda me cativam na busca por “música esquisita”. Processo de purificação é o mesmo tempo repetido diversas vezes e tentando violar conceitos como “pecado”, ”condenação”, etc. O Amargo expande sua dissonância para fragmentar e incomodar nossas convenções. E assim é feito.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Mobile Suit Belial - Kokoro [2015]

O que é original já não tem importância. E nem sei se algum dia teve. E nem sei o que é originalidade. Passo dias vasculhando bandcamps e soundclouds para encontrar algo que eu gosto. Não tem que dizer nada. Não precisa dizer nada. Tem que me agradar. Tem que desafiar meu senso comum e causar um deslocamento. Não me refiro às originalidades, portanto. Refiro-me a deslocamentos. Enquanto ouvinte, enquanto arte. Meu quarto é uma discoteca. Meu quarto é uma discoteca de música pop e experimental. Meu quarto é tudo entre esses polos. Os sons saem das caixas, meu senso comum é agredido. Meu quarto é uma máquina que recepta divergentes estéticas e as reproduz sem nenhum fim específico a não ser causar o deslocamento que falei. Falo sobre deslocamentos parado, digitando, num mundo onde as supostas “pós-modernidades” irrompem como confusão. São muitos conceitos, são muitas tags, é um excesso que reverbera a não pertença. É um excesso que excluí, mas também paradoxalmente é o único excesso que pode me recuperar. Sem excesso não há mundo possível e passaríamos a existência como Kasper House. É um excesso que permite descobertas. Descobertas como Kokoro, como a tão nomeada vaporwave,ou qualquer designação que se encaixe nesse mundo. “Nunca antes na história da humanidade houve tanta apropriação cultural”, disse Neo. Tudo é possível. “Remixar não é criar”. “Arte não é cópia”. Mas quais as definições de criar? Minha mente é um complexo de conceitos, minha mente recepta e redistribui. A internet é uma plataforma. Não há uma raiz. Estamos complexados e bêbados nessas estruturas- estamos bem, então.

Assim, temos tecnologias dispostas o suficiente para proliferar diversos remixes, estes podem ser analisados a partir da criação através da percepção e sensação artísticas do criador, ou para um conceito sólido e objetivo, ou para esferas mais abstratas e subjetivas e tudo entre esses opostos. Diversos gêneros vão contribuir na criação de uma nova ambientação que pode até discordar radicalmente da estética que eles eram a priori, isso tornam o próprio meio nocivo e distorcido, intencionalmente desvirtuado e uma reintegração à reapresentação sonora de quem pesquisa. O que se torna interessante no Mobile Suit Belial é a forma fluída que diversos elementos das mais variadas culturas no Brasil, o funk internacional, junto com animes japoneses, se integram e refletem que apesar de praticamente incompatíveis em primeira instância, seus significados primários são violentamente trucidados por quem os redistribuí (isso é, obviamente, mais uma homenagem e um atravessamento do que qualquer espécie boba de “destruição”).

O material de origem em discos “vaporwave” é o elemento principal para apresentação do desenvolvimento estético- os barulhos escondidos no alto-falante, as vozes computadorizadas, os sons indefinidos que surgem atrás das melodias mais claras, os sintetizadores- é como se todos esses sons definissem certa perspectiva, ou melhor, a perspectiva é apresentada ela mesma na distorção dos materiais originais e na integração desses resquícios. É como se os complexos pudessem criar uma nova estética. Talvez ai nós podemos a começar a encontrar um pouco mais de encaminhamento e evitar os discursos prontos de “vaporwave” não faz sentido”. Vejam bem, pessoas que insistem em dizer isso caem, sem saber, no próprio discurso torto desses artistas, essas pessoas já estão contaminadas pelas relações de consequência, necessitam de uma falsa ideia conceitual e dizem “esquisito”, e se esquivam da discussão. A distorção dos samples é a reflexão dos eventos que se passam com a pessoa que faz a remix, e sua simples aplicação já deveria garantir esse tal de “conceito” que tantos exigem.

A saturação do Mobile, no entanto, foge à exploração mais comum na ‘vaporwave’ e utilizada métodos semelhantes aos outros nomes no estilo, mais notoriamente Saint Pepsi eマクロスMACROSS 82-99, ou seja, o favorecimento de algo mais orientado pelo funk (dos anos 70 e o brasileiro) como elementos mais clássicos no estilo, como as vozes, especificamente Joel Santana falando seu inglês, o PRONA em inglês, o surgimento do Cassiano. Para quem exigia conceito anteriormente, essa percepção e a música que ela produz já deveria se garantir por si só. São modulações que registram um estado e até onde sei, registros desse tipo é o que chamamos de arte. É uma noção mais radical do que “a música que sucede é necessariamente um desenvolvimento da antecessora”. Não é bem assim; a música que sucede é um reflexo da percepção sonora adquirida pelo artista e todas as fraturas, feridas e também alívio e bem estar que com ela surgiu. O sample se tornando o instrumento em si.


Mobile Suit Belial foge então de conceitos mais “subentendidos” do gênero para, com sua depuração e orientação de certo refinamento, mixando os samples com as diversas possibilidades da manipulação eletrônica, entregar um produto final que é, realmente, menos ofensivo e mais “agradável”. Kokoro é uma obra que se insere e se apropria das várias técnicas coaguladas e possibilita uma audição própria, não “apropriada”. As canções originais são fantásticas, disso ninguém duvida, mas Guilherme Miranda estabeleceu seu ponto de vista, exacerbando as possibilidades. No fundo, o disco é isso. Possibilidades. É um dialogo entre discrepâncias que talvez a própria inauguração dessa conversa sugira a redenção possível. Não se trata de uma resolução para elementos que não interagem, mas como a própria interação é um reflexo de quem analisa. Com Kokoro, o Mobile realiza o que muitos detratores apontariam o dedo sem pensar duas vezes. Curiosamente, suas armas são os que estes mais repudiam. Não há tempo para recuar e pensar duas vezes. As remixes vulgares estão ai para ofender quem tem que ficar ofendido, mas Kokoro transcende a mera usurpação e escava um buraco ele próprio. E escavar buracos é o que entendo como arte, pelo menos a arte necessária, aquela aberta e sem defesas.