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terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Ricardo Donoso - Saravá Exu [2015]

Penso em Saravá Exu com um disco de retaliação. Um álbum que tem seus ambientes cuidadosamente estruturados para serem esmagados depois. Reduzidos em pó. Penso em cada renascimento e cada rompimento como poesia, como a aniquilação da estagnação. Nasce a beleza e o perverso absurdo. Uma histeria tensa que é produto de uma enorme inquietação por parte de Donoso, onde se especula ciclos que convivem com as pluralidades disformes que caracteriza a sonoridade.

As abrangências dos temas de Ricardo, e a sonoridade sofisticada, convergem para a sensação contínua de rompimento. Pensamos até que ponto ele consegue esticar esse elástico e experimentos, cada passagem como uma volúpia de desencontros. É um não reconhecimento de ambiente que, lentamente, se transforma numa abstração que é a única demonstração possível. Eu evito ler qualquer coisa sobre discos antes de ouvir e com esse não foi diferente. Aqui temos um distanciamento da pessoa Ricardo e tentativas árduas de uma conexão com uma espécie de vazio onisciente. O fenômeno das coisas. Fico com essa impressão porque é, indubitavelmente, um disco de persistência e perseguição. Mas a formulação que cada empreitada busca, em consequência de uma necessidade de continuação, soa incompleta. Não podemos deixar de relacionar o “ritual de busca” que é esse disco com os Exus e Pombagiras, que são as entidades da Quimbanda mais próximas aos humanos. E é nessa proximidade (onde elementos iminentes me remetem à sensação poética que falei no primeiro parágrafo) que reside a força maior do álbum- uma incessante busca, apesar de sua impossível conquista.

A ênfase em um “tema” em cada faixa, onde a repetição caracteriza esse vetor de busca incessante. Uma estratégia, porque cada faixa é o sintoma da condição que Donoso estigma esse disco- o ponto de bifurcação entre suas procuras enquanto “indivíduo perdido” com o mundo externo, sensorial e tangível. Assim como os Exus. Essas iterações ecoam abordagens mais radicais, em meio às manipulações eletrônicas que propositalmente rompem (utilizando ruídos, distorções, etc.) qualquer esboço de linearidade. É preciso dizer, por tantos avanços e recuos, que não há um “gênero” próprio que Donoso se ancora. Mas como qualquer artista que busca autenticidade, essas precipitações inclassificáveis que saturam a obra em devaneios, rompimentos e (des) encontros.

As mudanças bruscas de Saravá (como o processo de retaliação que mencionei no começo do disco. Aliás, esse processo é mais uma transcrição, uma realocação de um espaço fechado –mundo- para algum lugar menos árido) intensificam a sensação de desamparo. As alterações graduais de volume, os sons “primários”- esses métodos incomuns (que cada vez mais estão sendo utilizados) e, de certa forma, desconfortáveis, estimulam a perseguição. Caça essa que atinge o auge em Diluculum, onde uma imensa massa sonora coexiste com um ambiente convidativo. Sem dicotomias simples, essas variações são como o sistema nervoso que percorre a meditação de Donoso.


É nessa tensão que vibram as possibilidades, nas diversas inversões que formulam um ciclo de, basicamente, erros. Não há a exclusão entre “ser” e “mundo”, e é em manifestações como as de Saravá Exu que há uma espécie de compartilhamento (e aí o exilado, após anos de perambulação e reflexões, pode se maravilhar com a simples existência das coisas). Em uma época que os assujeitamentos  e padrões instituídos ameaçam a simplicidade e beleza do exílio, Saravá Exu é uma indagação necessária e urgente. Ricardo Donoso não banca uma busca com  perspectiva definida, mas a esperança para que ainda exista uma perspectiva. Os Exus procuram, então, um retorno a uma humanidade essencial. Esse álbum é o terreno de chegada, o momento de espera num período de uniformização e sepultamento do alheio e do disperso, onde as técnicas e resultados que determinam o jogo. Já é muito esquisito fazer uma metáfora de jogo, então é melhor se amigar desses demônios e expurgar essa compulsiva devoção à claridade.

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