“Você acha que eu conto os dias? Há apenas um dia restante, sempre
começando de novo: ele é dado para nós na madrugada e levado para longe de nós
ao anoitecer.”
― Jean-Paul Sartre
Não há dúvidas de que a realidade
é confusa e obscura. Às vezes, parece que há apenas uma reinante anarquia de
acontecimentos sem sentido, impulsionados por forças tão abstratas quando um
suposto “si - mesmo”. A construção sonora de Viver-só causa deslocamento perante essas disparidades tão obtusas
e cruéis. O absurdo apaga o ser, fica a sensação de estar suspenso. Esse tipo
de arte, para alguns, pode ser vista como um reconhecimento de ecos (muito
gritados!) nessa espécie de limbo. Desde Mersault,
a primeira música, a banda apresenta o ambiente conturbado que deseja
sinalizar. Ficamos saturados em velocidade, agressão. Nós (os ouvintes) também
temos que nos dedicar e tentar recolher as referências, reconhecer o terreno
árido e (aparentemente) pouco convidativo.
Todos os sons que se entrecruzam
num turbilhão que honra a tradição das melhores bandas de screamo (Orchid, Pg. 99,
etc) se integram nessa totalidade disforme. Mas também acusam e apontam contra
essa loucura! É como se o álbum, ao mesmo tempo em que representasse o transe
psicótico da humanidade, dinamitasse (ou ao menos tentasse) as armadilhas da
existência. Não é muito difícil, se você já caminhou pela rua numa dessas
noites querendo sumir, reconhecer-se nos sentimentos de “auto-exílio” que as
letras expõem. Sentimos o absurdo. Estamos inseridos nele! A realidade
enlouquece. Não compreendemos muito bem o que sentimos, mas essas sensações
primárias têm que, de algum modo, ficar registradas. Pelo menos eu trago tudo
isso quando ouço Concreto Morto.
A concentração da desmotivação do
Concreto Morto também mira em alvos
e falácias capitalistas, como a ocupação urbana, por exemplo. Enquanto as
músicas do disco são muitas vezes locomovidas pela mera sensação de “não
pertencimento”, as revoltas sociais talvez indiquem um ponto de encontro com
outros não pertencentes, mesmo que seja na sarjeta. A banda fala sobre os
excluídos, claramente. Apagados do sistema pelos fatos confusos e ordens
reinantes, Viver-só irrompe como um
grito contra toda a opressão da besta que é a Vida, assim como seu sistema e
meios de produção que desintegram qualquer esboço de humanidade. Mais do que
“análises” políticas ou psicológicas, os gritos surgem como experimentados,
dilacerados pelas instituições, em uma crise de ordem pessoal/social que parece
não ter fim, conforme o tempo vai avançando. Fica a dúvida: existe alguma
brecha para uma integração real entre pessoas reais? A diversidade de elementos dentro de um subgênero
específico, as mudanças abruptas de tempo, em conjunto com uma bateria que não
nos deixa respirar- são elementos que se revoltam e buscam por uma integração
inaugural. A sinfonia do desolamento moderno. Um relato explícito das
desigualdades, dirigido especificamente aos indivíduos “párias” da humanidade.
Viver-só é construído sob esses complexos. Porque a sensação de
“estrangeiro” persiste onde nós percorremos, nos trabalhos idiotas que
suportamos, aturando as conversas fiadas, quase como autômatos- nós
personificamos Mersault, fazemos jus
a criação de Camus e seu absurdo. A guitarra irrompe dilacerante, conduzindo
uma avalanche de despejos, depois há uma recaída para pequenos momentos de
pausa, curtíssimos interlúdios para o ressurgimento da pancadaria. A
concentração da raiva se justifica nas letras, numa troca implorativa, que
atenua sensações como aprisionamento, tormentas, destruição, desmoronamento e
queda- como a torre na página 7 (do excelente trabalho de arte que acompanha o
disco). Resultando no surgimento de impressões perceptivas pela lógica concreta-
uma espécie de “leitura” de signos que antecipam um desastre imensurável
conhecido como humano- que se ergue contra o estabelecido. Estamos ouvindo
nossa ausência, nossa errância. Uma ruptura no enredo tecido de nossas
seguranças. Alguém que sempre residiu ali, com um medo monstruoso de se
manifestar. Por que o contexto que vivemos não tinha evidenciado ainda essa
criatura? O álbum incita nossas partes quebradas e transtornadas a se expor.
Em Viver-só, ouço essas partes ocultas. Aqueles componentes de nós que
ainda não é integrada ao todo arredio- por isso, mesmo com as claras
referências à literatura e academicistas, o vocal irrompe em algum momento,
“jogue fora seus livros!”. É por uma transformação de consciência, também- a
vida cruel está aguardando lá fora e em algum momento vamos ter que sair para o
embate. As citações podem sim nos estimular muito, mas nossas ações concretas
que vão realmente dizer algo.
Fica a sensação de tempo
suspenso, em contraponto à velocidade incessante das músicas. Por mais “estrangeira”
que a banda afirma ser, há ecos e ressonância. Não há mais hora para comodismo.
Não me refiro a um egoísmo apenas panfletário e ideológico, mas a certo modo de
viver e encarar as situações cotidianas. Há uma espécie invisível de “mística
urbana” (com as convicções instituídas) que nos oprime, como O Processo de
Kafka.
Viver-só é um registro contra esse ciclo infinito. A expressão da
desmotivação e descrença nos modelos de sistema vigente. A cada momento, nossa
liberdade parece ser mais cerceada, sendo renegados a meros seres obedientes.
Vivendo sob desígnios improváveis- deus, trabalho, livre mercado- a face humana
fica coberta e impossível de ser revelada.
Um jogo de sofrimento cínico e bastante cruel. Viver-só revela o futuro sombrio que nos aguarda, mas vamos
simplesmente desistir? Mesmo com as centenas de coisas à nossa volta que tiram
nossa vontade, se ficarmos estancados e indiferentes, aí sim, realmente, nada
vai acontecer e a vida vai ser um período de espera eterno. Viver-só me desperta todas essas
sensações, e é sem dúvida um levante contra a passividade. A realidade não se apresenta
compatível com a vida que desejamos. Queremos “viver, e não só existir”. Por
isso é importante o “dizer” do exílio. De quem não consegue “revelar” sua verdadeira
forma para os outros, carregando a pressão de ser esmagado pela falta de “identidade”.
Parece que tomaram nossa intimidade mais profunda. Por isso o tempo passado e
futuro se bifurcam e tudo é confuso demais. O horror de não pertencer.