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domingo, 25 de fevereiro de 2018

novo #1

Você disse que não sabia o que dizer e eu disse que tudo bem. Eu não sei, eu ainda estava presente enquanto suas atitudes demonstravam outros interesses, outras pessoas. Você disse que tinha muita coisa para fazer, indicando com os olhos revirados que não queria minha presença . Eu tinha medo de que tudo estivesse se desmanchado. Não medo por nós. Um medo mais abrangente, um medo de tudo que pingava e contaminava a insistência de existir, um medo de que Betel pudesse partir sem se despedir e ficássemos presos um ao outro enquanto você preferia ficar sozinha. Noites em que eu fiquei acordado feito um idiota, precisando de atenção como quem precisa de oxigênio. Em uma dessas noites, fui observar a rua camuflado pela janela vítrea da sala-de-estar. Um homem com uma arma estava em pé diante do portão da casa do vizinho da frente. Eu sei que as pessoas podem ser cruéis, mas decididamente não esperava por aquilo. O ódio parecia-me uma coisa secundária e não a motivação principal. Isso eu só vejo agora que estou preso aqui. Eu estava cego naquela época em que não sabia que ódio entre irmãos é mais do que comum. Agora eu consigo pressentir que a cena daquela noite podia ser antecipada pela face sem-temor daquele homem. Os disparos lembraram-me da minha futilidade, da minha vergonha ao deixar que coisas simples desmanchassem belezas potenciais. Na verdade, a lembrança dos disparos que me remetem a isso. Naquela hora da noite, não sabia o que fazer sob dois barulhos altos e secos e precisos. Quando voltei a olhar pela janela, o portão estava indo e vindo com a força do vento enquanto um corpo bloqueava aquele movimento. Só eu e Deus éramos testemunhas. Ainda bem que você resolveu partir. Ou ainda bem que eu entendi pela irritação subliminar dos seus olhos que só poderíamos viver distantes. Que eles eram a decodificação imponente do que distância pode significar.

O corpo inerte. É impossível despertar em uma cidade feita de exílios.

"Aurora" -Anselm Kiefer

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