Se o sofrimento é matéria-prima
para muitas obras, então estaria Bjork
jogando os mesmos jogos? Vejo esse disco como uma casca fechada em torno de si.
É um lançamento que exige um rito, um comprometimento dos ouvintes. Ele não se
desenvolve sozinho. As sessões de corda trabalham com os elementos eletrônicos,
coexistem, porém com finalidades talvez não tão óbvias. A primeira faixa já
antecipa a catarse posterior, Bjork
vem com sua voz alta e desequilibrada, em ataques constantes- contra o coro de
vozes, contra o violino perdido, em conjunto com o ambiente construído pelo
acompanhamento eletrônico. Em Vulnicura,
apenas duas faixas não tem mais que seis minutos e ao longo dessas nove
músicas, nós encontramos uma coleção bem considerável onde o “etéreo” das
cordas é envolvido por uma aura eletrônica, produzida pelo sempre competente
Arca. Soa como um absoluto estilhaçado, decodificado e arrastado durante
praticamente uma hora pela visão esperançosa e caustica de Bjork.
Que solidão e coração despedaçado
são temas comuns no pop não temos dúvida, a diferença de Bjork é que ela tem uma perspicácia muito poética no tocante a
esses assuntos (poética como iminência, como rompimento do mundo planejado e
arquitetado). Se para Martin Amis a
literatura é uma guerra contra o clichê, podemos dizer que ela encara a música
do mesmo jeito. Bjork versa sobre os
abismos não do ponto de vista da autoajuda barata que corrói o pop
contemporâneo, mas sob a perspectiva de estar “inteira” e “quebrada” ao mesmo
tempo. São situações limítrofes, pois o eu lírico tem emoções sem limites, teme
as obsessões apocalípticas das pessoas que lhe cercam. Gera muito desconforto
essas constatações, um mundo ruído em um ciclo sem fim. Ao mesmo tempo em que a
voz de Bjork se ergue com uma paixão
enorme, ela ao mesmo tempo tem raiva, se submete, é desequilibrada. Ela é um
dos raros exemplos de como manejar a voz sob seu tecnicismo e mesmo assim não
perder a carga dramática que sua música exige.
As cordas sustentam o “sofrimento”
de Bjork, e as partes eletrônicas existem
como contraponto e, às vezes, tomam controle. Uma “redução” a esses dois
elementos e o atrito constante (a batalha constante de Bjork para sair de um estado de miséria e solidão) configuram o
embate de Vulnicura. Essa espécie de
redução violenta das estruturas formuladas da música comercial, uma alquimia em
que ecoa uma liberdade indesejada pela artista, afinal, o que se fazer com a
liberdade quando não há a possibilidade de redenção? Isso me deixa exausto,
desgastado e é realmente um disco sobre desgaste. Não é como se o disco fosse focalizado
nisso. Mais parece que é o rumo inevitável para a cantora. A intensidade das
revelações de Bjork tornam as
audições em um rito de angústia, um retorno à memórias não queridas e
dolorosas. Cada música em si já tem seu peso, mas juntas, elas ficam
excessivamente pesadas, ancoradas em um porto solitário, abandonado. Não há
salvação, não há redenção. Não terá música acessível, não terá um escape- esse
ambiente está carregado por uma alma vazia, um ente que vaga pela ruína das
imagens, pela impossibilidade das palavras, pelo lago negro e gelado. Essa é a
obra mais pesada e densa de Bjork, a
que mais abusa de estruturas não convencionais também. Mas ela não faz isso por
mero experimentalismo, mas parece uma exigência de algo que antecede ela mesma
ou sua fonte criativa. Mesmo nas partes em que parece que as nuvens vão se
abrir e tornar o tempo mais calmo, nós temos a implantação de dúvidas, temos a impressão
de que nada será o suficiente, de que nossos esforços foram idiotas.
Vulnicura é um imenso corpo sonoro, cujas fraquezas emocionais são contrárias
da edificação instrumental. As intricadas texturas colocam toda pressão sobre
uma desorientada Bjork, em um deserto
que parece interminável. Isso explica sua exaustão, seu longo período- temos um terreno
em que as combinações abafam o sujeito em medo, desconhecimento. Enfim, morte. Vulnicura não apresenta nada “essencialmente”
novo para quem acompanhava a carreira de Bjork. Mas é a maior exploração do
sofrimento que a cantora já fez. E isso já é muito, muito pesado.
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