“Há algo que é Tudo e
a ideia de Tudo, aliado à ideia de eternidade e de si, a alma, leve,
indestrutível, navegando eternamente no espaço.”
-Walt Whitman.
A primeira impressão que temos de
Xavier Rousseau, apesar de ser apelidado de “o novo Proust”, é de um sujeito
que está revivendo seus vinte anos depois de um rompimento com sua esposa após
dez anos- personagens de quarenta anos com espírito aventureiro são recorrentes
no cinema de Klapisch, como Bonecas
Russas (2005) e Albergue Espanhol (2002). O escritor decide ir à Nova Iorque
para chegar mais perto de seus filhos- lá também mora uma amiga lésbica para
quem doou esperma em função de uma inseminação artificial, ou seja, de
proustiano, Xavier não tem muito não. No presente, ele está redigindo um livro
e em conversas com seu editor, que vive na França, vamos recapitulando sua
história. Para isso, uma narrativa fragmentada, embora de fácil acesso.
O leve filme gira em torno de
situações “cômicas”. Com uma fotografia que lembra um Woody Allen sem muita
inspiração, a concentração fica no dialogo/enredo. A experiência de ver O
Enigma Chinês é de deboche. Se me limitasse apenas a descrever suas cenas,
talvez quem lesse teria a impressão de uma mistura hilariante entre alta
filosofia- afinal Schopenhauer e
Hegel aparecem – e situações demasiadamente cômicas. A articulação desses
elementos, porém, é pobre, forçada, reducionista- como citei Allen, pelo menos
em seus melhores filmes, a aparição de figuras históricas relacionava-se com um
engraçado/trágico jogo narrativo, onde as reflexões das personagens tinham
apelo a certa dose de fantasia.
Os recursos utilizados nos dois
filmes que citei anteriormente, ainda cabiam- já em O Enigma Chinês temos
apenas um olhar deslumbrado de um europeu que enxerga uma Nova Iorque colorida.
Na verdade, fico até um pouco envergonhado, e uma questão como “com o que
realmente esse filme flerta?”, quero dizer, não há ponto nisso tudo- estamos
falando de esgotamento de possibilidades amorosas, no rompimento de uma
tradição monogâmica, da libertação dos preceitos e da moral cristã, do processo
criativo de um escritor ou de um término de relacionamento ruim? Exato, ele
tenta, de alguma maneira, mirar nesses pontos, e falha- indubitavelmente- em
todos.
Nova Iorque é entendida como uma cidade
com um amplo mosaico étnico que convive pacificamente, um lugar sem tensão
entre as classes sociais e com um encantador ambiente urbano- exceto por uma
cena, não há representação dos problemas contemporâneos de qualquer grande
cidade. Não que todos os filmes necessitem ter uma denúncia flagrantemente
social, não mesmo- inclusive, as câmeras de Praia Do Futuro são as coisas mais
sensíveis que vi esse ano, revelando uma Berlim fantasma, quase uma angústia
existencial- o negócio com Enigma Chinês é que parece uma sessão animada de
algum sitcom americano com leves,
quase inexistentes, e rasas digressões “filosóficas”. Com qual olho vamos
enxergar Nova Iorque?- Klapisch não
se preocupa com isso, sua constatação de uma multicolorida metrópole lhe cega o
olhar artístico. Outro ponto: qual a linguagem do filme?- apartamentos
elegantes, personagens simplesmente jogados na mise-en-scène que nos fazem
duvidar da mão do diretor, nos deixando embaraçados, como “nossa, ele realmente
fez isso?”. Temos câmeras opostas a serviço de tudo o que o cinema relevante
contemporâneo tem nos oferecido; a frieza em Antes Do Inverno, o painel
doloroso de Cães Errantes. Via de regra, um filme tem que ter uma base
essencial, uma estética que ou justifica seus fins ou a si mesma, ou uma
denuncia de comportamento. Isso, aqui, ficou que nem a cidade de Wall Street- arranha-céus longos,
distantes, em que dá torcicolo olhar, onde não temos vontade nenhuma de elevar
os olhos e contemplar- não vale a pena.
O resultado é um filme sem núcleo
algum, em que a digressão narrativa simplesmente ocorre por não parecer ter
nada mais que ocorrer, em tempos de Copa Do Mundo, imagine um jogo com dois
eliminados, é triste notar que uma trilogia com tanto potencial- iniciada em
2002 com Albergue Espanhol, passando por Bonecas Russas- obteve um fim tão
apático, fruto de um diretor que só busca imagens ricas e esquece de qualquer
forma de conteúdo. Nessa concepção, temos um tipo muito perigoso e exemplar do
cinema estereotipado- um filme que só nasceu porque já havia fórmulas pré-estabelecidas
do mesmo diretor, ou seja, a essência precedeu a existência. Fica uma
generalização chata, interminável, onde cada minuto te suga de qualquer
experiência inaugural- como registrei: isso é vergonhoso, e vamos celebrar por
filmes como Cães Errantes terem existido, de outro modo, alguém que vai a sala
de cinema pensaria que é uma arte já fantasma, tal quais os filósofos alemães
que dão a cara em duas cenas.
Não há nada de significativo
aqui. Quero dizer, há pequenos esboços de situações que possam incorporar
alguma valia, mas apenas esboços- é tudo fácil na verdade, quando a situação
aperta para Xavier em relação à moradia e emprego, ele encontra ambos. É tão
fácil que nem chegamos a pensa na existência de facilidades, mesmo em uma
suposta torre de marfim ao menos teorizamos sobre as dificuldades da vida
prática e cotidiana- ora, esse filme quer ser sobre a vida prática e cotidiana.
Ele muda para Chinatown, mas nada
efetivamente muda- e não me refiro aqui à representação da passividade do
espírito.
Como tudo sempre dá certo e as
coisas correm do jeito que planejamos (preciso refinar meu senso de ironia),
Xavier descobre que precisa de um visto fixo para permanecer nos EUA, a melhor
maneira disso ocorrer é casando com alguém naturalizada americana. Eis que, ao
ajudar um taxista asiático que apanhava na rua, ele conhece uma parenta deste;
essa garota propõe ajudá-lo e casar-se com ele para conseguir o Green card. O
filme confirma convenções estereotipadas. Maneirismos que não alçam nem ao
público dito “indie”, “cult”, nem à porra nenhuma. Não há
insinuações de movimentos nem presença autoral nos planos- às vezes, chego a
suspeitar de que há algum plano. Como na
cena em que Xavier consegue o emprego para andar de bicicleta, e todos os
funcionários são imigrantes ilegais com jeito determinados de agir, o filme faz
questão de estereotipar tudo o que parecia inicialmente interessante.
Até porque o filme ambiciona
várias frentes, acaba não sendo nada do que tentou ser, como os vários romances
acabados durante a história, quando nem sabíamos exatamente porque aquelas
pessoas estavam juntas (desconfio que o diretor também). Talvez justamente por
todos os formatos (pelo menos os que circulam com razoável fluidez no mercado
sempre dominado pelos barões ianques) estarem se “compactando”, Klapisch tentou desenvolver diversas
pontas narrativas, ordens temporais e fragmentos, de uma forma mais “leve”- o
que acabou resultando em algo significativamente raso.