Elliott Erwitt - ARGENTINA. Valdes Peninsula. 2001 |
Parte #1- Clique aqui
Quando tudo muda,as concepções
temporais infundem-se como nuvens aglutinadas preparadas para a precipitação. E
como só se acumula uma fileira de pressentimentos, eles depositam-se como
reais, afunilando expectativas como únicas realidades. Estas que, antes do
temporal, nem sequer existiam.
(um olhar que é só medo)
(um olhar que é só fascínio)
- Você tem de agradecer mais pelas coisas que você tem,
cara- disse Diego.
- Bem, você diz isso porque tudo tá tranquilo contigo, né?-
eu respondi.
- Você sempre acha que as pessoas não são tão noiadas nas
coisas que nem você.
- Claro que não. Cê que acha que eu acho isso.
- Eu não acho nada. Só calma, porra. Vai se trancar no
quarto por dias de novo não, hein. Pelo amor. Que cê fica fazendo tanto lá,
hein?
- Eu fico lendo uai.
-...
- E cê sabe que eu gosto de criar. Mesmo que não saia nada.
Fico digitando umas palavras, esboçando umas coisas..
- Escrevendo, porra.
- É isso aí.
- Experimentos criativos do doutor Justini... Mas cê tem,
tipo, uma coisa específica, um projeto, um livro?
- Eu começo uma monte de coisas e uns dois meses depois acho
que tá tudo ruim. Deixo de lado. Nunca mais volto. Cê é bom em terminar as
coisas?
-Eu só sou bom pra ouvir música o dia inteiro, bicho. Mas
isso não dá pra fazer. Cê ouviu o último trampo do Sean Bowie?
-Nem.
-Vai lá em casa qualquer hora ouvir, ou eu passo na sua.
- Tô sem caixinha de som lá.
- Eu vou começar a lavar uns pratos lá no municipal de Santo
André. Dá pra por você pra dentro. Tirar uma grana extra e coisa e tal.
- Cê lembra se essa trilha dura muito mais?
- Acho que a gente tá quase lá.- uma brisa forte e gelada
passou. Diego fechou os olhos e apertou a face- Melhor se preparar que este
inverno vai ser foda.
- Eu vou é pegar meus casacos e torcer pra que dure a vida toda.
- Ah, pronto... Quando a gente vai voltar a ler aquele livro
da Lygia? Aquele que a gente lia junto... O Quarto Verde? Não lembro o nome
- Acho que é Quarto Verde mesmo. Um de contos né?
- Isso
(ventos que me traziam à mente uma praça e um boteco na República)
Aquela felicidade de conversar com Di invadia-me e
preenchia-me de maneira surpreendente. As árvores latifoliadas que fechavam a
trilha, tornando-a quase claustrofóbica. As palavras sempre certeiras do meu
amigo. Meio evasivas, talvez. Mas com certo tempo de amizade, a gente aprende o
que os silêncios tendem a significar. Aquela inautêntica felicidade corajosa.
Empenhada em interromper os sucessivos ciclos realistas, que executavam
qualquer coisa como esperança ou afins. Aquela felicidade surgindo do assobio
dos insetos, das frestas entre as árvores, do rio invisível que nos lembrava de
sua presença através do prolongado chiado aquático. Para tudo aquilo não havia
explicação. Era uma saturação de imagens e sons pacíficos que rendiam um bom
plano de fundo a qualquer conversa entediante. Aquele coração não suportava
tudo aquilo sem tentar expressar o enxame de possibilidades. De repente, o
mundo abria uma fresta passível de preenchimento completo. Tudo era possível. E
o medo que eu tinha -quer dizer, o medo da realidade- sucumbia. Ele ficava de
fora, aguardando-me terminar a trilha para voltar a ser alguma coisa palpável. A
noite passada ,em que eu vomitara nas paredes brancas e tirei minhas roupas
para ver se o chão gelado conseguia acalmar-me, ficava para trás. Como se ela
houvesse sido uma exceção e somente o amontoado verde-escuro sob um céu cinza
existisse. Porque aquele ambiente seco e meu amigo eram tudo. Minha garganta
ficara um deserto. Eu olhara assustado a parede inundada com meu líquido
interno. A pasta dental com a ponta para fora da pia. Todas as letras que eu
deveria ter dito embalsamadas no quarto num líquido fedido. (eu deveria ter
dito que amava Di, que sua companhia era um alívio de tudo; eu deveria ter dito
às pessoas em vez de esperar que elas adivinhassem os sentimentos que eu deixei
subentendidos). O sentido perfeito dos assobios dos insetos voltava à tona de
novo, mais vivo do que nunca, recuperando-me indiretamente do quarto e do
angustiante fedor do próprio vômito.
Apesar de ser muito tarde, eu estava acordado e disposto.
Determinado em procurar um emprego, em limpar meu quarto e pintá-lo. Ocupado ,pensando
nos planos enquanto a profundeza da noite desafiava a claridade mercurial dos
postes. E eu seria forte durante toda a primavera, porque quando se tem nada é
possível ocupar o espaço com fomentações superlativas.