Penso em Saravá Exu com um disco de retaliação. Um álbum que tem seus
ambientes cuidadosamente estruturados para serem esmagados depois. Reduzidos em
pó. Penso em cada renascimento e cada rompimento como poesia, como a
aniquilação da estagnação. Nasce a beleza e o perverso absurdo. Uma histeria tensa
que é produto de uma enorme inquietação por parte de Donoso, onde se especula ciclos que convivem com as pluralidades
disformes que caracteriza a sonoridade.
As abrangências dos temas de
Ricardo, e a sonoridade sofisticada, convergem para a sensação contínua de
rompimento. Pensamos até que ponto ele consegue esticar esse elástico e
experimentos, cada passagem como uma volúpia de desencontros. É um não
reconhecimento de ambiente que, lentamente, se transforma numa abstração que é
a única demonstração possível. Eu evito ler qualquer coisa sobre discos antes
de ouvir e com esse não foi diferente. Aqui temos um distanciamento da pessoa
Ricardo e tentativas árduas de uma conexão com uma espécie de vazio onisciente.
O fenômeno das coisas. Fico com essa impressão porque é, indubitavelmente, um
disco de persistência e perseguição. Mas a formulação que cada empreitada
busca, em consequência de uma necessidade de continuação, soa incompleta. Não
podemos deixar de relacionar o “ritual de busca” que é esse disco com os Exus e
Pombagiras, que são as entidades da
Quimbanda mais próximas aos humanos.
E é nessa proximidade (onde elementos iminentes me remetem à sensação poética
que falei no primeiro parágrafo) que reside a força maior do álbum- uma
incessante busca, apesar de sua impossível conquista.
A ênfase em um “tema” em cada
faixa, onde a repetição caracteriza esse vetor de busca incessante. Uma
estratégia, porque cada faixa é o sintoma da condição que Donoso estigma esse disco- o ponto de bifurcação entre suas
procuras enquanto “indivíduo perdido” com o mundo externo, sensorial e
tangível. Assim como os Exus. Essas iterações ecoam abordagens mais radicais,
em meio às manipulações eletrônicas que propositalmente rompem (utilizando
ruídos, distorções, etc.) qualquer esboço de linearidade. É preciso dizer, por
tantos avanços e recuos, que não há um “gênero” próprio que Donoso se ancora. Mas como qualquer
artista que busca autenticidade, essas precipitações inclassificáveis que
saturam a obra em devaneios, rompimentos e (des) encontros.
As mudanças bruscas de Saravá (como o processo de retaliação
que mencionei no começo do disco. Aliás, esse processo é mais uma transcrição,
uma realocação de um espaço fechado –mundo- para algum lugar menos árido)
intensificam a sensação de desamparo. As alterações graduais de volume, os sons
“primários”- esses métodos incomuns (que cada vez mais estão sendo utilizados) e,
de certa forma, desconfortáveis, estimulam a perseguição. Caça essa que atinge
o auge em Diluculum, onde uma imensa
massa sonora coexiste com um ambiente convidativo. Sem dicotomias simples,
essas variações são como o sistema nervoso que percorre a meditação de Donoso.
É nessa tensão que vibram as
possibilidades, nas diversas inversões que formulam um ciclo de, basicamente,
erros. Não há a exclusão entre “ser” e “mundo”, e é em manifestações como as de
Saravá Exu que há uma espécie de
compartilhamento (e aí o exilado, após anos de perambulação e reflexões, pode
se maravilhar com a simples existência das coisas). Em uma época que os assujeitamentos e padrões instituídos ameaçam a simplicidade e
beleza do exílio, Saravá Exu é uma
indagação necessária e urgente. Ricardo Donoso não banca uma busca com perspectiva definida, mas a esperança para
que ainda exista uma perspectiva. Os Exus procuram, então, um retorno a uma
humanidade essencial. Esse álbum é o terreno de chegada, o momento de espera
num período de uniformização e sepultamento do alheio e do disperso, onde as
técnicas e resultados que determinam o jogo. Já é muito esquisito fazer uma metáfora
de jogo, então é melhor se amigar desses demônios e expurgar essa compulsiva
devoção à claridade.
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