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terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

se você prender sua respiração (karate - If You Can Hold Your Breath)

Essa cerveja sobre a mesa diz muito sobre o quanto perdidos estivemos nessa vida adulta. Fazendo as coisas no automático e procurando entretenimento simples em coisas que ocupassem nossas cabeças até a hora de dormir, insistindo em afetos impossíveis para que algum senso banal de completude viesse a romper com a frustração crônica dos dias. Se você beber comigo, eu posso te falar isso de um modo pessoal e dar-lhe mais exemplos. Isso, é claro, se você quiser. Nós vamos lembrar os escândalos em que nos detivemos, os fracassos que acumulamos, os vacilos que demos e a gente pode contar um para o outro como viemos parar nessa encruzilhada que passa a ser um local de encontro, um local de compartilhamento. Aguente firme que nós vamos andar por essas ruas hoje à noite. Elas estão contaminadas com nossos erros e receios de uma outra época e, ainda que não possamos apagar aquelas frustrações, nós podemos andar por elas re-significando esses locais sombrios com a ressonância um do outro. Encarar os fantasmas com a dimensão do presente, de achar algum ponto determinante em olhos alheios.

Festas são possíveis no limiar da existência das memórias porque elas irrompem-se sobre a beleza triste de nossas tragédias. Se você aguentar firme, com o tempo a disposição urbana vai passar a te afetar de outra forma. Eu sei que estou pedindo muita confiança e que meu passado não credita nada a meu favor, mas quantas vezes insistimos em ficar sozinhos deixando medos antigos tomar formas? Cervejas e mais cervejas, histórias e mais histórias, e a onipresença imponente de um isolamento ao qual sempre nos obrigamos. Se você beber comigo e andarmos por essas ruas talvez possamos perceber que a matéria da memória é a mesma que nos obriga a seguir em frente.

domingo, 25 de fevereiro de 2018

novo #1

Você disse que não sabia o que dizer e eu disse que tudo bem. Eu não sei, eu ainda estava presente enquanto suas atitudes demonstravam outros interesses, outras pessoas. Você disse que tinha muita coisa para fazer, indicando com os olhos revirados que não queria minha presença . Eu tinha medo de que tudo estivesse se desmanchado. Não medo por nós. Um medo mais abrangente, um medo de tudo que pingava e contaminava a insistência de existir, um medo de que Betel pudesse partir sem se despedir e ficássemos presos um ao outro enquanto você preferia ficar sozinha. Noites em que eu fiquei acordado feito um idiota, precisando de atenção como quem precisa de oxigênio. Em uma dessas noites, fui observar a rua camuflado pela janela vítrea da sala-de-estar. Um homem com uma arma estava em pé diante do portão da casa do vizinho da frente. Eu sei que as pessoas podem ser cruéis, mas decididamente não esperava por aquilo. O ódio parecia-me uma coisa secundária e não a motivação principal. Isso eu só vejo agora que estou preso aqui. Eu estava cego naquela época em que não sabia que ódio entre irmãos é mais do que comum. Agora eu consigo pressentir que a cena daquela noite podia ser antecipada pela face sem-temor daquele homem. Os disparos lembraram-me da minha futilidade, da minha vergonha ao deixar que coisas simples desmanchassem belezas potenciais. Na verdade, a lembrança dos disparos que me remetem a isso. Naquela hora da noite, não sabia o que fazer sob dois barulhos altos e secos e precisos. Quando voltei a olhar pela janela, o portão estava indo e vindo com a força do vento enquanto um corpo bloqueava aquele movimento. Só eu e Deus éramos testemunhas. Ainda bem que você resolveu partir. Ou ainda bem que eu entendi pela irritação subliminar dos seus olhos que só poderíamos viver distantes. Que eles eram a decodificação imponente do que distância pode significar.

O corpo inerte. É impossível despertar em uma cidade feita de exílios.

"Aurora" -Anselm Kiefer

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

ausência #4 (toda a sua vida)

Hibridamento, cruzamento, evolução: estipulações precavidas da união global baseadas nas normalidades  máximas, o avanço do triunfo enquanto as paredes descascadas são sinônimos de uma época ultrapassada. Ele assimila novas teorias para compensar o passado: é o ufanismo da revanche, é a invalidação da inexistência como fator originário que explica a destruição. É fácil assimilar o marasmo quando se coloca uma ficção trágica nele. A realidade é trocada pelas impressões. Como um cachorrinho que lambesse o sorvete no chão, ele fazia dos resquícios o que bem entendesse. Mas é primordial entender que, para ele, os resquícios eram tudo o que existia. Era inadmissível e improvável entender a realidade como algo além de vultos. Nós suspirávamos um futuro, a ponto do meu hálito ser absorvido pelo seu nariz. Nós acreditávamos nesse futuro? Futuro sempre foi adquirir um bônus, um mais-valia para imprimir a sensação de compensação. Não é como os princípios básicos da botânica, o futuro é a exceção à regra porque ele nos é arrancado. Ele é um improviso de uma banda a qual nunca tocou junto e que, se tivermos sorte, encontraremos instrumentos similares aos quais nós passamos a vida ensaiando. Tão claro seu dom para a observação, para a memória fantasmagórica. O melhor colecionador que eu já conheci. Peças dispostas lustrosamente nas prateleiras prontas para a utilização. Espécies mutantes de argumentos convocados como fantasmas para transformar a dimensão presente em algo inteiramente novo, inteiramente destrutivo. Um fungo patogênico com origem no tribunal da infância e que o influenciou em decisões e julgamentos durante toda a sua vida. Ritmada nas decisões momentâneas que vão destinar toda a sua vida, a lapela recomendável ao nosso luto cresce e diminui como a maneira pela qual nos tratamos durante todo este tempo. Uma flor em fevereiro é comum, é aniversário de quem ele enxergou com tanta bondade. Eu nunca perguntei por que ele sentia todas aquelas coisas e como elas nasceram tão rapidamente em poucos dias.

Nós tínhamos dúvidas mais simplistas. Como trabalho e coisa e tal. Como se virar materialmente para ficarmos juntos até que essa abstração de "ficar juntos" mostrou-se inviável. Com um passaporte para convocar o fim, ou seja, como uma desculpa moral para execução de suas vontades reprimidas, ele disse as coisas de uma maneira muito adulta. Droga, eu não lembrava ele ser tão adulto. Mas sua genialidade mostrou-se perspicaz tantas vezes, descobrindo coisas que eu não revelava, indo atrás de acontecimentos passados e explicando-os através de algo que fazia sentido. Droga, você podia discordar, mas fazia sentido. Através da janela clara de sua pele, as marcas do amor desapareciam gradualmente para provar que, para ele, o conhecimento notório da performance era algo mais imediato e urgente. Apenas ontem havia carinho e amor, mas esses não são sentimentos fáceis de guardar e manter e esquece-se rapidamente de seus efeitos quando o chão em que se pisa abre-se sem misericórdia. Qual era seu nome? Sei que nasceu em um estado sobre o qual eu não conhecia praticamente nada. Tentava se fixar financeiramente enquanto fazia observações pertinentes acerca dos meus fingimentos. Limpava sua casa sempre que eu ia lá ou pedia desculpas quando o piso de madeira estava empoeirado. Afastava as cadeiras e a cama para que tivéssemos mais espaço. Movia-se ao parapeito para cuidar das pequenas plantinhas pela qual nutria grande atenção. Comia em silêncio, sobre a improvisada mesa da cozinha, com um rascunho de um sorriso calado no rosto. Antes de falar algo, forçava uma tosse para desobstruir a garganta. Então esticava os braços para alcançar a plenitude da rotina. E se movia pacientemente para voltar a cuidar das plantas, em pequenos movimentos os quais eu só consigo recordar agora, com certo distanciamento.

Alguma coisa sobre seus movimentos deixam-me mais hipnotizado quando lembro sua presença do que os sentimentos que eu enfrentava. Eu recordo mais esses movimentos quase-mecânicos do que a veracidade das coisas que sentia. Eu nunca perguntei o porquê de ele tentar me desvendar tantas e tantas vezes. Era algo intrínseco nele. Eu suponho que eu gostava dele e de suas minúcias acerca da minha falácia. Porque quando eu mostrei as coisas as quais eu escrevia, eu pressenti um olhar acusatório que me isolou na mais deslumbrante distância.

Retrato de uma Dama (Van der Weyden)

sábado, 10 de fevereiro de 2018

... e crescem pontes entre nós

Solo úmido por lágrimas humanas
Ar, sombra e morte
Céu, nublado com medo e tristeza
Coração, desejo frio e traição

Agora ele está fora da eternidade;
Em um lugar onde a dor nunca acaba
Queda através do túnel escuro
Se
foi
Eu quero fazer de mim mesmo
Minhas dores no corpo
Marcado por anos de adoração obscura
Meus pulmões; aeração, fuligem e doença

A minha alma está afundada
Destruída por um abuso perpétuo
Meu templo interior agora caiu
Eu não sou nada


Você constrói a partir do exterior, foi construído a partir do interior
a construir-se como pedras
desmoronando, de fora para dentro

que são construídas como árvores
e crescem pontes entre nós



Rasgue minha garganta, beba meu sangue,
Estranhe-me, afogue-me,

Facas, executando, através,de mim,
Oh, mestre das feridas - corte-me

Deixe-me em seus braços
Mãos Frias, Dedos Como Lâminas,
Quebre meu pescoço, ponha para fora minha luz,
Esmague minha esperança,
Corte-me, me machuque, me cortar, me machucar ...
Corte-me, Corte-me, Corte-me, Corte-
Tome minha vida, mate-me e mate-me (e ...)
Eu sou o que você merece,
A morte faz-me submergir

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