Eu poderia passar horas falando
sobre como o Empire tem sido uma das
bandas mais importantes pra mim desde 2009. Mas eu prefiro voltar pra lá e
tentar discursar a partir daquela fenda, sem ordem cronológica- apenas através
da consanguinidade que eu tenho com essa banda. Desde sua criação, 2006, a
banda tem sido muito prolífica em termos de lançamentos, porém demorou cinco
anos para lançar esse disco cheio. E o que não se construiu na minha cabeça
sobre as possibilidades desse novo disco. As letras de Keith sempre tangeram a
autobiografia e pareceu falar sobre espaços ainda “não cicatrizados”, elevando
sua voz em tons que faziam um dueto com as delicadas frases da guitarra. Aliás,
Empire nunca teve medo de se expor,
expor a fragilidade de um eu lírico impugnado em um mundo de duvidas. You Will Eventually Be Forgotten teve
muitas críticas na época do seu lançamento, mas todas ditas do conceito (“o emo revival é um saco”, etc) e eu até
entendo. Mas não é sobre conceitos que eu quero falar. É tudo pessoal demais.
As duas músicas que abrem o disco
falam sobre acidentes de carro. Eu passei por dois acidentes e um eu não lembro
(nele minha irmã morreu) e no outro, o segundo, minha vida também não passou
pelos meus olhos. Não houve flashback. Nada de filme de um segundo. Só um
sangue escorrendo da minha mão, a tentativa de sair pela porta do passageiro.
Eu sempre penso que tudo seria diferente, caso... O casal que forma o Empire (e que também é protagonista
dessas duas primeiras faixas), Keith e Cathy Latinen, também são donos de uma
gravadora responsável por lançar coisas muito legais no tocante ao indie/emo (e o bando de órfãs de
Mineral, Penfold, etc). É incrível
ver esse trabalho faça você mesmo, envolvendo uma enorme quantidade de bandas
honestas. Impossível, também, não relacionar ao trabalho que alguns selos brasileiros
tem tanto se esforçado, e (para citar uma nesse gênero), não posso deixar de
falar da Bichano Records. Existe por
aí certa irmandade envolvendo pessoas que estão muito entusiasmadas (recomendo
ouvir o catálogo da Bichano, fuçar as gravadoras irmãs, etc).
Eu penso nisso de “quase” morrer
e o que altera na sua vida? Eu continuo me sentindo desconfortável a maioria
das vezes, com a mesma timidez que me impede de dizer coisas legais para
pessoas importantes. Se o disco antecessor era mais “progressivo”, na medida em
que suas variações eram mais aprofundadas, em You Will Eventually Be Forgotten temos versões mais direcionadas,
que não exploram tanto em termos de densidades, pois seus temas são bem
focados. Então, como é dito na segunda faixa, a banda quer aproveitar seu tempo
e, ao invés de prosseguir no clamor de seu álbum de estreia, reduz a variedade
e oferece um exame maior do “todo” do que no antecessor, que tínhamos análises
mais “individuais”.
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É estranho se formos ver os dois vocalistas
convidados para esse disco. Ainda me surpreende muito como a audiência daquele
pequeno e tímido gênero que emergiu nos anos 90 continua leal. Mais do que
apenas “amizades”, Mineral e Braid
significaram muita coisa pra uma porção de gente, e ambas voltaram (o Braid, inclusive, com disco novo!) o que
realmente alegrou essa porção órfã dessas bandas. Não há como não sorrir,
então, com a participação de Bob Nanna e Chris Simpson, sério. A lembrança que
cada uma dessas vozes evoca me suspende na temporalidade- me lembra das tardes
sozinho ouvindo Mineral e das mixtapes
que eu montava, colocando as energéticas músicas do Braid para abrir. Tenho certeza que a convocação de Keith para
respectivas participações tem mais a ver com a conjuração daquelas vertigens,
ainda tão presentes em nós. Eu, pelo menos, gosto de pensar assim. Talvez nós
nos reconhecêssemos aí, talvez Keith represente cada adolescente que sonhava em
cantar com eles. Triunfamos, pelo menos nisso.
E são essas aparentes lembranças
que me separam e me fazem ser aquele garoto ao mesmo tempo. Eu gostaria de
falar que sou melhor que aquilo, mas continuo desajeitado, continuo confuso e
com uma inclinação à introspecção. A abordagem do Empire de como a memória irrompe no presente, sem objetividade
cronológica, sem nada muito pensado- ela aparece em uma paisagem que nos faz lembrar
nosso irmão ou dos nossos parentes mortos. A aventura do disco é do cotidiano,
dos pequenos fragmentos que dizem tanto sobre nós. A casa lotada, os feriados
em família, a solidão que sentíamos depois, os ídolos da infância que agora
parecem estranhos, como nossos próprios pais, como nossa imagem no espelho.
É verão e eu não gosto disso
nenhum pouco. É verão e eu queria estar no frio calmo do inverno, morando em
outro lugar e trabalhando em outra coisa. Eu sempre enumero uma centena de
acontecimentos e torço pelo verão passar rápido e deixar seus trinta graus atrás.
Eu sempre enumero as pessoas que se cansaram de mim e torço para que pessoas
mais incríveis surjam e deixar os vestígios daquelas para trás. As letras de Keith são questionamentos sobre sua
própria condição de mortal, homem e artista. Keith não deixa de reconhecer que coisas maravilhosas têm
acontecido na sua vida, mas também não deixa de ponderar quantas coisas boas
poderiam ter acontecido. Não é uma nostalgia simplista, mas questionamentos que
posicionam o cantor em uma condição ambulante de dúvida constante. As músicas
não têm estrutura convencional e abordam histórias, micro contos que situam o
ouvinte em algum lugar específico justamente para evidenciar que as dúvidas de
outra época sempre nos acompanharão. São narrações bucólicas sobre afeto,
cumplicidade, adolescência e comprometimento. Após algumas escutadas, sentimos
que as personagens que rondam essas histórias são conhecidas. Ou melhor,
relacionamos estas às pessoas importantes de nossas vidas. Sabe quando você
começa a namorar alguém e pode passar a noite inteira falando com essa pessoa,
contando histórias da sua vida até que, de repente, já deu seis horas da manhã,
o sol nasceu- um tem que trabalhar e o outro ir pra faculdade?
As letras altamente pessoais de
Keith distanciaram-se das metáforas e imagens em que se amputavam no disco
antecessor para relatar casos da sua vida e das pessoas que o cercam. A própria
existência é substrato o suficiente para a criação artística. Os títulos das
músicas sugerem também que os grandes momentos tornam os posteriores muito difíceis,
quase impossíveis de suportar. Na décima faixa, temos a história da avó do
cantor que morre e de como seu avô fica dois anos como um morto-vivo, com
memórias de sua falecida. É um disco de perdas, e são muitas; pessoas,
infância, orgulho. A comparação da morte com imagens como árvore e outros
elementos da natureza evocam seu curso natural. Mas como dói. Uma quantidade
significativa aqui discursa sobre a perda ou a possibilidade dela; quando o
casal se casa, mas não consegue encontrar a mão um do outro. Nesses vislumbres
de perdição Keith se debruça e começa a retratar sua história, que é obviamente
nossa história. Não é só uma constatação do óbvio, mas uma pergunta radical, “vale
a pena passar por tudo isso?”.
O disco começa com essa frase “eu
quase te perdi no dia do nosso casamento”, é sempre um “quase”, uma proximidade
enorme com o grande rompimento que a perda causa. Estamos próximos disso
sempre. Eu me aterrorizo quando essas coisas acontecem com alguém querido. Adivinhem
como começa a segunda faixa? “Eu quase morri com vinte e um anos”. Ninguém está
a salvo. Deixem-me retratar. Não é um disco sobre a perda. Mas sobre sua
monstruosa proximidade. Quando estamos dirigindo para algum lugar, enquanto
ouvimos nossa canção favorita- ela nos ronda, nos aflige. Então, essa enorme
honestidade de Keith também é uma afirmação de sua vida. Não existem separações
simples. Quando sua mulher quase morreu, ele casou com ela. Morte e casamento,
tudo tão próximo. Os grandes, os piores momentos. Não à toa, choramos muito
quando brigamos com alguém querido. E não existem truques, estamos expostos. Somos
analfabetos sentimentais, nós tentamos fazer que tudo isso não seja um
desastre, tentamos o melhor e com alguma sorte, isso será o suficiente. É um
drama que embora simples (viver depois morrer) nos cansa sempre e sempre. A
intimidade que o Empire oferece pode
ser vista como uma confiança no ouvinte.
(Estamos em algum lugar legal,
com pessoas queridas. O mundo exterior parece algo completamente alheio. Parece
que somos os únicos vivos. Sentimos uma mão, um toque, uma fala baixa perto do
ouvido, nós ouvimos nossas canções favoritas, lembramos-nos daquela vez que
alguém disse uma besteira e rimos sem parar. Intensamente, tentando reviver
quem éramos naquele momento ou tentando nos transformar em quem éramos naquele
momento. Nós podemos ir e voltar, ficar na rua até mais tarde. As fotografias
forçando acontecimentos, as memórias que não vão se apagar por seus retratos
físicos. Sem simbolismos. Sem determinações. Passar o tempo fazendo nada com as
pessoas queridas. Uma pausa disso tudo que é a vida. Um respiro, um rosto
conhecido próximo. Seus lábios próximos. A gente esquece nossas carreiras, os
estudos e o trabalho).
E como aquilo tudo parece
distante. Como narramos com pesar na voz. Um pesar mais grave, reforçado pela
sensação de fracasso. Pelo temor da perda. Ou como queremos ver no rosto do
outro que ele reconhece nossa existência. Absolvendo-nos do desaparecimento. Poucos
álbuns têm canções tão amarradas em uma finalidade como You Will Eventually Be Forgotten. Onde cada desdobrar- as
vacilações instrumentais, as narrativas detalhistas- estimula questões
importantes e fundamentais e que, infelizmente, vão apenas pairar no ar. Não há
respostas. Não há métodos para se combater essas coisas. Não existe epifania e
é sobre esse terreno que o Empire se
debruça. O que podemos tirar disso tudo? Ficam os soluços de dor, os retratos
tentando comprovar felicidade, as lembranças que irrompem bruscamente quando
passamos por algum lugar que foi importante, a saudade das mãos e das palavras
carinhosas. Tudo se dissolve, é estranho como fica pairando no ar, às vezes
volta pra gente como um empréstimo do universo. Para depois se dissolver
novamente.
E como tirar respostas? Os
momentos estão fixos lá e mistificamos mil hipóteses. E os momentos continuam
exatamente os mesmos. Assim como suas consequências. Mas, também, como não
olhar para trás? Como não pensar que tudo poderia ter sido melhor? Isso não
adianta, eu sei. Mas como? Mas não sejamos estúpidos. Olhem que, mesmo nas
canções tristes e sobre a morte, há uma quantidade significativa de afeto que
cobre todo o disco. São riscos porque não dá pra viver sem isso e ficamos mal
porque sentimos. Não somos números! Somos pessoas! E fica a promessa de que a
vida prossegue não importa quão ruim sejam nossas perdas.