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segunda-feira, 30 de junho de 2014

Cédric Klapisch, O Enigma Chinês (Casse-tête chinois, 2013)- Um quebra-cabeça de afetos.


Há algo que é Tudo e a ideia de Tudo, aliado à ideia de eternidade e de si, a alma, leve, indestrutível, navegando eternamente no espaço.”
-Walt Whitman.

A primeira impressão que temos de Xavier Rousseau, apesar de ser apelidado de “o novo Proust”, é de um sujeito que está revivendo seus vinte anos depois de um rompimento com sua esposa após dez anos- personagens de quarenta anos com espírito aventureiro são recorrentes no cinema de Klapisch, como Bonecas Russas (2005) e Albergue Espanhol (2002). O escritor decide ir à Nova Iorque para chegar mais perto de seus filhos- lá também mora uma amiga lésbica para quem doou esperma em função de uma inseminação artificial, ou seja, de proustiano, Xavier não tem muito não. No presente, ele está redigindo um livro e em conversas com seu editor, que vive na França, vamos recapitulando sua história. Para isso, uma narrativa fragmentada, embora de fácil acesso.

O leve filme gira em torno de situações “cômicas”. Com uma fotografia que lembra um Woody Allen sem muita inspiração, a concentração fica no dialogo/enredo. A experiência de ver O Enigma Chinês é de deboche. Se me limitasse apenas a descrever suas cenas, talvez quem lesse teria a impressão de uma mistura hilariante entre alta filosofia- afinal Schopenhauer e Hegel aparecem – e situações demasiadamente cômicas. A articulação desses elementos, porém, é pobre, forçada, reducionista- como citei Allen, pelo menos em seus melhores filmes, a aparição de figuras históricas relacionava-se com um engraçado/trágico jogo narrativo, onde as reflexões das personagens tinham apelo a certa dose de fantasia.

Os recursos utilizados nos dois filmes que citei anteriormente, ainda cabiam- já em O Enigma Chinês temos apenas um olhar deslumbrado de um europeu que enxerga uma Nova Iorque colorida. Na verdade, fico até um pouco envergonhado, e uma questão como “com o que realmente esse filme flerta?”, quero dizer, não há ponto nisso tudo- estamos falando de esgotamento de possibilidades amorosas, no rompimento de uma tradição monogâmica, da libertação dos preceitos e da moral cristã, do processo criativo de um escritor ou de um término de relacionamento ruim? Exato, ele tenta, de alguma maneira, mirar nesses pontos, e falha- indubitavelmente- em todos.

Nova Iorque é entendida como uma cidade com um amplo mosaico étnico que convive pacificamente, um lugar sem tensão entre as classes sociais e com um encantador ambiente urbano- exceto por uma cena, não há representação dos problemas contemporâneos de qualquer grande cidade. Não que todos os filmes necessitem ter uma denúncia flagrantemente social, não mesmo- inclusive, as câmeras de Praia Do Futuro são as coisas mais sensíveis que vi esse ano, revelando uma Berlim fantasma, quase uma angústia existencial- o negócio com Enigma Chinês é que parece uma sessão animada de algum sitcom americano com leves, quase inexistentes, e rasas digressões “filosóficas”. Com qual olho vamos enxergar Nova Iorque?- Klapisch não se preocupa com isso, sua constatação de uma multicolorida metrópole lhe cega o olhar artístico. Outro ponto: qual a linguagem do filme?- apartamentos elegantes, personagens simplesmente jogados na mise-en-scène que nos fazem duvidar da mão do diretor, nos deixando embaraçados, como “nossa, ele realmente fez isso?”. Temos câmeras opostas a serviço de tudo o que o cinema relevante contemporâneo tem nos oferecido; a frieza em Antes Do Inverno, o painel doloroso de Cães Errantes. Via de regra, um filme tem que ter uma base essencial, uma estética que ou justifica seus fins ou a si mesma, ou uma denuncia de comportamento. Isso, aqui, ficou que nem a cidade de Wall Street- arranha-céus longos, distantes, em que dá torcicolo olhar, onde não temos vontade nenhuma de elevar os olhos e contemplar- não vale a pena.









O resultado é um filme sem núcleo algum, em que a digressão narrativa simplesmente ocorre por não parecer ter nada mais que ocorrer, em tempos de Copa Do Mundo, imagine um jogo com dois eliminados, é triste notar que uma trilogia com tanto potencial- iniciada em 2002 com Albergue Espanhol, passando por Bonecas Russas- obteve um fim tão apático, fruto de um diretor que só busca imagens ricas e esquece de qualquer forma de conteúdo. Nessa concepção, temos um tipo muito perigoso e exemplar do cinema estereotipado- um filme que só nasceu porque já havia fórmulas pré-estabelecidas do mesmo diretor, ou seja, a essência precedeu a existência. Fica uma generalização chata, interminável, onde cada minuto te suga de qualquer experiência inaugural- como registrei: isso é vergonhoso, e vamos celebrar por filmes como Cães Errantes terem existido, de outro modo, alguém que vai a sala de cinema pensaria que é uma arte já fantasma, tal quais os filósofos alemães que dão a cara em duas cenas.

Não há nada de significativo aqui. Quero dizer, há pequenos esboços de situações que possam incorporar alguma valia, mas apenas esboços- é tudo fácil na verdade, quando a situação aperta para Xavier em relação à moradia e emprego, ele encontra ambos. É tão fácil que nem chegamos a pensa na existência de facilidades, mesmo em uma suposta torre de marfim ao menos teorizamos sobre as dificuldades da vida prática e cotidiana- ora, esse filme quer ser sobre a vida prática e cotidiana. Ele muda para Chinatown, mas nada efetivamente muda- e não me refiro aqui à representação da passividade do espírito.

Como tudo sempre dá certo e as coisas correm do jeito que planejamos (preciso refinar meu senso de ironia), Xavier descobre que precisa de um visto fixo para permanecer nos EUA, a melhor maneira disso ocorrer é casando com alguém naturalizada americana. Eis que, ao ajudar um taxista asiático que apanhava na rua, ele conhece uma parenta deste; essa garota propõe ajudá-lo e casar-se com ele para conseguir o Green card. O filme confirma convenções estereotipadas. Maneirismos que não alçam nem ao público dito “indie”, “cult”, nem à porra nenhuma. Não há insinuações de movimentos nem presença autoral nos planos- às vezes, chego a suspeitar de que há algum plano.  Como na cena em que Xavier consegue o emprego para andar de bicicleta, e todos os funcionários são imigrantes ilegais com jeito determinados de agir, o filme faz questão de estereotipar tudo o que parecia inicialmente interessante.




Até porque o filme ambiciona várias frentes, acaba não sendo nada do que tentou ser, como os vários romances acabados durante a história, quando nem sabíamos exatamente porque aquelas pessoas estavam juntas (desconfio que o diretor também). Talvez justamente por todos os formatos (pelo menos os que circulam com razoável fluidez no mercado sempre dominado pelos barões ianques) estarem se “compactando”, Klapisch tentou desenvolver diversas pontas narrativas, ordens temporais e fragmentos, de uma forma mais “leve”- o que acabou resultando em algo significativamente raso.

“Mas do que servem essas suas críticas?”, algum leitor pode pensar- e o problema é justamente esse, as pessoas acharem que está tudo bem continuar apostando em produções tão rasas. Qual abordagem nós vamos fazer em relação a essas coisas? Vamos continuar falando da ala dos imortais, os vencedores do festival de Rotterdam e nos confinar em Mostras esparsas? Mas atacar esse tipo de cinema é também problematizar a sociedade do espetáculo que estamos envolvidos e quase afogados. Enfim, não existe afeto em Enigma Chinês- Klapisch mostra que não gosta verdadeiramente das pessoas, como na crítica do NY Times. Há um excesso de bondade. Uma vontade de mostrar um lado colorido que talvez exista- mas aqui é descaradamente inventado. Abordagem estranha. São questões importantes e que precisam cada vez ser mais feitas- numa época em que os planos-sequências empurram qualquer imersão de nossa subjetividade para além da tradicional uma hora e meia. Com relação ao “lado colorido” no filme, não há problema em embelezar e deixar as cenas barrocas, mas quando se faz isso da maneira de Klapisch, esquecem-se as implicações contemporâneas e históricas- as personagens simplesmente “brotam”. Filmes assim obliteram o sujeito do outro lado, nos condicionam a uma eterna passividade, nos exime de alguma crítica porque o olhar do diretor já impõe tudo e, ao invés de um espaço temporal questionador sobre tudo que nos cerca, temos um banho de lugares-comuns apontando para uma universalidade inexistente, há anos luz de distância- não à toa, salas com filmes impositivos estão abarrotadas nesse momento e, vendo um país tão empolgado com jogos competitivos, talvez seja possível compreender o por que. Para isso, é necessária uma obra inversa de Enigma Chinês- felizmente, ainda existe.

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