"A vida é feita de medo. Algumas pessoas comem sopa de medo três vezes por dia. Algumas pessoas
comem sopa de medo em todas as refeições existentes. Eu como às vezes. Quando eles me
trazem sopa de medo para comer, eu tento não comer, eu tento enviá-la de volta.
Mas às vezes eu estou com muito medo e tenho que comer de qualquer jeito.
"
― Martin Amis, Other People
Sings the Blues começa com uma importante
nota sobre uma questão filosófica, seguido de um instrumental apurado e bem
executado. Talvez o tema que sempre direciona uma espécie de nova “fé” na
música, ou uma admissão da importância de sonhos, por mais infantis que possam
ser.
Longe de ser música que opta por
caminhos “fáceis”- bem afastado disso, na verdade. Temos uma sonoridade que
oscila entre o que se convencionou chamar de “post-hardcore” e timbres experimentais. Não é exatamente difícil,
mas requer força do ouvinte, um envolvimento e pró-atividade, nos convidando a
sair da simples zona de conforto. São composições que arriscam e nada mais
justo que o destinatário também dance e se exponha.
Então não vamos parar. Apesar das
disparidades, dos empecilhos. Pode ser realmente óbvio que só podemos ir em
frente, mas o Campbell Trio reverbera “não tenha medo!”. É uma queda livre de
qualquer jeito, e se aborrecer com fobias,especialmente quando a maioria dessas
são criadas por nós mesmos, não vale a pena. Apesar da nota inicial, a estética
aqui não é de teorização, ao contrário: os rapazes fazem uma música de combate,
sonhos versus preocupações.
E não podemos passar batido na
referência ao Grim Fandango, jogo clássico do final dos anos 90. Onde nos
deparamos com o Departamento Da Morte, e uma estranha conspiração (que não
deveria nada à ficção de Thomas Pynchon), e um problema no paraíso. Paraíso que
reflete também a citação de Milton. Essa obra do Campbell Trio então aborda a
importância dos sonhos, estrutura um “sistema próprio” de combate para não
sermos almas mortas que apenas vagam por aí.
O EP é literalmente uma pancada.
É paulada atrás de pauladas onde a execução instrumental varia a todo instante
e os gritos de desalento são praticamente uma convocação à essa guerra. A
batalha de seguir em frente e encontrar o descanso merecido, os desafios de
encontrar forças próprias na terra desolada que estamos- num tempo onde os
sistemas de crenças já estão obviamente descredenciados. A estética da
continuidade, onde os aparatos (e escapes!) têm que ser criados na marra.
E penso se seria possível
atribuir qualquer espécie de etiqueta musical ao conjunto. Pois não são
críticas fáceis formuladas por frases feitas ou sons puramente “agradáveis”.
Não, a força da banda está justamente em desdobrar novos e inesperados caminhos
nesse curto disquinho. Como uma espécie de fortalecimento de crenças internas e
validação destas através de toda energia (que não é pouca!) dispostas nas
canções.
A brincadeira com o jogo continua,
e eles convidam Salvador Limones para fazer seu levante contra a perdição da
alma em disparidades rasas do dia-a-dia. Já que estamos condenados- é o que o
Campbell Trio parece ressaltar que passemos por essa curta estadia na Terra
vivendo de pé e acreditando em ingenuidades próprias.
Ingenuidades que nos mantém de
pé, no fim das contas. E é isso que precisamos nos nossos dias. Confiar em
olhos amigos, se movimentar guiados por sons que transcendem a mera realidade
instituída e apontam caminhos além do que aparentava ser possível. Porque é
indiscutivelmente melhor prosseguir com intuições do que essas prisões diárias
que abastecem nossa mente em paranoias como “se dar bem na vida”, “ter uma
carreira de sucesso”.
Tudo isso, essa aglomeração de
combate contra os sintomas mais claros da nossa Era de demência coletiva, me
lembra dos riffs. São sonoridades que
se entrecruzam para fazer frente ao Monstro Realidade, num espaço vazio em que
conexões são possíveis justamente pelos sonhos. Pode soar ingênuo, mas talvez
ingenuidade e devaneios sejam as características que mais faltam nesse mundo
morto onde todos tem que ser fortes, realistas, competitivos.
O disco encerra com um clima “feel
good demais” pro que ele vinha trabalhando. Talvez a interrupção bruta para
começarmos a rítmica bem jazz seja para sinalizar que a tática para guerrilha
estava lá.
No fim, Sings the Blues é um EP
para seguir em frente apesar das fobias, porque embaixo do asfalto há sementes esperando.