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segunda-feira, 27 de outubro de 2014

O fim do mundo do Gospel - The Moon Is a Dead World [2005]

"Cada pessoa estranha no mundo está no meu comprimento de onda."
- Thomas Pynchon

Não é nada incomum bandas de hardcore usarem (e muito bem! Como no caso do Touché Amoré, por exemplo) a bateria como instrumento que lidera e conduz o ritmo dos outros aparelhos. Porém, eu nunca tinha ouvido uma bateria tão brilhante e impecável como a gravada em The Moon Is a Dead World. Tamanho “radicalismo” entre tempos extremamente diferentes exige tanto técnica quanto criatividade. O conhecimento aplicado de diversos andamentos para intercalar uma música essencialmente “torta”. E esses momentos com diferentes perspectivas têm seu brilho próprio, a ponto de cada seção ser extremamente importante não para sua sucessora, mas sim para o momento que ela representa. A determinação não é prévia, a construção baseia-se na efemeridade de cada compasso, onde a execução suga a atenção específica de cada minuto.

Estamos em um apocalipse abstrato. Onde berros encontram solilóquios, declamações e diálogos parecem ser colhidos do mar composto de todas nossas pequenas lamúrias. Um mundo de hostilidade suja para nos debruçarmos. Nesse ambiente totalmente aberto construído pelo Gospel, as inquietações são tão divergentes entre si quanto à tonalidade da guitarra, suas distorções sujas. Esta que parece ter horror a monotonia, tanto que muda suas cadências a todo instante, aposta na microfonia porque está perplexa com a uniformidade das coisas. Essa não é uma banda que sabe lidar com clichês, decididamente. O ouvinte não está de todo errado se tomar como um ataque à sua pessoa. É ofensivo em essência, não precisa do amuleto de palavrões, é um contra-ataque ao pop de massa que nos enche após cada capítulo de The Voice. É certamente uma experiência única, um deserto que parece impossível de atravessar. O objetivo então é alcançado, uma música que nasce do instinto (somado obviamente com a técnica adquirida), largando mão de praticamente todas as convenções estéticas.


Acredito que todo aspirante a baterista deveria ouvir isso. São consecutivas “quebras de expectativa”, que compõe um cenário completamente instável e caótico. Mas há uma diferença da bateria de Sean para as que são “apenas” virtuosas. Seu estilo fragmentado imputa um valor todo próprio às marcações de tempo já desfiguradas do Gospel. Concentre-se em suas viradas e como elas “preenchem” o panorama sonoro, sem descanso nenhum. É revelada aqui a expressão genuína de emoções através de um instrumento, e não apenas mero acompanhamento para as supostas sensibilidades das letras. Em certo ponto, pensamos, “nossa, mas até onde esse rapaz vai e como ele tem tanto fôlego?”. Pelo andamento do disco, seus pratos sempre soam descentrados, puxando uma música que já nasce extrema aos limites quase do impossível. A cada música duvidamos se ele vai superar seu desempenho na anterior e o nível não cai nunca. São múltiplas batidas que evocam percepções sonoras que talvez nós não soubéssemos possuir.

Mesmo na hora de construir seu “épico apocalipse”, o Gospel evita caminhos já trilhados e busca uma autenticidade. Que diga os vocais, ao contrário de quase todas as bandas de screamo, não soam “nervosos” ou “tristes”. Mas simplesmente insanos, onde a cada minuto acompanha os ruídos atraentes e repulsivos (ao mesmo tempo!) de uma guitarra que deseja apenas queimar. Mesmo usando elementos muitos distintos de bandas como A Silver Mt. Zion fica aquela impressão do céu enegrecendo enquanto as sombras vão tirando toda cor e vida do solo. Uma tempestade em que as rajadas são imprevisíveis, surgindo dos pontos mais excêntricos, ainda assim extremamente criativo e sofisticado à sua maneira. Não temos uma revolta panfletária, ou uma denúncia do tecnicismo. É a pura demência representada no envolvimento de três cabeças loucas o suficiente para querer levar adiante tamanha catarse em forma de música.

Embora os clássicos elementos de screamo e post-hardccore que eu avisei; este álbum simplesmente deveria ser ouvido por qualquer um interessado em música desafiadora. Com certeza fica no hall dos discos mais singulares da história disso que se convencionou chamar hardcore. Mas que em nenhum momento se limita, baseando toda sua força no talento extremo dos músicos. Onde a diversidade não soa esquisita ou forçada, mas como mais um elemento para puxar os limites da criação. Integrando a estética violenta e emotiva com passagens totalmente experimentais com ritmos dissonantes. A radicalização de um gênero, a ampliação da certeza do fim.

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Loomer – You Wouldn’t Anyway (2013)

Há uma espécie de abertura  em You Wouldn’t Anyway, algo de convidativo entre o som ao mesmo tempo ruidoso e sedutor, carismático que as guitarras (sempre recomenda-se ouvir no talo!) emitem.

Reconhecemos a pegada oitentista e noventista,  sem sombra de dúvidas. Mas como uma captura de um tipo específico de sonoridade pode soar novo em 2013? E por isso, por nos remeter tanto a uma porção de bandas maravilhosas, e ainda sim se destacar como um dos melhores discos de 2013 (vale lembrar que teve nada mais nada menos que My Bloody Valentine naquele ano) é que há algo de inexplicável no primeiro lançamento do conjunto gaúcho.

Voltamos à abertura que citei no primeiro parágrafo e que talvez seja o terreno mais importante da arte. Oras, obviamente se você gosta de Slowdive, você vai gostar de Loomer. Mas melhor do que isso, nós dialogamos com a banda e vemos que é possível expandir aquele terreno que já pensávamos dominar. Não ficamos saturados e não pensamos “ah, já que é pra ouvir esse tipo de som, vou ficar com o meu velho e bom Ride”. O ouvinte também é exigido encontrar coisas novas e a cada audição o clima “barulho envolvente” exerce um ataque à nossas convenções. Não que seja exatamente experimental (e nem almeja ser!), mas You Wouldn’t Anyway nos oferece uma experiência nova. Foge da uniformidade óbvia apostada por muitas bandas que são meras cópias, ao mesmo tempo em que se diferencia de pelo menos 90% do “indie rock” nacional.

“Reajustar” um som ao cenário que vislumbramos hoje em dia poderia ser difícil não fosse tudo parecer tão natural e fluído ao decorrer do álbum. É como se toda a sonoridade que guardamos em nossa esfera ativa se reavivasse e ganhasse uma nova forma nesse século que vivemos. É como se a existência do disco sinalizasse certa época e ainda assim incentivando criações novas, autorais, próprias. Preenche um vácuo que foi deixado com o desenvolvimento da tão chamada “música contemporânea”. Podemos ouvir hoje literalmente qualquer coisa, mas a entrega do Loomer tem certa vantagem aí.


Vantagem que talvez seja difícil especificar, mas se você é fã das bandas citadas, de shoegaze e dream pop principalmente, dedicar seu tempo ao Loomer é também voltar a um terreno que você adora e perceber que mais coisas podem ser erguidas ali. A música não tem limites. 

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

A ambição do Touché Amoré

"Oh Cristo, o esgotamento de não saber nada. É tão cansativo e difícil para os nervos. Isso realmente te esgota, não saber de nada. Lhe dão a comédia e você perde todas as piadas. Cada hora você fica mais fraco. Às vezes, quando me sento sozinho no meu apartamento em Londres e olho para a janela, eu descubro como lúgubre é, como é pesado, assistir a chuva e não saber por que ela cai. "
 - Martin Amis, Grana.

I

Não gosto muito de ficar “embaralhando” e citando gêneros apenas para mostrar que sei um pouquinho disso ou daquilo, mas no caso do Touché não tem como falar outra coisa. O primeiro lançamento cheio do conjunto se baseia no screamo dos anos 90, elementos de “transição” utilizados no que se convencionou chamar de hardcore moderno (as mudanças de tempo, as dedilhadas, os “punch” do post-rock) e muita melodia de bandas como Dag Nasty. Tudo isso tira a banda de qualquer “nicho” para abraçar as mais diversas correntes de consumidores de música por aí- tanto que configura desde sites mais “enraizados” como o dyingscene aos mais “hypes” tipo Pitchfork ou o canal de resenhas do Athony Fantano.

A voz de Jeremy, apesar dos berros, é compreensível e exalam um eu - lírico que está coberto em agonia e angústia. Como ele diria quatro anos depois, no Is Survived By, está totalmente exposto para todos observarem. Essa é a ponta para a conexão com o ouvinte que esse tipo de música tem talvez como mérito maior. O encontro ocorre no compartilhamento de fracassos ou na percepção da tristeza. Somos saturados com sons elípticos e andamentos que se desencontram, aprofundando a sensação de aflição, ao mesmo tempo em que há uma luta constante para sair dessa merda. O ouvinte fornece seu tempo e a banda nos entrega com muita honestidade suas percepções de mundo. Funciona.


A banda coloca muita emoção em apenas vinte minutos. E nesse pacote temos guitarras mudando tons, uma bateria incrível que é violenta e precisa. Nos momentos em que toda atenção teoricamente deveria se voltar aos gritos, a percussão surge precisa e as guitarras ficam num pano de fundo repetitivo como um ciclo muito difícil de se libertar. Em uma experiência de menos de meia-hora, é muito custoso encontrar bandas que conseguem empacotar tamanha entrega e surpreendente variabilidades em um gênero cuja estética sempre se destacou pelo simplismo. O objetivo do álbum é cumprido porque eles conseguem nos enfeitiçar nessa atmosfera de lamúrias e desilusões. Os diferentes andamentos rítmicos das músicas se encontram nesse ponto em comum e conseguem algo relativamente árduo: em tão pouca duração, apresentar propostas diversas que se encaixam nessa dinâmica de “angústia”. A percepção de velocidade e efemeridade se ajusta em nossa relação com o disco cada vez que ouvimos, e seu ciclo de isolamento está completo porque logo menos estaremos cantando as mesmas frustrações.
...To the Beat of a Dead Horse [2009]
I'm losing friends.
I've got a love/hate/love with the city i'm in.
I'll count the hours, having just one wish.
If i'm doing fine, there's no point to this.

Embora possa soar muito “simples” em alguns pontos,  ...To the Beat of a Dead Horse nos captura em quase todos os momentos. Uma sensação de agonia amarrada com desabafos que precisam ser expostos. Nesse sentido, talvez, não nos sentiremos melhores- mas teremos uma companhia para as longas horas em que a insônia se faz presente.

II

Se antes, “sobrava” agonia, em Parting The Sea Between Brightness And Me temos muita energia. Não há elementos novos aqui, segue mais ou menos o que os contemporâneos como Pianos Become the Teeth ou Dangers fazem, isso é: linhas que são relativamente parecidas com a progressão de metal e uma influência interessante do emo dos anos 90. Nada mal. Mais do que isso, são bandas, ao lado do La Dispute, Defeater e até do próprio Title Fight (que está muito longe dessa estética screamo), que buscam dentro dos recursos disponibilizados no “faça você mesmo” abraçar um conceito e não apenas “lançar” músicas. Mérito artístico.

Mais uma vez, a condensação talvez seja o que mais agrada no conjunto. Muitas bandas demoram demais para construir os climas e algumas partes soam chatas e repetitivas. Bem, não é o caso desses meninos, que, por exemplo, nas três primeiras músicas conseguem nos colocar no clímax pancada após pancada, variando entre o minimalismo ao épico em questão de muito pouco tempo. Assim, temos uma proposta que articula suas variações sem se perder em nenhum momento.

O que traz um problema, obviamente. Tanta dinâmica e compreensão ficam legais nas primeiras ouvidas, mas depois a homogeneidade aparente da audição primária perde-se em algo que aposto que eles queriam evitar, a repetição. Esse processo talvez perca o sentido quando a banda intenta só, e somente só, isso. Ao ponto que depois dessas três primeiras canções (e não me levem a mal, elas talvez contem pelo disco todo) percebemos que na quarta temos praticamente a mesma fórmula, e assim por diante. Num certo sentido, é um jogo perigoso o desses rapazes, afinal, se é um conjunto que aposta praticamente todas suas cartas na emoção que as músicas suscitam em nós, os sentimentos deles são tão reduzidos a ponto de sempre serem revelados em menos de três minutos?
Parting The Sea Between Brightness And Me [2011]
O Touché Amoré, em Parting The Sea Between Brightness And Me, provou que eles podem fazer um disco de hardcore bom pra caralho. E aqui todas as variações que o gênero permite: os berros, as dedilhadas, os vocais épicos.  Mas eles claramente têm vocação para fazer algo mais do que essa barreira que eles criaram. É como se a obra que vêm ambicionando ficasse presa no mesmo empecilho que no álbum anterior se destacou. Emoção conta sim, e muito, mas pedir criatividade nunca é demais.

III

Aparentemente o conjunto entendeu isso quando entraram no estúdio para a gravação de seu último disco cheio, Is Survived By. Pense em todos os limites que foram uma barreira em Parting The Sea Between Brightness And Me, eles foram colocados de lado para variações rítmicas polissômicas, em um instrumental complexo que acompanha as letras, estas adquirindo peso filosófico, onde questões sobre mortalidade e legacia pós-vida são aprofundadas. Não ficamos mais saturados com a compreensão de todos os elementos obviamente bons do hardcore, estes parecem mais flexíveis e bem distribuídos, sem atropelamento. A raiva e angústia continuam, mas a banda percebeu que há mais caminhos para explorar e não evitaram fazê-lo.


O equilíbrio entre os vocais do Jeremy e a parte instrumental está melhor do que nunca. Ao mesmo tempo em que ele se dedica com os vocais emocionantes já conhecidos anteriormente, há espaço para a melhor utilização das guitarras e o notável trabalho de bateria do Elliot, que alterna entre ritmos muito rápidos tão característicos do punk rock com seções meio tempo nos momentos mais imprevisíveis. Com as letras mantendo a qualidade e a sempre marcante entrega de Bolm nos vocais, essas novas variações instrumentais só acrescentaram, moldando para além da fórmula que foi tão agradável no primeiro disco e nem tanto no segundo. Essa espécie de “reajuste” tira o Touché Amoré duma limbo que eu temia que eles caíssem: a de bandas que são realmente boas, mas totalmente previsíveis. Fica muito difícil arriscar como vai ser o próximo disco da banda depois de Is Survived By. É algo muito mais ambicioso do que eles fizeram anteriormente, e que sempre que ouço me traz uma comparação com To Bring Our Own End, do qual certamente a banda foi influenciada.
Is Survived By [2013]
E todo esse “espaço” que a banda permitiu para variações instrumentais, indo rapidamente entre acordes diretos para uma seção jam, não tira de maneira nenhuma a honestidade que sentíamos anteriormente. A paixão doentia continua lá, só melhor distribuída e sem querer ser evidenciada a todo instante. Num certo sentido, embora as músicas, como afirmei, tenham mais horizontes onde são desenvolvidas, depois da audição, sentimos que percorremos uma espécie de atmosfera construída por todas essas divergências. Estranho que um álbum decididamente mais variado nos ofereça uma impressão de “conceito”, maior do que nos lançamentos anteriores. É como se todas essas múltiplas faces que o Touché decidiu exibir integrassem as dúvidas profundas que são erguidas durante o disco. Não há a saturação como em Parting The Sea Between Brightness And Me, pelo contrário, ouvir Is Survived By repetidas vezes vai oferecer pontos anteriormente não encontrados.

Is Survived By é construído por uma banda que parece estar completamente confortável com sua sonoridade, um Jeremy menos “contraído” do que no disco anterior (ainda que relativamente monótono). Talvez os fãs do primeiro trabalho estranhem o som muito mais polido, mas aqui isto não parece mero esmero como em Parting The Sea Between Brightness And Me, pois esse álbum justifica essa superprodução em seus micros detalhes, as passagens que se completam. É engraçado como uma banda consegue se renovar sem ir muito além do que fez anteriormente, apenas contando com idéias diferentes e mais vontade do que apenas “empacotar” músicas extremamente emotivas em menos de três minutos. Em algum ponto, Jeremy diz “há sempre uma chance de recair e voltar a ser a pessoa que eu ainda temo estar ali”. Como artistas, o Touché Amoré deu um passo a frente e fez essa queda parecer muito improvável.

This is survived by a love. This is survived by a cause; that you aren’t the only who remembers what it was. This is survived by a love. This is survived by a wish; that you won’t let down who has attached themselves to it.”

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Martin Amis e a morte da empatia

A consciência estava sobre ele, antes que ele pudesse sair do caminho."
- Kingsley Amis

A fabulação de supostos aprendizados no meio de um caminho de perdição- onde os sentimentos são trucidados- não encontra vez na catártica obra de Amis, onde o vazio da existência não esbarra escapes para transcendência exceto atos semelhantemente vagos. Parece que estamos viciados em um sistema de simulações. Por isso Martin não tem reservas ao discordar radicalmente de Nietzsche, “o que não te mata lhe faz mais fraco”. Em todos seus livros, há uma espécie de forjamento de sistemas morais, onde a individualidade parece aos olhos das figuras caricatas que rondam a ação a principal fonte de regras do mundo. São tramas que desfilam pela auto-humilhação, perversão e ambição de grandeza sendo esmagadas pelas mais variáveis bizarrices- bebês que espancam os pais, grandes hematomas causados em um simples jantar.


São essas fabricações próprias que atribuímos ao imenso abstrato exterior que norteiam histórias que resistem justamente por suas fraquezas. Aliás, residem nela e encontram daí- como as personagens- motivos para justificar os atos mais boçais e escrotos que permeiam a contemporaneidade. Na biografia de Martin Amis, as tribulações envolvendo divórcio e polêmicas familiares trançam paralelos diretos e objetivos com a sensação permanente de “ausência de algo” em sua obra. Não à toa, a tão dita “típica arrogância inglesa” invade os miseráveis, os escritores, os lutadores. E justamente por estar dentro de mais do “frenesi” literário, Amis escolheu os circundantes desconhecidos para mapear a parvoíce embutida em quase todos os sistemas de relacionamento, onde um talento inegável para escrita encontra nesse depósito de astenias a maior força para uma sofisticação reconhecível. Um misto de altanaria e uma cabeça tão erguida que não vê o tropeço dos pés com as cicatrizes de uma vida pessoal sentimentalmente turbulenta pavimentaram suas histórias. E andando por uma literatura inglesa muito bem povoada e travando amizades com figuras tão polêmicas quanto, a obsessão pela humilhação desenvolvida em sua obra pode parecer meio esquisita para desavisados. Pode ser que Amis batalhou para conseguir seu “próprio” lugar, uma vez que seu pai é um dos romancistas e satíricos mais notórios das letras britânicas, e encontrou nesses resíduos de desesperanças uma forma própria. Mas para sermos justos, Martin é definitivamente mais completo que o pai; uma espécie de pontuação praticamente perfeita e uma simpatia pela representação do grotesco somam-se às outras características do progenitor. Não à toa que tamanha volúpia não encontra nunca a satisfação, para seus personagens isso é proibido e aumenta gradativamente enquanto envelhecem, chegando aos vícios tão banais como fumar e ver televisão, e é essa mediocridade que teme Amis, mais do que qualquer outra coisa.

Mas não é uma mera mimética  de sua própria história, e sim representações dos absurdos potenciais e reais que cercam nosso cotidiano e nos micro momentos. Amis também é autorizado a falar a partir da experiência e, em Viúva Grávida, busca num estilo já consagrado pelo seu pai a melhor maneira de relatar seu passado e os caminhos que sua geração tomou, mais precisamente das amizades importantes e a dor da própria irmã, donde partimos de jovens em pleno auge da revolução sexual para os descaminhos que suas vidas tomaram- o que talvez seja um paralelo com tantas figuras que rondaram o coeso Martin, pelo menos em esfera pessoal. E temos ai o depósito de todos os acertos de contas sendo há muito planejado em sua obra: o ataque sem escrúpulos aos cânones literários e a parte mais bonita em uma história que pouco admite disso- embora “cercada” por beldades- um amor espectral pela irmã, conforme o pouco autocontrole e a transposição de valores desassociados de sentimentos foram reinando na mente de Sally Amis. Martin não perdoa os gritos que sua geração contribuiu para entoar.

II

Também em sua relação com a irmã é possível encontrar rastros em Lionel Asbo, na figura de Grace, ainda mais “desassociada”, fazendo sexo com o próprio neto. O acerto de contas de Martin estranhamente não atingiu o pai, no entanto. Que Lucky Jim ainda seja mais importante que todos os livros do Amis filho é inegável, considerando as figuras importantíssimas que o elegem como uma das maiores influências, o que talvez justifique certo aborrecimento de Martin com os meios para ser considerado cânone.

Oras. Tal livro também arrebatou Martin, que tentou, sem sucesso, dar continuidade ao estilo do pai nas primeiras obras. Mas ele estava no meio da revolução sexual e queria colocar tudo àquilo no papel, sendo radicalmente diferente do panorama íntimo complexo que temos ao ler cada página de Lucky Jim. Uma novela extremamente interessante, onde a elegia da pantomima, tal como os irmãos Marx, imerge na cultura provinciana que seria radicalmente modificada,. Segundo Hicthens, “ilustra uma diferença crucial entre o os pequenos e grandes homens. E Dixon, como seu criador, não era palhaço, mas um homem sensível apesar de tudo”. Uma talentosa observação, onde temos uma descrição brilhante sobre os rumos daquela geração, que aos poucos perdendo-ia as habilidades sentimentais. Onde a celebração da vida fica reduzida à bebedeiras em lugares públicos, sendo maliciosos, pervertidos e maldosos. O bom-humor aqui denúncia homens perdidos atrás de atos sórdidos, impensados.

Mas as primeiras obras de Amis, todas não traduzidas para o português, insistem em equívocos porque tateiam no escuro, e embora contenham sacadas e estruturas que pré-anunciavam a sofisticação e o domínio completo de sua arte que Martin adquiriria posteriormente, insistem em surgem como tagarelando sobre opacidades que nada condiziam com o alto rigor de sofisticação de seu escritor. São tentativas e apostas razoavelmente interessantes, mas que mecanicamente recorrem a recursos metalingüísticos e meramente estéticos para tentar apagar a falta de “sangue” nos livros. Aposto que ele sabia que “faltava algo”.

D. H. Lawrence, uma das maiores influências do autor, escreveu sobre a diferença de “ser social” e a “verdadeira individualidade humana”: "Enquanto um homem continua a ser um homem, um verdadeiro indivíduo humano, habita em seu coração certa inocência ingênua que desafia toda a análise". Grana- o primeiro livro realmente importante de Martin, é uma demonstração clara da perda da individualidade própria, subjetiva e ingênua por comportamentos sociais que podem ser vistos como verdadeiro massacre. Então o indivíduo se protege dessa espécie de carnificina abnegando sua própria individualidade. Segundo Lawrence, o dinheiro representa a salvação material, ou seja, Deus. Castrados de características próprias, o que resta? Desprovida da teologia mística que envolve os escritos de Lawrence, o desenvolvimento de Grana, adicionando o humor pontual de Amis, é tão bem elaborado quanto em D.H. Num mundo onde nem mais os desejos são autênticos, Martin emergiu no que Lawrence havia começado e dialogou com essa linguagem para aprofundar uma questão que já habitava um poço que parecia desconhecer limites.

Amis abusa de uma metrópole decadente e apuração dos cinco sentidos para contar uma história onde tudo que é próprio vai se dissolvendo, e os signos exteriores apropriam-se tanto de nós que percebermo-nos desprovidos de qualquer tipo de munição íntima. É como ficar pelado sem perceber que suas roupas foram tiradas. É a decadência natural. O consumo de pornografia (o que seria rotineiro nos romances posteriores) talvez seja a principal marca da perda do verdadeiro desejo, porque a consumação da vontade responde apenas reflexos sociais estipulados, e aqui Amis se reencontra com Nietzsche.

É irônico o nome do pub que John Self (protagonista) ser chamado Shakespeare. No fundo, Amis está dizendo que praticamente todos nossos vícios já foram estabelecidos. Poucos são os ângulos em que é possível se deparar com algo que “re” humanize Self. Como provação de descrédito, ele não compreende o valor literal de A Revolução Dos Bichos, de George Orwell. Ou seja, o que não é um “bem de consumo” (como a pornografia veio a ser), é descartado e colocado em uma sessão sem valor algum. É como se as poucas coisas que apelam mais necessariamente a algo íntimo, verdadeiramente pessoal e que exigem algum nível de esforço estivessem inacessíveis, na maior altura de uma estante cuja base é estruturada em satisfações pré-fabricadas.

O apelo maior à pornografia e as perversões do “submundo” seriam melhores desenvolvidos no romance pós Grana, Campos De Londres, Neste, Amis desenvolve em três personagens um triangulo amoroso bizarro para colocar em xeque nossas motivações. A estrutura da história banca sua força em três “outsiders”, cada qual à sua maneira, em um mundo onde o automático é tido como premissa. O próprio narrador de Campos De Londres, um escritor, nos coloca em dúvida a toda hora de porque realmente escrever um livro, enquanto tem lembranças do fracasso de seu último relacionamento e percebe a única mulher com algum interesse sexual nele desenvolve uma gula absurda. A relação entre ficção e realidade não é disposta como “uma dúvida do que é verossímil”, mas uma disposição de mentiras tão grandes que vivemos também em uma ficção. Em um período não tão extenso de tempo, analisamos derrocadas e simulados de vitórias na deteriorada e turbulenta Londres. Vivendo imagens da degradação do próprio homem no ambiente urbano.

A idiotice é a nova ordem social, é o que afirma Campos e seu sucessor, A Seta Do Tempo. Onde nossa própria estupidez é testada pelo fato de acreditarmos no narrador. Todos os eventos na história parecem lógicos quando explicados por ele. Amis escreve um enredo incrivelmente fantástico que permanece “lógico”. As cenas que acompanhamos o protagonista Tod são bonitas e tocantes. E a chave de Martin é transformar momentos terríveis em algo poético, como essa passagem, que pode ser vista como exemplo de seu amplo domínio técnico ao transfigurar uma imagética tão complexa quanto suas personagens: “Acima de seus arcos e empenas o céu à noite é cheio de nossos erros inconfessáveis​​, nuvens hidrocefálicas e o paladar erroneamente curvo do oeste, e as cinzas de nossos fogos. Eu posso ver uma mecha de cabelo humano branco-neve à deriva para cima, que então se junta ao ritmo mais elíptico e elementar do ar secundário”.

Os homens não só não possuem qualidades, como estão embriagados em fraquezas. E depositam nestas, justificativas pálidas e sem graça sobre seus comportamentos primitivos, grotescos e bizarros. Keith, de Campos De Londres, talvez seja o exemplo do idiota maior, que só encontraria semelhança em Lionel Asbo, onde suas justificativas próprias autorizam um utilitarismo realmente vil, e os códigos de honrar são meras simulações da própria distorção da realidade.

As personagens do mundo amisiano insistem no erro porque não conseguem “transfigurar no plano comum da realidade”, resta tentar violentá-la do jeito que é possível- matando, violentando menores de idade, fingindo deficiências públicas para ganhar dinheiro do serviço público, pagar para alguém “ferrar” a vida de outra pessoa. São pessoas que negociam previamente aos conceitos e códigos sociais, mas não é como se elas quisessem “derrubar” essa dimensão entranhada no real. Não, são figuras que encontram em regras próprias evidentemente estúpidas uma legitimação para tal asquerosidade. É como se tivéssemos uma escala de idiotice e numa vasta demanda Marti Amis decidiu retratar o ato de quem figura nos piores níveis.

III

Amis encontra novamente o filósofo que contrariou quando seu amigo Hitchens morreu, e nos trás histórias de personagens com imenso “alvedrio de existência” e aponta nestes absurdos pelos quais objetivam chegar ao lugar desejado. Oras, temos aquela antiga dinâmica de “se não dá com esse, vamos com aquele!”, e é abusando de linguagens e gestos grotescos e obscenos que eles encontram a vontade e força. Como se a “vulgaridade” fosse uma fonte de poder tão rica quanto sentimentos considerados mais “nobres”.
Martin Amis encontra então na ficção narrativa uma tentativa de explicitar coisas muito difusas e que não podem ser reveladas pela “técnica”. É necessária essa comunhão de paisagens representativas e fenomenologia dos atos para tentar encontrar algum sentido ou ponto de redenção na existência. Convenhamos que é uma tarefa árdua e esses pontos são raros e escassos, então o preenchimento com a estupidez é justificado como representação dos entes que deixamos subjugados. No jogo dos conceitos, Amis adiciona as criaturas mais desconhecidas e submersas para seu grande painel de “desencaixados”. Aqueles ruídos que não ouvimos a não ser que andamos por parques perigosos em plena madrugada ou respirando aceleradamente enquanto transamos com a mulher do melhor amigo “pagando” para ele, enquanto este observa tudo.

Mas depois da consumação dos desencantos-principalmente na primeira metade da década do século XX- e da chegada definitiva da ciência substituindo Deus e nos apontando o “nada cósmico”, a ficção não está serve mais como “organização para um mundo caótico”. Não, hoje os autores realmente bons, indicam com sofisticação exorbitada- e aí Amis se inclui nessa tradição que condecora também nomes como David Foster Wallace e Philip Roth- para o desmembramento do real e suas várias ramificações. E para que isso seja eficiente, a opção estética de Amis por enfileirar em seus romances criminosos que não seguem o padrão “comum” de marginalização. Martin retrata a desintegração da vida através da profundidade dos agentes desse caos. Pode parecer muito legal, mas suas obras sinalizam o absurdo da “falta de amor”.

E esse exame minucioso nas formas que os “eleitos” manuseiam respectivas ferramentas para “foder com tudo” se amplia a cada livro até explodir em Lionel Asbo, seu livro mais recente, aonde as “regras” que vinham cada vez sendo menos necessárias na opção estética de Amis são realmente dissolvidas e percebemos na vida do “durão” Lionel, a soma das atitudes maléficas de todos os personagens anteriores. Mas com um problema, dessa vez o “estúpido” é muito mais inteligente do que parece, porque embora não saiba lidar com as “etiquetas sociais”, ele compreende bem, muito bem, os mecanismos que as geram.
Porém, dentre os elementos que consagram os escritores contemporâneos que melhor evidenciam “o grau de degradação dos sistemas”, Amis talvez falhasse nisso nas últimas cinqüenta páginas de seus romances inicais. Não entendam errado, o nível de apuração e deleite estético que ele pode causar se compara a muitos outros poucos autores vivos ou mortos (eu mesmo afirmo sem pensar duas vezes que ele está anos a frente de um Dostoievski). Uma diversidade de abstrações impelia o leitor do núcleo que amarra a obra amisiana. Assim, a busca de Amis parecia um tanto quanto inócua se pensássemos em termos épicos que a “malandragem insubordinada” de sua obra nunca o impediu de ambicionar.

Mas eu fui cruel e explico o porquê. Se Amis ambicionava o “épico” ou uma espécie de “epopéia da desintegração”, ele perdia a mão no tamanho dos romances. Quando toma conta dessa ambição e se permite ser “apenas” o Martin, ele lança belíssimas publicações, como a coletânea de contos Água Pesada e Outros Contos. Nesta, Amis mostra uma habilidade perversa em inverter a realidade, abusando da imaginação e humaniza as caricaturas espectrais que tememos tanto.

IV

Em seus romances realmente brilhantes, como A Informação, a catarse é organizada em estratégias de prosa virtuosa e muito sofisticada, onde o “existencialismo” não se pauta amplamente nos melodramas extensos de Dostoievski, e sim é retratado em perversões pessoais que assumem o protagonista e o “autorizam” a se juntar às pessoas mais vis. A abordagem do romance não só provoca intensas risadas- o humor “negro” em seu mais alto nível, em zombarias à poetas e escritores que atingem níveis hilariantes, o que deveria ser um aula para o “stand up” tão em voga ultimamente- como disseca o tão chamado “ambiente” literário em fracassos seqüenciais que evitam o vazio empregado pelo Vila-Matas.

Do ponto de vista pessoal, não foram poucas as bizarrices horríveis que Martin passou por toda a vida. E nas quinhentas páginas de A Informação (que foi um fracasso de vendas, o que não deixa de ser um sinal de nossos tempos) temos extratos brilhantes tirados das situações mais grotescas possíveis, sempre alinhadas às introspecções de nossa condição humana e do que realmente pode motivar um escritor. Aliás, pode esse fazer realmente alguma outra coisa?  Não é preciso de muita acuidade para encontrar referências ao mundo blasé que abriga a classe artística retratada no livro. Tanto nas cenas que ocorrem nos EUA como em Londres, o que vemos no asqueroso Richard Tull é a consciência da mortalidade e a crise da meia idade. O próprio Amis disse em uma entrevista o que ele define como crise de meia-idade, “um exagero histérico para a certeza de que você vai morrer”. Durante a narração observa-se cortes que remetem a degradação espacial, o que só podemos supor ser o livro que Tull está escrevendo, A História Da Humilhação Crescente. Afinal, observar o vasto Universo e suas aparições repentinas é ter certeza da morte batendo na porta. Além de ser um paralelo com as idéias de fracasso, sucesso e inveja.
E é em A Informação que Amis encontra uma espécie de “propósito maior” que canoniza todos os grandes escritores. Se seus livros anteriores podem ser vistos como um deboche universal do que há de mais vil em nós e como a compaixão está tão próxima da morte, em A Informação ele alinha todos esses assuntos profundos aos traumas pessoais, em uma consciência da frágil condição humana e que a única forma possível de combater esse “acúmulo de estupidez massificada” é tentar preservar as emoções.

A denúncia de Amis nesse romance é primeiramente sobre ele mesmo e os podres de sua vida. Gwyn Barry, o avesso de Richard Tull, é rico e está faturando muito em cima dos seus livros “otimistas” que conseguem abordar, segundo seu melhor amigo, “absolutamente tema algum”. Richard Tull trabalha escrevendo resenhas de biografias de mil páginas (o que ironicamente seria a primeira oportunidade de Keith em A Viúva Grávida) trabalhando para a Tentalus Press (na mitologia grega, Tentalus sofre uma eternidade de desejo não realizado).

E o que seria a “informação” do título que não à chegada aterradora da morte? Somos sujeitos expostos que inventamos a medição através do tempo e sofremos pelo mal que nomeamos. Daí Amis exprime sua força que não havia ainda se evidenciado em tamanha proporção em nenhum romance até então: os sentimentos devem permanecer vivos para que a morte imponha respeito e não se torne apenas a concretização de nosso estado psicológico.

Mas todo isso adentra na escuridão noturna como uma assombração em Trem Noturno. Esse livro não tem um “fundamento”, e é interessante o fato de Amis ter depositado os acontecimentos nos EUA. Trem Noturno, embora se envolva com os desafios da pós-modernidade, não é redutível a lúdicas gratificações intelectuais, mas explora e investiga os valores humanos do “nada” que pode anular todos os esforços de nossa existênciacriticando o mundo que habita a partir de uma firme postura moral, contrariando os detratores de Amis que afirmavam que seu “brilho estético” se dirigia apenas à degradação da civilização.

A detetive Mike Hoolihan nos traz sua história, utilizando gírias norte-americanas que talvez os leitores das obras anteriores de Amis pudessem vir a estranhar. Aliás, à priori, podemos achar que ela é uma espécie de clichê dos filmes e seriados de “suspense policial”. Mas é nesse contorno de representação nunca antes observado em seus livros que Martin baseia sua busca.
V

Se Setephan Dedalus reparou o pesadelo que a história havia se transformado, para Martin Amis ela é um débito dos vivos com os mortos. No mundo trucidado de Martin, a empatia está morta. Por isso a humilhação explicitamente caótica em seus espectros de histórias, que mais parecem apatias construídas de nossa confabulação íntima. Então por que continuar sendo escritor? Claramente podemos dizer que é para documentar o terror que nós estamos inseridos, mas a apoteose histórica é demais simplista em seus pré-julgamentos qualitativos, Amis quis assinalar a anarquia da decadência através do progresso contínuo de dissociação dos sentimentos. A tragédia de nosso século aprece ser tanto a perda da empatia com os oprimidos historicamente como um distanciamento recíproco com as pessoas mais próximas. Seus personagens vivem em um negrume de ignorância onde inventam paisagens para não ter que admitir a lama que suas vidas são- como o sogro de Des, em Lionel Asbo. Esse “não se importar” abre uma lacuna que parece só poder ser preenchida pela violência.

A influência dessa continuidade de clichês descreve o modo automático com que regularizamos nossas atitudes, o que involuntariamente exclui a possibilidade de empatia. Evitar pensar também causa essa ausência, porque todos os raciocínios instituídos parecem florescer do simplismo apático que é nossa época. As banalidades são sintomas de pensamentos ultrapassados que por algum motivo (e entenda isso como toda demência da massa) ainda perduram suspensos em nosso lar, que também abriga nossas tradições e orgulho ancestrais. Ser um bom escritor não impediu Martin ter publicado algumas coisas bens ruins no início dos anos 2000, onde o profundo virtuosismo paisagístico havia cedido espaço para deslocamentos que, embora ainda tão bizarros como a longa lista de auto-humilhados em sua galeria, pareciam não falar a partir da experiência, e sim da “verdade histórica” que ele é tão relutante.

O crédito voltaria em sua décima primeira novela, Casa De Encontros. Um livro sobre um triângulo amoroso envolvendo dois irmãos e uma judia. São sessenta anos de história condensados em duzentas páginas através de um monólogo narrativo onde não sabemos quem é o orador. Mas já temos conhecimento de suas brutalidades cometidas durante os anos de URSS- estupros, saques. Ele não consegue parar de falar. Ele prefere falar em inglês porque em Russo apareceriam aqueles “guturais horríveis”. Em uma entrega nabokoviana, Amis é muito histórico para apresentar apenas um “triangulo amoroso” e muito estilístico para uma (outra) denúncia histórica. É um livro sobre o lento processo de deterioração. Não é sobre o declínio da Rússia, e sim sobre o declínio do homem moderno. O narrador não está aterrorizado nem apavorado, apesar das inúmeras brutalidades contadas- com muito do humor negro tão característica da prosa amistica. O terror não provém apenas do Estado, mas o horror absoluto é instituído uma vez que temos consciência. No fim da história, sabemos quem é o narrador. Como John Self de Grana ou Odilo de Time's Arrow, ele tenta convencer o leitor de algum tipo de verdade. Mas o que importa realmente, é que o orador acredite que sua vida foi autêntica.
Martin Amis  Htichens
Em 2010, foi publicado A Viúva Grávida, provavelmente seu melhor livro desde A Informação. Aclamado por muitos críticos como um “retorno a forma”, garantiu para Amis muitas participações em prêmios literários. Talvez isso tenha causado uma falha no alvo principal de sua novela. A polêmica aumenta quando a primeira passagem do livro é: “Tudo o que se segue é verdade”. O alter ego Keith Nearing compartilha de suas mesmas obsessões e desejos, assim como tem uma irmã que iria por caminhos não tão saudáveis em função da Revolução Sexual, decorrente principalmente do ano emblemático que foi 1968. De acordo com Amis, “as únicas pessoas de verdade que estão nesse livro já morreram”. Obviamente que A Viúva Grávida reflete a impossibilidade da “vida demasiadamente real” encontrar a ficção. A incompatibilidade mútua de ambas. As primeiras trezentas páginas são em um castelo Italiano onde Keith, sua namorada e outros jovens passam a experimentar a prótese de avalanche de acontecimentos que a revolução sexual gerou.

Daí ser tão forte a confusão normalmente criada, principalmente porque a irmã de Keith morreu com a mesma idade de Sally Amis. Não se pode deixar de ver toda essa confabulação de exageros que é o romance no modo mais perverso que Amis encontrou de lidar com seu passado e com o amor pela irmã. A vida se torna também numa narrativa e, nos tempos entrecortados que acompanhamos a vida atual de Keith, este cria também seu próprio passado. Somos todos escravos de nossa ficção e dos sentimentos, mais do que as ações concretas e objetivas.

Há uma espécie de “acrimônia refinada” que vai tomando corpo em toda obra de Amis e que eclode em A Viúva Grávida. Mais do que uma novela de asserção, Amis se permitiu debruçar sobre os mitos recônditos de seu passado e a dualidade sentida pela irmã para anunciar um envelhecimento preenchido de rancor, o mesmo de Case De Encontros e o fim triste do protagonista de Lionel Asbo. Como se a vida atual fosse uma forma indefinida, mas os traços passados, embora rabiscados e simulados, contribuíssem para a frustração atual. Curioso pensar que o livro de seu pai que também discorre sobre velhice, The Old Devils, encara o tema por outro viés- ainda assim usando o humor absurdo. E nesse caminho de Amis pai e filho, respectivas obras se bifurcam justamente no embate sobre a militação. Enquanto o pai acaba acertando as contas com a idéia da morte, o filho alerta sobre esta em vida, nos alarmando a cada página do perigo que é viver sem sentimentos. Se “discorrer” sobre o Fim é impossível, que ele não esteja presente enquanto ainda respiramos.

É importante atentar para a dissolução do enredo em Á Viúva Grávida porque em seu auge estilístico, Amis consegue radiografar a morte dos sentimentos que domina o homem moderno e apontar as catástrofes originadas da degradação. Esse núcleo que foi a sociedade e, às vezes, a ficção conseguia colocar ordem e objetividade, está falecido como a empatia pelo outro. É nesse automático que vive Lionel, Keith (de Campos De Londres), Richard, a suicida Jennifer, Violet e o avô de Venus.
Nessa análise de degradação, a entropia que se encontra o universo virou motivo para as tiradas de humor mais engraçadas que se pode ter noticia na literatura. E não são subterfúgios ou escapes do assunto maior que organiza intelectualmente a obra de cada autor. Em qual momento da façanha de Amis as personagens encontram algo que vale realmente a pena? Aí está a chave do mestre, em ocultar e colocar escondido a salvação no caos que seus livros mimetizam. Richard Tull salva seu filho no fim de A Informação. Apesar da merda que sua vida se tornou, a percepção de pai foi o suficiente para ele ir correndo para a rua encontrar sua cria mais recente, esta que tinha sérias deficiências psicológicas. Em algum ponto existe a abstração amorosa e esta parece ser a única forma possível de se salvar do monstro histórico e invisível que a humanidade criou para si mesma.