Se a busca do prazer é o martírio da nossa sociedade, talvez fosse natural que Graça Infinita (2014, no Brasil) causasse tanta confusão não apenas pelo seu volume e quantidade de paralelismos, como também fosse caracterizado como elemento-chave para dissecar uma cultura autoidólatra em que todos os microplanejamentos diários são desenvolvidos ao redor do cerne prazenteiro. Isso é, talvez, a maior dificuldade para outrem acerca dos escritos de David Foster Wallace. Pois, em uma cultura que suprimiu as escolhas individuais, ao menos que estas sigam apenas um método de processamento, qualquer ato que se desprenda do mimetismo caricatural que esta Caçada se transformou é visto com asco & repugnância reduzidos à "bizarro". É óbvio que a incompreensão do outro não merece tal problematização, mas o estranhamento com as escolhas alheias eclodem na pior espécie de individualismo: as triagens individuais apenas são viabilizadas se estiverem no abstrato plano do Prazer. Se há um Vazio por trás de tais encenações, deve residir alguma outra coisa, algum outro substrato que se desvie da meta para criar métodos próprios de excelência. A solução articulada por Graça Infinita não é uma totalidade em qualquer redenção, mas micro acontecimentos que antecipam a ansiedade própria em prol duma solução bem difícil de formular, mas que ainda sim impulsiona o ser a desviar dos tentáculos do desesperado estado global. Através deste desespero, é o que parece dizer Foster Wallace, há a possibilidade de romper estes apêndices e nos irmanamos, em nossas individualidades, num campo menos mesquinho que o do gáudio.
Vamos refrasear isto. Parece residir o verdadeiro Horror quando o véu entre pele e mundo (e em Graça Infinita esta mantilha apresenta diversas formações; drogas, Entretenimento, esportes, trabalho, caridade) é rasgado ,você se percebe na iminência caótica do verdadeiro abandono (cair-em-si). Dado que a literatura disseca elementos duma equação, raramente atribuindo validade ao resultado final, a sociedade testemunhada por David Foster Wallace não é apenas a do espetáculo (Guy Debord), mas também uma que o salto para a Origem é isolado e tem o acesso vedado. Qual existência, afinal, estaria disposta a assumir sua estranheza e abdicar das doses diárias de morfina e sair do próprio cômodo para visualizar o que existe Lá Fora? Certamente este intrincado labirinto mental teria que ser representado num enredo que soa confuso porque realmente o é. Toda multiplicação está criando bifurcações assumidamente malucas, assim o território do Desespero reside e representa, em último nível, a catástrofe dos símbolos. Está é a primeira lei de Graça Infinita; o desespero impulsiona cada personagem. Por onde começar para fugir disto? O que parece perseguir as personagens do livro é um terrível olho do Egocentrismo, que apenas permite o prazer próprio enquanto combustível para a locomoção. Não há questionamentos quanto as imensas grades da Prisão Contemporânea, mas muito pouco se sabe do que tal material é constituído. Todos encadeamentos resultam no único mundo possível, mas não se trata exatamente de qual mundo atingir, mas de como não ser massacrado no caminho. E é necessário coisas diagnosticadas como hiper neurose para habitar no radical e deste ponto perceber a origem dos tentáculos.
A abordagem para ficcionalizar tal trajetória é exercida por Foster Wallace de uma maneira bem parecida com David Lynch ou Thomas Pynhcon; através de fraturas & acontecimentos, fundados numa divertida fusão de hiper-realismo satírico com surrealismo, cujas distorções na realidade são chaves essenciais. O que sua literatura teoriza é que no núcleo do consumo contemporâneo (donde decorre as doenças mentais mais impressionantes de nossos tempos) há uma condição inerente que resulta em pessoas voltadas apenas para o prazer próprio. O modo específico de operação norte-americana não apenas é esteticamente satirizada, mas também convoluta num autossabotamento (na trama há os terroristas de Quebec) que resulta em; jovens neuróticos, uma classe política cujos discursos ressoam no stand-up moderno e uma diferença de classes abastecidas pelo estranhamento alheio (quando o protagonista, Hal, um jovem promissor no tênis e com ótimas condições financeiras, sai da Acadêmia De Tênis pela primeira vez). O tema primário & absoluto de Graça Infinita é este desespero ambíguo em que, de qualquer forma, os esforços na direção do Outro são praticamente esquecidos. Foster Wallace, assim como Pynchon e Don DeLillo, é precursor literário dum Estados Unidos intangível pela maioria dos romancistas - em que os métodos operacionais automáticos reproduzem uma dose imensurável de conhecimento perdida na violência (urbana e mental). Para tanta brutalidade, a única salvação imaginável estaria em condicionamentos psíquicos ainda não delimitados.
A literatura, portanto, é capaz de diagnosticar talvez mais complexamente que as ciências conhecidas o estado duma sociedade desenvolvida (como é a norte-americana) e as contínuas "trapalhadas" (pois, apesar de não ser um livro de comédia, Graça Infinita guarda lá seus momentos cômicos) das pessoas para criar rotas de fuga colidindo, sempre, em si-próprio. Esta afirmação não é apenas representada em Foster Wallace, como também é o mote central que condiciona cada atitude em toda a trama. Desde os viciados em drogas que residem numa casa de recuperação aos vingativos terroristas, o automatismo neurótico parece engolir o ser em atitudes paranoicas cujo desespero é evidenciado das formas mais doentias possíveis.
Parece que o monstro de mais de mil páginas que é Graça Infinita é constituído, também, da própria ânsia autoral de Foster Wallace em não apenas dar testemunho do seu talento & inteligência, mas em mostrar como estas supostas qualidades estão praticamente anuladas (juntas com diversas outras) em símbolos autorreferentes que constantemente afastam qualquer revelação interior. Eu acho que deve ter sido realmente muito chato ser um crítico de qualquer jornal na época e ter que ler o livro antes do fechamento da edição e ainda assim ter que fazer uma crítica ao menos consistente. Porque, se na camada superficial, o que parece eclodir é realmente o humor ácido e personagens caricaturais, há uma outra esfera que realmente só pode ser visitada com um espaçamento digestivo da leitura: as personagens sem as máscaras, evidenciando uma forma facial em carne viva (isso de fato ocorre no livro, concretamente) desesperados para sair do automatismo que os leva para uma vida cada vez mais horrenda e escoada de propósito. Esta leitura apressada provavelmente fez o livro não ganhar prêmio de "maior importância" algum. Mas, curiosamente, dez anos depois ganhou uma edição comemorativa e foi criticamente aclamado como uma obra "essencial para entender nossa época". Independence Day ( 1995, de Richard Ford), venceu o Pulitzer neste ano e, apesar duma ótima ficção, não encontrou eco minimamente comparável uma década depois. A maior crítica à Graça Infinita é seu método pirotécnico, se desdobrando em formas que nem sempre se concretizam. Mas o mundo de excesso encontrado por Wallace (ele é autor de ensaios concisos, por exemplo) só poderia ser mimetizado por este artifício. A ficção precisa de Hemingway ou o rigor formal de Vargas Llosa não conseguiriam nem aspirar o aroma deste desespero desmedido. Como poderia qualquer coisa tão precisa e científica investigar uma vastidão cercada por personagens complexas, de motivações desconhecidas, que podem ou não voltar à trama? Não há como evitar o desencontro com as pessoas e provavelmente você vai se apegar ao personagem e este não vai aparecer mais. Demora sim um pouco até perceber quem é exatamente o que em Graça Infinita e para o autor filtrar as personagens principais que formam brilhantemente o painel dos últimos 40% do livro. No caminho não-cronológico que é a reta final da obra, muitos reclamaram que o livro não tem um final. Ao contrário, ele nem está "em aberto", mas ele existe concretamente, só apenas não está no último fragmento. Se você leu o livro mas não viu a conclusão, leia novamente que o método ficcional vai ficar mais evidente. Neste ponto, aliás, há até a precisão de recorte que muitos reclamam que não existiu. Percebe-se a ironia, eles estão acostumados a um tipo de "precisão".
A questão surge: por que o relativo sucesso editorial nos dias consequentes ao lançamento sendo que era óbvio que ninguém conseguiu ler de maneira consciente em tão pouco tempo? Lógico; palmas para o marketing da editora.
por @great_gillian |
A razão para tal literatura de vanguarda, evidentemente, surge dum contexto estético que, ao analisar as influências de Foster Wallace e seus ensaios, não poderia resultar em qualquer outra coisa que não neste épico tecnocrata. O resultado de Graça Infinita nasce dum certo tipo de arte pós-moderna em que a narrativa ocupa o eixo central do livro, o que abadona o leitor da condição voyeurista e abre um diálogo alto com este. Nomear os romances que influenciaram Graça Infinita ficou mais fácil após o lançamento da biografia de Foster Wallace, mas o que mais é evidente nesta instável gama de escritores (de Gárcia Márquez à Thomas Pynchon) é a relação última que eles tem com um movimento evidente de entropia mas que, por alguma razão, permanece oculta para a maioria das pessoas.
Uma das ações deste movimento é quebrar o muro da dificuldade técnica e estabelecer argumentos que são assimilamentos comportamentais duma cultura.
Naturalmente que toda literatura tende a, pelo menos, tentar isso. Mas o eco de Wallace na ficção subsequente é muito menos estético do que idealista - até o "tradicional" Jonathan Franzen assimilou elementos de Graça Infinita para horizontalizar as dinâmicas que regem suas personagens. Os nomes surgem pois se trata dum posicionamento mais do que estético. Aceitar Graça Infinita como um grande livro sobre uma sociedade perdida é ter de defender valores-próprios que parecem estar desfalecendo através da mesma onda massiva diagnosticada pelo seu autor. Os nomes podem, no entanto, localizar um registro literário que não apenas abraça e aceita o mundo enquanto confusão, mas que não se afina de maneira alguma perante isso. O ato de nominar subtrai a potência de Graça Infinita, assim como tentar elaborar um plot razoável sobre o tanto de coisas que o livro trata. Na literatura, o inominável ronda o escritor e tem alguns que fogem disso (a maioria, aliás) e alguns que tentam olhar este fantasma por todas as vértices possíveis. A consequência é que poucos leitores também querem encarar este vazio, cada vez mais fadado a um cômodo escuro e impenetrável.