Há pouco menos de um mês eu falei
sobre o primeiro EP que Cássio lançou esse ano, Dias, e de como me inquietava o
que os músicos contemporâneos (principalmente os ligados ao noise e suas variações) tinham em mente
quando criam suas obras, muitas vezes estas, o contrário de conceitos chulos e
clichês como “música orgânica, fluída, sólida, etc.”. Se em Diário, Figueiredo
já não se subordinava às execuções simples –inclusive “desobedecendo” a
temporalidade suposta na nomeação das músicas- em Dias temos esse rompimento
transcrito de forma concreta.
Os dias transcorrem mesmo de
forma segregada, disparates que são impossíveis de “justificar”, “conceituar”.
Isso seria domar o “tempo” e reduzir o poder iminente de cada momento. Por isso
os cortes bruscos, a superfície inconstante e alta- é difícil situar com
precisão, é complicado tentar encontrar a ligação que torna uma explicação real
possível. Só há reminiscências do que entendemos por realidade e a forma que se
pode absorvê-las para transformá-las em algo que ecoe. Não uma apreensão que
tente copiar o que aconteceu- mas uma forma de massa sonora que seja
consequência dos dias. Para isso Cássio utiliza memória e imaginação. E
criatividade.
Assim como o decorrer dos dias,
os elementos aqui parecem dispersos. Reúnem-se, depois somem. Essas mesmas
“aparições” foram realizadas em Diários,
só que nesse EP os fragmentos estão mais dispostos e mais variáveis, até. E a
imposição de tantos sons periféricos integram lembranças, reminiscências e
certa aleatoriedade. É a vastidão interna que Cássio compõe- as contradições
cognitivas que nos possuem no passar de uma medida (no caso, o tempo). Temos
uma análise final, de qualquer forma; aquele terreno descentrado onde
reconhecível e irreconhecível se convergem tanto que passamos mais a acreditar
no que é imediato. Essas frequências acusam, então, uma confusão mental que Figueiredo
espelha em forma de retratos sonoros e imagéticos- as ondas, as músicas, as
vozes.
A não divisão em faixas torna
ainda mais aberto ao ouvinte à transferência destravada de memórias que
caracteriza Dias. Como a partir de um minuto e quarenta, onde uma imensa onda
sonora surge vibrante, para depois se aquietar. É um fluxo de lembranças e esse
fluxo tem suas marés. Isso torna o “surgimento” (em qualquer das suas formas;
ruídos, distorções, melodias chiadas) a característica principal dos registros
afetivos de Figueiredo. São portais da percepção que preenchem toda a escuta
com “entradas” e “saídas” tão surpreendentes que não podemos constatar
exatamente onde começa e onde termina. Confiar “apenas” no modelo intuitivo e
suas deliberadas maneiras de criação- e ainda assim produzir texturas tão
incisivas e intensificadas- garante uma liberdade cuja qual Cássio tem
discursado em todas suas gravações.
Fala-se tanto sobre “interioridade”
e “personalidade” na criação da música contemporânea, que muitos se esquecem de
que o que realmente está em jogo é o que “suporta” conceitos tão poucos
expressivos. Figueiredo utiliza sons para questionar sua própria construção
como indivíduo e se baseia em mundo próprio que, às vezes, parece um exílio. A
memória é usurpação também, não nos esquecemos. Dos outros e da nossa
confabulação. O que resulta em uma dissonância que aperta a concepção de “entidade”
contra a parede. Uma espécie de apropriação desorientada e, em certo ponto,
mística.
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