“The general public has long been divided into two parts; those who think that science can do anything and those who are afraid it will.”
― Thomas Pynchon, Mason & Dixon
Por mais de quatro décadas, desde a estréia de Thomas Pynchon em V (1963), há uma pergunta bastante básica que vem rondando sua literatura ambiciosa: há algo no Mundo que escapa dos tentáculos originados na desordem e na conspiração? Suas famosas sátiras apresentam uma debochada superfície na qual reside um Oceano analítico que ambienta o leitor no puro (e inexplicável) caos.
Toda a vasta produção crítica sobre a obra de Pynchon aborda, principalmente, a paranoia contemporânea e indivíduos lançados no caos puro da entropia pós-moderna: no bom português, um verdadeiro deus-dará em que as pessoas estão numa impositiva luta individualista sabe-se lá pelo quê, exatamente. Em Mason & Dixon (2004, no Brasil), ele explicitamente une polos distintos (o iluminismo científico e o desespero) para ambientar outra história monumental de dois indivíduos (que levam os sobrenomes do título) que têm de traçar uma linha que dividiria todos os EUA em norte e sul. É o primeiro (e único, até então) livro de Pynchon em que ele deliberadamente lida com fatos reais. Claro, nenhum tipo de historicismo científico iria intrometer-se nas fábulas do escritor: animais-falantes, fantasmas, (alienígenas?), física-quântica etc. enchem as mais de oitocentas páginas do livro em um ambiente rico e singular antes da revolução norte-americana.
No entanto, a prolixa narrativa divide-se em vários capítulos em que cada um deles conta a história a seu modo. Sob uma examinação mais aproximada, Mason & Dixon pode ser entendido como o que atualmente é proclamado "romance enciclopédico". Entre tantas coisas que o livro parece tratar, atraiu-me muito a noção de "narrativa vazia". Explico: uma vez que o desenho narrativo é moldado a partir de diferentes oralidades e modos de contar uma história Universal, a narrativa-em-si é colocada em questão não somente quanto à sua veracidade, mas quanto ao apelo popularesco que a ficção atrai no imaginário social. Afinal, o livro é todo contado a partir das memórias de um reverendo.O Vazio latente que tem visitado toda a literatura de Pynchon agora é incorporado pelo absolutismo histórico. Apesar desse incorporamento, o elemento "verdade" está mais fluído do que nunca e toda a tradição literária (desde escrituras sagradas às canções populares) é alienada pelo desespero que usualmente guia as personagens de Pynchon . Nesse sentido que o escritor recorre a uma irmandade de dois heróis históricos e, através de uma sátira digna de Dom Quixote e Sancho Pança, atribui à imortalização totalizadora o desesperado caráter humano
Além de todo o caráter que dissolve história e imortaliza o banal, Mason & Dixon é um romance sobre a morte. Para Pynchon, nenhum tema é incompatível e durante as décadas que o livro trata desfilam as mais variadas personagens dos mais inusitados aspectos: filósofos, cientistas, cristãos, nativos, astrônomos, agrimensores, escritores, reis, servos. São bem duvidosas as veracidades das histórias contadas pelo Reverendo Cherrycoke (ele quem narra as aventuras de Mason e Dixon para uma família cuja casa ele está hospedado) e intercalando sua narrativa tem-se constantes diálogos entre os membros do clã sobre os mais diferentes ângulos da epopeia narrada. Se algum escritor pode aprender algo com Thomas Pynchon é de que a literatura não deve intimidar-se com os limites impostos pela realidade e que as páginas em branco são receptáculos de uma escritura impossível, de um terreno não-sagrado em que você pode transcender a mística objetiva. Para Pynchon, esse monumental preenchimento não serve para ocultar o vazio, mas para nos darmos conta de sua vastidão perpétua e que cada fresta da realidade vela uma não-verdade cuja manipulação somente pode ser especulada. Nessa lógica, a produção artificial (a literatura fictícia) ultrapassa o mero objetivismo realista para autenticar algo que estava oculto e que ganha vida sem perder seu caráter camuflado, mas cujo campo magnético afeta tudo ao redor (desespero, caos, depressão, teoria da conspiração, luto etc.).
Porque Mason está num luto perpétuo com a morte de Rebekah, sua ex-esposa, ele é atravessado durante todo o romance com aparições dela (se é fantasma ou realidade não me fica claro) em um surrealismo bonachão em que Pynchon não hesita em nenhum momento ao misturar melodrama sentimentalista com o mais profundo escárnio já tradicional em sua escrita. Esse constante estado-sonâmbulo de Mason assemelha-se atavicamente a Édipa Maas, protagonista de O Leilão Do Lote 49 (1993, no Brasil). Para Pynchon, o modus operandi dos EUA é justamente uma automatização absurda que exclui os paranoicos (Mason e Édipa) de qualquer contorno realizável cujo aroma persista nalgum sentido-maior. A busca incessante por conspiração é uma autoatribuição de sentido num Mundo que radicaliza e exclui o que ameaça sua constituição racional. Ainda mais: de que suas próprias figuras históricas ficaram submetidas ao fascínio pelo real que, em seus momentos íntimos mais relevantes, elas estavam simplesmente divagando por aí, sem nenhuma razão específica. Figuras bizarras são as únicas capazes de provocar um movimento significativo no Mundo, para Pynchon. Só através dessa metástase que a Natureza pode revelar-se. Os mais diferentes tipos de crenças mundanas passam por Mason & Dixon (do feng shui à gastronomia gnóstica) para interromper o movimento de mobilização completa. Sua ficção é "ao contrário": parte-se do mais banal vestígio humano para atingir uma Natureza cuja identidade jamais revelar-se-á.. Nada é capaz de deter suas personagens em suas obsessões paranoicas porque elas são as contra-engrenagens que não permitem que o Mundo caia na Luz pura.
No entanto, é apropriado lembrar-se de que a persistência -sem motivo aparente algum- dos protagonistas para traçar uma linha impossível no longuíssimo território norte-americano é o que os guia nesse mundo sinuoso de fáceis distrações. Nesta longa caminhada, observa-se a ruína objetiva de um EUA pré-revolução: venda de escravos, massacre indígena, disputas armadas por territórios etc. Talvez justamente em função desse apelo realista mais evidente do que em outros trabalhos que Pynchon denota suas personagens com um senso trágico emotivo, notadamente mais sensivelmente descritas do que as pessoas que povoam sua obra. A facilidade que o livro apresenta ao leitor dá-se através do pacto em que a realidade é a porta-de-entrada, mas toda a confabulação que verdadeiramente importa num romance é estruturada por movimentos obscuros, calculadamente inexatos.
O próprio Pynchon lembra-nos de que na vasta inexatidão há muito sobre o que se teorizar e confabular. Não apenas o orgulho de "vencer" um livro cuja linguagem vai do mais amplo eruditismo , com verdadeiras passagens experimentais, à sátira apocalíptica-, mas os desdobramentos intimistas & sentimentais condensam-se de forma que Pynchon adere um terreno único entre o sentimentalismo, a neurose, a paranoia e o caos. O argumento, usado até por Jonathan Franzen, de que sua ficção é mera hipérbole tecnicista não encontra fundamento algum ao ser deparado com a densidade investigativa de Mason & Dixon. A constatação de um vazio impenetrável não afasta o escritor do que ele julga ser seu dever: sinalizar um mundo caótico cujo processo de autodestruição iminente é, paralelamente, catalisado e interrompido pelo frenesi humano. Para mim, em linguagem simples: um vazio sobre o qual vale a pena testemunhar.
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