“Terreno vago, página
obsedada.
Uma morada é uma longa
insônia
No caminho encapuzado das minas.
No caminho encapuzado das minas.
Os meus dias são dias
de raízes,
São jugo de amor celebrado.
São jugo de amor celebrado.
O céu está sempre por
atravessar e
O terraço por nutrir de noites novas.
O terraço por nutrir de noites novas.
De meu vagar o luto
forma
Enclave no clarão opaco das paredes.
Enclave no clarão opaco das paredes.
A terra embebe-se em
Vãs visões de viagem.”
Vãs visões de viagem.”
- Edmondo Jabès
Difícil definir nossas raízes.
Quando vamos embora, o que de fato vai ser lembrado, o que existiu quando
abandonamos ou o que se formulou em nosso imaginário depois? Lar é o que nos
protege- mais que nações, ideais e conceitos. É o que experimentamos enquanto
indivíduos no terreno da primeira subjetividade que classificamos como conforto
da casa. Não dá para transportar essas experiências, é sentir-se seguro apesar
da bruma lá fora. Nós viajamos, esquecemos- o lar permanece, o mesmo?
Karim Aïnouz é um diretor que exibe certo convalescimento com o
conflito, pois as pessoas que rondam seus filmes sempre estão em uma espécie de
inquietude- por isso a dificuldade em se adaptar com o dito lar. Os locais
indefinidos de viajantes que figuram em sua obra refletem a necessidade de
transito das personagens. Áreas que existem independentemente da região-
hotéis, rodoviárias. A estrada que parece infinita em O Céu de Suely (2006). O
discurso vigoroso de Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo (2009). A área,
em Praia Do Futuro, já é destacada no título- o transito é o início. Como se visualizássemos
apenas um amanhã indeterminado, uma localidade inexata e que está sempre se
movendo como o salva-vidas de Wagner Moura.
Konrad (Clemens Schick) fica frágil logo após a notícia da morte do amigo,
quando Donato (Wagner Moura) lhe conta o ocorrido, rola uma atração mútua e os
dois se relacionam sexualmente. Basicamente, o primeiro capítulo, O Abraço do
Afogado, trata do início do relacionamento. O desvio também marcará as outras
duas partes. A natureza de Donato é colocada em xeque quando este fica indeciso
entre morar na Alemanha ou retornar ao Brasil, na parte Um Herói Partido ao
Meio. O último capítulo, O Fantasma que Falava Alemão, é destacado –como o nome
sugere- o retorno do passado e a impossibilidade de comunicação/esquecimento. É
impossível se fixar, é o que parece dizer-nos Karim, não há lugar abrigo específico no mundo. Quando paramos em
um lugar, em busca de certa identidade, ela se dilui- uma mutação constante que
se recusa à (tal qual o protagonista) fixar. Como se não houvesse nada mais
para trilhar, as câmeras nos momentos mais intensos do filme comportam-se
rispidamente, testemunhando o fenômeno das ações apenas porque têm de
acompanhar- Karim é cruel nesse
sentido, uma honestidade que registra a aridez de qualquer lugar no globo
terrestre, como se todos ambientes estivessem saturados.
A contração de Donato revela as
indecisões que lhe atravessam, uma contradição perpétua que lhe acompanha, quer
esteja no Brasil, quer esteja na Alemanha. Essa espécie de zona neutra
diagnosticada em Praia Do Futuro abrange esse transito zero, como uma manada
solitária que persegue algo inexistente- o último plano, três motos dirigindo
para dentro da neblina, deixa isso bem claro. O paradoxo em Donato está aí, sua
consciência, suas objeções, seus receios são o oposto da vastidão da praia em
que trabalha. Irônico, então, o cargo que ocupa em Berlim, restrito a um
ambiente enclausurado e cilíndrico de um aquário- quando volta a encarar o mar,
já está com seu irmão, na posse do passado. É um triangulo de contradições, não
lugares, Donato-Berlim-Praia do Futuro. Como se apenas resquícios ocupassem o
epicentro, onde o núcleo narrativo é resultado das tensões que o silencio
estabelecido por essa comunicação imperfeita. São atritos conduzidos por
fantasmas (não à toa, o nome do último capítulo é O Fantasma que Falava Alemão),
carregados pelo “futuro” em que a derrocada parece iminente; tivemos um exemplo
de anúncio de derrocadas, não lugares, instalações vazias em outro filme que
acabou de sair de cartaz, Cães Errantes (de Tsai
Ming-liang). A sensação de que algo é sempre omitido do telespectador nas
paisagens abertas, distantes, não específicas, onde um fim sempre é encenado-
no trem que Donato decide não pegar ou quando fica pelado com Konrad em um por
do sol- e os corpos aparecem cansados, apesar da relativa força física dos
dois.
O capítulo ‘O Herói Partido ao
Meio’ é o de maior força. A metáfora de se locomover alheiamente, encarar salas
de escolas vazias, enquanto procura algo que não sabe- Donato é o estrangeiro,
desolado em uma Berlim onde todo o mundo parece irreconhecível, que fala outra
língua. A vasta cidade alemã, os galhos secos e o vento frio duram para sempre.
O argumento é da luta entre a alegria de dançar (quando Donato celebra sua
permanência em um clube noturno) e essas perturbações exteriores que apenas
refletem a solidão e o descolamento concreto do brasileiro. Mas há, também, uma
exploração do desconhecido. Karlim
foge da fotografia de turismo convencional para refletir uma Berlim com planos
vastos, ruas apertadas, parques solitários. Isso o distancia da tensão e esmagamento
de Max Färberböck em Aimée & Jaguar (1999), ou a forma
bem-humorada e periférica de Andreas
Dresen em Verão em Berlim (2005)- ou seja, um olhar estrangeiro sem buscar
o encantamento em um novo mundo, mas apenas fragmentos das reflexões que
proporciona.
Então a cidade alemã funciona
como a Zona negativa de Donato, agora, como se o vazio interiorizado na Praia
Do Futuro fosse materializado pelas paisagens de Berlim. As imperfeições da
cidade alemã carregam-no a uma intimidade com gritantes lapsos, uma identidade
do devir, como se a opressão descrita por Döblin
em Berlin Alexanderplatz fosse
psicológica, e ao invés de matadouros, um espaço neutro da máxima negação.
Conforme Simmel (1908) “estrangeiro é
sentido, então, precisamente, como um estranho, isto é, com o um outro não
"proprietário do solo"’. Atribui-se o mesmo a Donato: uma expropriação
até na sua busca de identidade, a viagem perde o sentido de se encontrar (ele
não sabe o que procura), enquanto Berlim e seus vastos lugares, seus relógios
malucos, vão construindo seu enorme desconforto a cerca de tudo.
Invertendo a posição: Konrad é,
em primeira instância, um turista, e é apenas na segunda parte que volta para
sua terra. Mas as características iniciais dele já nos são dadas em momento
extremo –seu amigo morreu no estrangeiro- então é necessário uma investigação
dessa personagem a partir do segundo capítulo. É uma pessoa sem muitas
variações gestuais, que fica reparando na maneira ligeiramente exagerada de
Donato. Quando o irmão deste aparece em Berlim, é evidente a diferença como “hóspede”
(no sentido de estar em casa) e expatriado se comportam, chegamos ao conceito
de Descola que afirma que a intersecção entre o humano e natural não se reduz
um ao outro ou sequer existe uma classificação dualista entre cultura e
natureza.
Um enredo que talvez
desenvolvesse uma abordagem mais comovente nas mãos de outro diretor avoluma a
experiência de não lugares como formação que diz respeito à identidade dos
heróis de Karim Ainouz, num tom
categórico que aproxima do diretor alemão Fassbinder.
Em “O Medo Devora a Alma” (1974) temos problemas relacionados aos imigrantes
terceiro-mundistas na Alemanha. O roteiro que se tratava inicialmente sobre a
relação do diretor com seu amante foi alterado em função da moral vigente. Uma
senhora viúva de meia-idade, conhece um imigrante marroquino ao entrar em sua
loja, um ambiente devotado aos árabes, uma transferência de realidade. Ali (o marroquino) se oferece a levar a
senhora para casa, após a chuva acabar- o filme retrata a aproximação dos dois
como de duas almas solitárias, e de comunidades específicas. A diferença de
Praia Do Futuro é que a formulação do cenário é decorrente do desgaste do
imigrante Donato, e não temos mais a moral da época (embora algumas pessoas, demasiadamente
ortodoxas, não evitaram ao sair da sala do cinema, não é?).
Houve um grande destaque equívoco
também em relação à homossexualidade no filme, uma vez que esse tem nem de
perto o mínimo de erotização de um Azul É A Cor Mais Quente, e a orientação é
apenas uma centelha do núcleo problematizado na trama. E do que importa se
justificar à quem persegue homossexuais, em cenas tão cheias como o sexo anal
entre Donato e Konrad? Ali o que é comido por trás (perdão pelas palavras
chulas) é a imagem de uma virilidade- cuja qual Wagner Moura nunca ambicionou
ter- que as pessoas criaram depois das últimas atuações do ator. É óbvio que
esse olhar construído é o problema. Nas poucas cenas que destacam a relação
sexual, temos algo fluído e orgânico, como dois corpos que buscam se pertencer,
o oposto do que ocorre em India Song
(1974), de Marguerite Duras. De forma que um movimento constante de
atração/retração movido pela admiração e negação da adoração que faz Ayrton ir
até a Alemanha, bater e abraçar seu irmão. Assim como Herzog, é evitado o
contágio das imagens consumistas, onde o confronto só pode nascer da
experiência da apreensão imagética.
Afasta-se de lugares comuns ao
serem apresentadas imagens de torsos fortes e latejantes, exibindo um (homo)
erotismo além da delicadeza tradicional em que se incluem relacionamentos
românticos. Mesmo da maneira que a moral ainda circula, é evidenciado que o
problema central também envolve o desejo, o calor e a tensão de estar próxima a
outro corpo atraente, a lei da vontade. Ainouz
surpreende com heróis que, por ter um desenvolvimento sexual nas cenas tão
diferente da média dos filmes por ai, aguçam nossa apreciação em linhas de
atuação que se aproximam e às vezes estão irremediavelmente distantes. Por
isso, as cenas mais belas são onde os físicos dos atores estão livres,
dançando, transando. Não há como não se lembrar do outro filme de Ainouz, Madame Satã, onde o corpo também é utilizado como imposição de
espaço. Os torsos não apenas bailam agitados, mas gritam sorrindo, enquanto
atingem o orgasmo. Movimentam-se, porque ficar parado é ruir, é ver a fria
Berlim como impossibilidade concreta de realização. A sensualidade como forma
de transito para sobreviver, a movimentação do corpo como afirmação de
existência- esse é o filme de Karim
Ainouz com maior força de expressão física justamente pelos heróis
existirem plenamente através disto.
O filme cede um pouco em alguns
elementos dispersos vagueando, nitidamente, sem apelo ou intenção estética. As
conversas entre o triangulo que rege a trama às vezes soam forçadas e talvez
fosse melhor reservar certos momentos apenas à precisão acurada das câmeras. Os
heróis já mostram sua fragilidade deslocada em cenas contemplativas ou gestos
corporais, não era necessário expandir ao que às vezes parecem peripécias
ligadas a uma necessidade de afirmação. A qualidade já está no registro
corpóreo de imagens justapondo os momentos sutis que acolhem a forma das
pessoas estarem inseridas nas cenas em sentidos figurados. Karim talvez ainda esteja preso ao artifício “encanto” para pontuar
seus desenvolvimentos dramáticos. Em At North Farm, John Ashbery dialoga com o
reconhecimento da verdadeira beleza quando, por ventura, a encontrarmos: “But
will he know where to find you/ Recognize you when he sees you/ Give you the
thing he has for you?”.
O Abismo Prateado (2011)
conseguiu o inesperado e a coerência na obra de Karim
Aïnouz- parece que diferente de seus heróis, ele já encontrou seu lugar de
discurso dentro do cinema, onde pelo menos há uma compreensão da necessidade de
transito. No processo, temos uma voz que se singulariza no cinema brasileiro contemporâneo.
O tom não é mais o da intensidade, do confronto iminente e de uma rebeldia tardia,
Karim está aliviado e contente pelas
possibilidades não se mostrarem reduzidas e não precisar utilizar todas as
ferramentas vastas para alcançar sua projeção estética- ao invés disso, nós temos
uma obra como a neblina da cena final: nebulosa e impossível de sair do
caminho.
Nenhum comentário:
Postar um comentário