Naquele tempo de burocracia, seus olhos procuravam a multidão que povoou uma vida exterior. Um submarino surgiu trazendo-a ao horizonte do devaneio; ser um eco que tenta aceitar o mundo após a morte, uma entidade se movendo no absurdo de um horizonte escuro cuja luz cintila ocasionalmente.
Eu encontrei nessa cidade devastada a alquimia que transforma mortos em vislumbres de consumo. Eu atravessei a ponte pensando em me jogar nos carros, sem calcular os estragos. Foi o sexo ou foi a Morte, foi sua partida ou foi minha separação que transformara cada rosto em fragmento brutalmente desconectado de qualquer contexto? Foi preciso criar um inventário de desertos para compreender que existe vida após a morte e que esta circula sem vozes ou aparições espirituais, mas como um sopro na consciência te convidando a contemplar uma Terra árida e deserta e sem vida.
Quando suspeitei que debaixo do rio existia o inferno, contei essa boa-nova como um poeta chora as cidades esquecidas da infância. Tanta coisa insurgiu em nossa pequena cidade que me foi impossível continuar na busca do elemento mais bizarro, o elemento que denuncia a total ausência de decoro. Demorei-me horas em palavras, trancado em um grande quarto vazio, para descobrir que tudo o que seria escrito seria ignorado e varrido pelo vento. Só com a certeza dessa exposição antagônica e improdutiva que pude fantasiar hinos em homenagem ao rio, agora morto.
Embaixo da árvore para onde caminhávamos quando éramos jovens e amigos. No dia em que seu irmão morreu, eu deixei de ser criança e você também, ambos tremendo sobre as profundas raízes dos troncos. As ruas largas, os jardins em frente às casas e seu olhar de desamparo perfurando-me. Nossa infância não durou muito, assim como a vida daqueles que cresceram por aquelas ruas. Eu te conjuro sempre que perco familiaridade nas ruas em que transito. Eu te amo por ter deixado de ser criança comigo.
Exigindo, de uma amizade morta, entregar o que ela não poderia frutificar. No aeroporto, você pensava em como tudo que acontecera era completamente insignificante, completamente sem vida. Passamos a vida transitando e fingindo minúcias para fortalecer uma ideia tão atrasada de nós mesmos. Gritando palavras ao vento, esperando que surja uma consciência universal da atrocidade que é ser humano e testemunhar o próprio declínio sem poder estender a mão como um último adeus.
Perguntas repetidas e uma concentração no elemento invisível do cômodo. Eu não conseguia dormir porque o passado entrava pelas frestas da porta, alegando a pessoa miserável que eu incorporara. Você aceita a mentira e vive através dela até que a realidade pare de fazer sentido e tudo seja dissolvido em seus poros, gritando por aceitação.
Aplausos para uma vaidade que era exterioridade pura. Aplausos catapultando um sorriso amargo de quem não sabe o que fazer. Quando se alcança o que sonhara, mas as raízes da infelicidade são tão agudas que não permitem uma movimentação brusca. O raio da morte impede visualizar uma nova redenção entre o mundo sempre pulsante de neon, cores dançando vivamente na calçada. Quando caminhar para casa, de mãos nos bolsos e cabeça baixa, restará aquela lacuna de desespero e incompreensão. Tentando aderir ao momento quando há uma ausência de vontade. Tentando caminhar para fora desta cidade e testemunhando um mundo de repetição que te impele ao distanciamento.
Nesta cidade eu convivo com os fantasmas dos meus delírios e paranoias. Eu convivo com a mentira da minha trajetória porque sempre soube que ela representava uma alusão a outras personalidades. As luzes cambaleantes, o céu escuro- eu sempre mantive um gosto amargo no canto da boca e que tentava esconder com delírios de satisfação e felicidade. Eu tentei construir histórias para evitar preencher minha casa com utensílios de vitórias alheias, mas nós sempre terminamos na varanda, conversando sobre os projetos fracassados. Quando minha vida passar, restarei feito as cinzas do meu melhor amigo. Alçado na indeterminação, mais um entre tantos signos esquecidos. Nesta cidade, cada superfície esconde uma impossível história de esquecimento.
Depois da morte, visita-me como um fantasma rondando uma casa abandonada. Largos cômodos vazios preenchidos de ressentimento e alusões a erros passados. Se este cheiro podre, de alguma forma, for lavado, ainda restará um desconforto de quem assombrou vidas alheias, tentando ser visitado por algum tipo de reencontro formal com o mundo. É apenas no abandono que tal visita é possível, mas, para tanto, é preciso recuperar o desastre como elemento-guia de uma existência deformada.
Meus atos de coragem, na verdade, foram atos de manutenção das minhas terapias imagéticas: o mundo seria um lindo celeiro em que se colheria a própria fortuna, construída a partir das canções de crianças deslumbradas com a paisagem, para tornar qualquer deslumbre possível novamente. Mas quando você disse que não conseguia mais, que ser adulto era se dar conta da incapacidade do deslumbre, eu simplesmente concordei. Ficamos assistindo à cidade e suas luzes, tentando descobrir qual elemento é possível de substituir o lugar vago deixado pela fascinação.
Deitei na cama torcendo para que o conforto pudesse amenizar a pulsação frequente de quem sempre está atrás de uma nova morte. De cabelos soltos e uma nova imagem para oferecer, retornei ao quarto em que você morreu para averiguar os resquícios na memória, andando pelo meu bairro, à noite, tentando encontrar salvação em versos estrangeiros. Teria de ser falada uma palavra completamente nova para atravessar o mundo e deixar para trás todos esses amuletos de nostalgia e saudade que nos prendem numa representação fatídica de um tempo morto, inexistente.
A noite é sempre muito longa quando atravessada sem proteção, exposto aos equívocos que esses grandes reinos propiciam aos frágeis humanos. Eu não tentei ser diferente, não tentei falar uma palavra nova ou descobrir maravilhas em cada intimidade. Eu atravessei como os pombos sujos sugerem; recolhendo migalhas e migalhas, resquícios de vidas alheias para superar uma eterna névoa que impõe um descampado em que todas as tentativas são congeladas. Quando tudo estilhaçou e não havia mais nada no Lar, o sopro dos cômodos vazios materializou um mundo destituído de afetos, permanentemente gritando por socorro.
Todos os meus sentimentos verticais. Não físicos. Não intencionais. Intangíveis. Verdades que eu nunca vou mostrar. Pratos platônicos balançam enquanto eu contemplo o noticiário. Bem-vindo ao meu universo. Comecei do vazio. E eu ainda parei nessa merda, em estágio de contradição perpétua. Quantas vezes eu vou mudar o meu nome? Isso é por todas as minhas desordens, pelos meus fracassos sempre expressos por pensamentos. Isso é muito pessoal. Eu deixei essas fraturas se desmembrarem enquanto eu viajava no tempo. Eu separo meus infinitos e eu divido realidades. Enquanto eu aceito a persistência da minha própria consciência, em momentos de introspecção surge a percepção que deixou uma impressão profunda:
você é, e sempre será, sua depressão.
A sua partida sempre pareceu tão certa e mais real do que as vezes em que estivemos juntos de verdade. Usei disfarces e trapassas para invadir sua intimidade, à medida que, nessa simulação absurda, passamos a criar um vínculo que me prendeu quando todos os agentes esquecidos na casa empoeirada sinalizavam que a desistência era necessária. A noite engolia os faróis. Os rugidos, de aviões próximos, recebiam uma clemência neurótica que eu julgava merecer. Quando retornei ao Lar, meus exercícios diários pareciam tão naufragados pelas lembranças generosas que você deixou. Perder-se na bondade não deveria ser a redenção de quem só vive através de disfarces.
O ser humano manteve um domínio sobre sua criação e nenhuma história de ficção científica ou fantasia sobre máquinas vivas e respiradoras poderia mudar isso. Eu mesmo fantasiei finais mais catastróficos do que esta rua sem fim em que passamos nossa infância: treinando para se defender dos próprios vizinhos, acordando paranoico com as pessoas que transitavam pela rua. Os pais não mantiveram domínio sobre os filhos e apenas restou uma desconfiança dos disfarces constantemente usados para encarar qualquer monstruosidade conjurada fora do Lar.
O ar frio não era propício à escalada. Voltamos na mesma estrada, ouvindo Our Mother The Mountain, como pais e filhos que transitam no desconforto e são reféns dos próprios desafetos.Voltamos ao mesmo lugar sabendo que era impossível começar de novo. Voltamos à mesma vida pela qual sentimos tanto desgosto. Encontrar os artefatos sagrados não vai nos devolver os anos de desgaste, perecendo enquanto esboçamos luta para que não pareçamos tão covardes.
As sirenes resplandeciam no lago enquanto meus pés, descalços, sentiam o frio da terra. Persenti olhos acusadores e crianças chorando abraçando mães tão indefesas quanto elas. Nas árvores, que sempre foram meu retiro, senti pela primeira vez, desde muito, o significado de ausência. Eu gritei torcendo para que a indiferença arbórea respondesse com alguma sabedoria. Não havia ninguém para quem retornar, então caminhei encarando a cidade como algo completamente desconhecido. Lembrei-me de meu melhor amigo andando de bicicleta por ela, falando sobre Tolkien e autores que nos empolgavam na época. Lembrei-me que ser criança era estranho e o absurdo de sua morte tornou todo aquele processo alienígena. Era como se acontecesse com outra criança. Era como se fosse num mundo invertido. Eu fiquei preso e calado nas paredes daquelas casas rasteiras. Acho que nunca sai daquele local e o que hoje responde por mim é o puro espanto de um mundo assombrado.
Naquele tempo, tudo se tratava de querer ser recebido por alguma visita miraculosa, compartilhar de um mundo inédito para que ele pudesse fazer sentido e pudéssemos nos abraçar numa sinfonia de reciprocidade. Mas essa missão foi abortada porque você morreu. Eu resido na eminência de sua ausência, compartilhando com o mundo seu eco em mim, para poder encontrar intimidade nas coisas desconhecidas.