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quarta-feira, 11 de março de 2020

Que dano sacramental que isso traz


Está ficando insuportável. Repito: insuportável. As vozes em minha cabeça tomam todo o meu tempo livre e, em qualquer caminhada que eu faça, elas me defrontam sobre absolutamente tudo. E eu sempre perco. Eu sempre revisito os momentos e a vergonha - das coisas que aconteceram, das coisas que eu imaginei acontecer e das coisas que sequer aconteceram  - grita alto em meu corpo, sedimentando meu fluxo sanguíneo em ansiedade e pequenas tremedeiras. Então eu procuro por olhos cristalinos que me deem alguma espécie de Paz, alguma espécie de redenção que justifique o desestímulo de estar aprisionado pela construção dos próprios fantasmas.

Os gestos carregam uma dor sacramental, uma desconfiança da farsa que sou, portanto se ouço um "Beleza?", isso parece revestido duma ameaça explícita de revelar que não tem absolutamente nada aqui. Se eu converso e insinuo piadas, é porque eu adquiri algum tipo de vivência que me permite tentar simular todas essas coisas. Mas as vozes sempre retornam em sua constante ameaça, sua constante vergonha; altas demais, ensurdecedoras até mesmo nas paisagens mais deslumbrantes.

O terror de nunca poder conseguir retornar aos estágios mais plenos, o terror de que eles nunca existiram, mas eu precise de falsificá-los para justificar todos esses anos moribundos. Eu não mudei nada, ainda fico imaginando situações e um jeito de fugir de tudo.

(viajar é difícil, me imaginar em um luau cercado de amigos é difícil; antecipando horas os encontros e desistindo deles assim que chegam. Uma nuvem meio branca, meio espessa, escondida ali, na Trilha pela qual caminhamos quando podíamos nominar o Mundo sem o receio de sermos adultos, sem o receio de pessoas alheias rindo da gente. Apenas nós e um imenso descampado deserto)

Vivi nesta Ilha por muito tempo, mas como sair dela? Quando percebo, a areia é movediça e o chão desaba para que eu me veja no mesmo lugar novamente. Um Mar Escuro, cuja costa compõe-se de todas essas pessoas-fantasmas-demônio flagrando a nudez de quem nunca soube respirar sem o sangue na garganta.

segunda-feira, 9 de março de 2020

Esses fantasmas são o sistema nervoso

Eu tenho sentido o gosto de cromo guiar minha garganta como Rokkadi em sua descida infernal com a motosserra, fugindo de fantasmas que, na verdade, eram seus medos que, na verdade, eram ecos de sua vida passada, como um abismo de errância e sangue. Como uma armadilha, você espera suas presas estarem nos momentos mais realizáveis para torturá-las. Com M. foi assim. Ele era meu melhor amigo e terminou sem cumprir as promessas de nossa juventude porque ele simplesmente não queria mais viver. E sei que, quando coloco assim, pode parecer ofensivo a quem tenha se suicidado ou aos parentes, mas, merda, eu sei como foi passar aqueles outros dias olhando para uma parede imóvel esperando que alguém ligasse, dizendo que tudo não passava de um engano. Seus olhos negros foram as únicas coisas com que eu pude contar naqueles meses derradeiros. Seus olhos, ainda vivos, cheios de exuberância, cantando uma canção de amizade. Nós choramos assistindo ao episódio em que Lorelai recebia um milhão de margaridas amarelas e falamos um com outro, Hein, cara, isso deve ser a última felicidade, Depois disso não melhora. Coisas assim. Nós tentamos nosso melhor um com o outro. Mas o corpo morto é sempre a declaração maior de que o Fim vem. Hoje, Max von Sydow morreu. Perdeu aquela batalha pra morte que começou em 1957. O demônio, penso eu, é uma coisa bem menos sádica do que imaginamos. O demônio, penso eu, é o Cosmos lembrando sua natureza impiedosa. Como se nossos desejos tivessem alguma relevância, ganhando corpo e entrando em combustão. É sua impessoalidade que mais toca a gente, que mais nos arranca do delírio que é a vida e nos coloca em confronto com a Realidade-Última. É sua pessoalidade que me faz perder esperança e conviver com o constante desencanto pelo fato de estar sumindo. Eu recorro à linguagem para falar dessas coisas que as palavras não alcançam, mas eu espero que um ambiente ébrio consiga ganhar materialidade com a lembrança de recônditos quase inacessíveis ganhando corpo como um último lembrete de sua indiferença. Quando eu estou sozinho tentando fazer algo, eu sou revisitado por absolutamente tudo como uma espiral de imagens que me impede de caminhar. Aí, Lavras parece outra cidade amaldiçoada como todas as outras em que estive (e Deus sabe quantas foram). As cidades esquecidas da infância são paraísos impossíveis. Os propósitos nostálgicos não são mais áreas Sagradas. O acúmulo de poeira, cada vez maior, cada vez mais ameaçador, impede uma caminhada serena, uma caminhada poética, ou qualquer dessas baboseiras de aparições salvadoras que acontecem quando se está prestes a sucumbir. Eu não conheço ninguém que não esteja prestes a sucumbir.

Paddleton (2019)