“Encontrou as luvas no bolso do casaco e, depois de consultar rapidamente
o relógio, abriu a porta da frente. ‘É como estar casado com Tolstoi’, disse
ele, deixando-me entregue às minhas anotações febris enquanto corria atrás da
esposa fugitiva, nessa altura a cinco minutos de distância, em sua malfadada
jornada em busca de uma vocação menos nobre”.
Zuckerman, personagem central, está envolvido numa espécie de
“pós-moralismo”, ou seja, a libertação de seu lar para ganhar o mundo com a
vivacidade de suas palavras, a força de sua prosa, isso lhe rende
desentendimento com irmão, uma troca incrível de esposas e neuroses
pós-rompimentos, seu pai lhe diz “puto” como última palavra antes de morrer,
onde minutos antes seu filho, Nathan,
tentava relacionar tudo aquilo ao que lera sobre origem do universo. As histórias
se desenrolam em planos afetivos diferentes, consecutivamente abordando
territórios geográficos diversos- Nova Iorque, a faculdade em Chicago, o velho
bairro em Newark, a visita a um dos seus
escritores favoritos, em um local isolado-a estética da tragicomédia
exemplifica o ritual urbano de risadas e difamações, multidão e isolamento. O
narrador, hora em primeira pessoa hora em terceira, sabe do egocentrismo em Nathan. É uma espécie de romance urbano
que- inclinado na voluptuosidade da cidade e suas atrações, suas possibilidades
carnais e românticas- acaba tendo como erupção um “eu” abandonado, em diversos
planos, tendo que recorrer sempre a literatura.
Às vezes não há distinção
específica entre esse banho de hilaridade pulsante em cada frase de Roth-
críticos que deveriam ser carrascos transformam-se, mesmo com enormes e
abundantes erros, em pessoas que no final acabam servindo a propósitos bem intencionados,
como é o caso de Appel, perscrutador
feroz da prosa de Zuckerman- esse,
por sua vez, fica lunático, vegetando em seu apartamento em uma espécie de
harém moderno, onde várias mulheres desfilam; uma polonesa que sofreu no regime
comunista, a mulher de um grande fã que trabalha como contador de Nathan, a menina de apenas vinte anos
almejando colecionar experiências como homens “nojentos” (sic), ou uma artista
mais equilibrada que vive nas montanhas.
As aspirações nutridas por Zuckerman apresentadas nas primeiras
páginas- o garoto que deixa sua casa com dezesseis anos, cheio de ambições- aos
poucos se tornam, no passar de vinte anos, prisões que ele tem de romper; o
surto das feministas com sua obra, a moralização do crítico Milton Appel, Roth segue a tradição
judaica de escritores que se revoltam com seus antepassados, mas é uma relação
paradoxal, ao mesmo tempo em que se se conserva a cortesia e a intelectualidade
catalisadas pela criação em uma família judia de classe média, você tem que
romper isso com verdades e exposição de intimidades, a ruptura disso é um
estrago enorme.
A comédia preenche as angústias
de Zuckerman- em particular em Lição
de Anatomia, onde nós nos deparamos com um escritor de meia-idade, que mantém
seu “harém [sic]”, bebe vodka e dá uns “tapas” no baseado, e também no epílogo
Orgia Em Praga, claramente envolvida em toques kafkianos no irrealismo, porém
com a velocidade narrativa e jogos cênicos que tão bem constituem uma ficção
tão própria como a de Roth. Como comédia trágica, as historias cumprem seu
papel. Há enriquecimento das personagens, quase todas de relativa importância,
até mesmo no caso do engraçadíssimo Alvin, tem como pano de fundo uma história
muito bem definida, transferidas ao leitor sem soar explicações forçadas,
devido à construção cuidadosa do autor ao modular tanta vida à essas pessoas- e
prepararem-se para as gargalhadas.
Em “A Orgia De Praga” podemos
perceber fortes influências de Kafka, mas também de todas as características
que rondam os outros trabalhos de Roth, nesse conto com mais esmero e precisão
estilística, também porque é um epílogo curto e finaliza o turbilhão de emoções
que Zuckerman passou nas mais de
quinhentas páginas anteriores. O ponto alto da trilogia é como nostalgicamente Zuckerman recorre a memória quando a
pressão fica enorme, sempre voltando fisicamente a lugares da infância, abalado
como as coisas mudam, ficando surpreso com a situação que se encontra. São
reflexões que cobrem sua juventude, sua partida para o colégio, os desentendimentos
com o pai, poder-mos-ia chamar de “romance de formação”, mas sua constituição
fragmentada formula muito mais a “prisão judia” de Zuckerman ou seu despedaçamento completo enquanto pessoa. Aprender
a se desmantelar pode ser “amadurecimento”, também. No entanto, essas situações
adversas e teoricamente comprometedoras apenas o amadurecem enquanto
ficcionista, pois seus momentos de introspecção são tão totalitários e sedentos
que talvez não haja outra alternativa, a não ser realinhar essa compreensão
tardia das motivações antigas de um suposto “si mesmo” com a grande imaginação
que tem. A narrativa da queda. Voltamos no tempo, os feriados com a família, o
primeiro conto, as publicações na revista, mas não é necessariamente uma
investigação dos “porquês”, mas apenas molas propulsoras para vexames futuros.
O estranhamento de Zuckerman quando
está com Alvin é uma prova da existência de outro, por vezes esquece que é
escritor e que tudo é muito engraçado, fica preocupado e relativamente
neurótico com a possibilidade de sequestro da mãe. Parece que todas as
convivências de Zuckerman estão
fadadas à simples páginas futuras num livro de ficção.
Assim como o célebre Stephen Dedalus, as piadas de Roth não
são antissemitas, mas sim uma risada malcriada, um escárnio contra a paranoia
da obsessão histórica- essa problemática de você ser estigmatizado antes mesmo
de nascer- não é autodepreciação, como muitos entendem, mas um grito obsessivo
contra a condenação do instituído. As explicações para tanta risada, tanta
perversidade e sexualidade em Zuckerman
Acorrentado é que o riso se configura como único modo de mostrar o equívoco
duplo: de esconder nossos impulsos, e o ridículo neles.
Zuckerman tenta convencer uma residente alcoólatra de Praga, Olga,
a devolver contos escritos em iídiche, estes redigidos pelo pai de seu
ex-marido, nosso herói tenta recuperar algo que é impossível entre ele e os
contos na língua de sua raiz genealógica, existem sexo, álcool, dinheiro e o
comunismo. Essa mulher pode ser vista como uma caricatura da sociedade
contaminada, sem ideais, cujos únicos refúgios são basicamente bebidas e trepadas- o Zuckerman aflito de “Lição de Anatomia”, agora já revigorado,
encontra um tipo de doença praticamente incurável, anos de paranoias somados
personalizada em Olga. Os embates certamente envolvem a literatura de Roth em
polêmicas de ordem religiosa, política, mas ele não está interessado em debates
ideológicos dicotômicos, e sim em expor os delírios individuais que o contexto
histórico nos impõe.
A associação com as personagens
de Kafka ficam óbvias na passagem de Zuckerman
por Praga, este mesmo sente isso e se compara tantas vezes às situações
labirínticas vividas pelas personagens do escritor tcheco, é como se ao
procurar contos escritos na língua judaica e adentrar em Praga fosse uma
espécie de redenção para nosso herói, especialmente por ele ter alguma
convicção própria no ato como espécie de “boa vontade”. O escritor de Roth quer
contribuir em algo, mas sua personalidade não permite e as situações envolvidas
naquela cidade tão distante não são nada mais do que sua ficção viva. Como
cobrir as lacunas que o perturbaram durante toda a vida, uma busca impossível.
Interpretar o passado e reestruturá-lo à sua vontade pode ser o triunfo dum
grande romancista, mas quando as pessoas ficcionais viram reais, aí reside um
problema.
Uma virada ocorre em Praga, Zuckerman não é mais a anomalia social
em meio a artistas tão perversos, quase obscurantistas do sexo, ele é alguém
gentil e letrado, diferente de sua fama nos EUA após escrever Carnovsky, paralelo evidente ao
exorcismo que Roth precisava fazer após O
Complexo de Portnoy.
Zuckerman está acorrentado às palavras, ao assunto sobre o qual se
debruça quando elege este para escrever, às memórias de como seu egoísmo
“destroçou” sua família (pelo menos é o que o irmão lhe diz, após o falecimento
do pai) e a um presente “exotérico”, onde o sucesso como escritor se mostra o
contrário de sua vida, hora perseguido por maníacos, ou dezoito meses com uma
dor tão insuportável que decide parar de escrever.Seus impulsos tanto criativos
quanto sexuais sempre falaram mais alto, talvez ai resida suas correntes.
Mas qual é o ponto dessas quase
seiscentas páginas? Zuckerman Acorrentado
não é o clássico romance de formação, mas uma investigação das motivações
individuais artísticas em primeiro momento, depois uma constatação da
banalidade que os famosos estão envolvidos e como os indivíduos aí são
esquecidos (não só Nathan Zuckerman,
mas a garota amante de Fidel Castro também sofre), a relação entre dor e não
bloqueio criativo e, no fim, a paranoia incessante que é o epílogo. Em diversas
situações Nathan se avalia
sarcasticamente, de forma auto depreciativa, afinal, havia se transformado em
um grande escritor, mas em uma boa pessoa?
Qualquer que seja o caminho
enveredado por Roth, sua marca já está entre os grandes da literatura, talvez a
considerável influência do labirinto kafkiano em sua prosa exagerada, cômica e
nostálgica, tenha realmente a ver com a realidade, principalmente judaica, na
construção de um país que está sempre nos noticiários, o maior império do
planeta. Se Dante estabeleceu em um jogo transcendental o inferno, o purgatório
e o paraíso, as coisas se confundiram um pouco após os grandes massacres
terrestres populacionais do século XX, e Zuckerman
enfrenta esses planos quase sempre ao mesmo tempo, entre seu harém sexual e as
dores que lhe fazem desistir de escrever. Um requintado escritor que especula
as possíveis variações do seu passado, sem objeto específico e com tudo ruindo
ao seu redor, talvez isso seja realmente arte.