O Kovtun lançou um dos meus álbuns favoritos no ano passado, pela “desolação”
e repetição de temas. Ocorre, em Androginóforo
, o oposto. Aqui vemos uma obra mais aberta do que a saturação da antecessora,
aqui temos mais desvios e inquietações- isso provavelmente em função de que
cada uma das quatorze faixas tem participação especial. Aqui as medidas são
destroçadas, pois cada movimento-canção é uma afirmação e negação da faixa
antecessora. Afirmação porque reconhece sua unidade, negação porque busca
outras expressões. Estamos, ao invés da uniformidade de Sleepwalking Land, em um local onde não há controle e cada imanência
irrompe e se estrutura em suas próprias aflições, em seu próprio instrumental.
Poderíamos pensar, “mas com essas divisões, não seria melhor ouvir o disco
íntegro de cada participante? Como encontramos um núcleo criativo do próprio Kovtun?”. Mas não são objetivamente
divisões, são blocos de um mural gigantesco (o disco tem uma hora e meia), e as
próprias controvérsias dessa estrutura garantem a unidade de cada participante.
O disco não seria o mesmo sem as aves e o barulho absurdo na colaboração com o
Godpussy e assim por diante. A abertura, então, está na vastidão que o ouvinte
tem que encarar, assim como na ambição do disco e suas múltiplas facetas- é
mais difícil, assim tão recortado, e provavelmente mais recompensador.
As variações desafogam e trazem
repentinas e interessantes mudanças de estrutura, talvez a única forma de criar
um disco tão grande seja apostando tanto nas bifurcações de gêneros mais “densos”.
Pois eles próprios são radicais às suas maneiras e demonstram alicerces mais
dinâmicos do que a simplista nomeação de “barulho”. Com meu quarto devidamente
fechado, são fascinantes os “empréstimos” imagéticos que as músicas me
proporcionam, seja nas mais econômicas (ou a primeira parte, como imagino uma
divisão estética) ou a segunda, que agride mais. Penso, porém, que elas se unem
porque são como defuntos procurando um terreno mais hospitalar, e por isso
tamanha difusão sônica e necessidade agressiva, o corpo já sabe que o mundo
aparente, essa tal de “realidade”, não serve mais. Precisamos respirar em
outros lugares. Nossa mente pode se atrever a isso se nos relacionamos com esse
disco da forma que ele merece- sem uma “necessidade” anterior, porque as microestimulações
vão jorrar com cada canção e terminar com elas também.
E ouçam isso alto. Pois há aqui
uma espécie de “grito” anônimo que ecoa em cada base distorcida, cada repetição
que aumenta e cada acidente que topamos. É um disco que versa sobre uma dor que
é impossível de especificar, uma inquietação constante que fez com que Mandra (ele é o Kovtun) decidisse reunir esses nomes e nos oferecesse tamanho corpo
que registra uma época bem importante de nossa música independente (aqui eu
estou assumindo as motivações por trás do disco). O ambiente enclausura e rompe
com uma organização mais “meditada”. Ao mesmo tempo em que temos aberturas instrumentais
que nos deixam mais a vontade até mesmo para divagar, as pancadas dessa parede
nos deixam estáticos. Não há uma limitação da experiência, apenas uma força
própria que não permite titubeação. São músicas que exigem sim atenção e
apresentam camadas que merecem ser ouvidas muitas vezes. Falei sobre a “possibilidade
de divagação”, mas não quero diminuir nada. É um disco perturbador. São
barulhos agressivos, são estruturas que nos confundem, na maioria das vezes.
Eu evitei ler qualquer coisa
sobre o disco anteriormente porque queria deixar aqui somente minhas sensações,
minha experimentação. Por exemplo, o nome das músicas, aparentemente
científicos, o que querem dizer? Aqui eu volto à parte que questionei o porquê
de um disco em que todos os faixas têm participação de outros artistas. Não há
resposta, na verdade (para o nome das músicas). Eu poderia ter falado também
sobre as variações e os “gêneros” que esse disco atravessa, mas imagino que tags reduziriam a inauguração que
Androginóforo propõe. É através da escuridão que envolve todo o disco que,
talvez, podemos encontrar algo mais simples, para podermos nos maravilhar com
cada “surgimento” (e não começar a questionar o porquê do nome das músicas, ou
o porquê das participações). Androginóforo é um experimento do Kovtun, mas também uma afirmação. Sem
objetivo aparente, ele se ergue e exterioriza que há uma música significativa sendo realizada no Brasil que não é
demonstrada em charts, na Wire ou qualquer outro veículo. Mas que
ela existe e é substancial. Que ela não hesita e que ela não se explica- ela só
pode atravessar e ser atravessada. Espero que essas irrupções aconteçam com
quer ouvir o disco. Comigo aconteceu.
Nenhum comentário:
Postar um comentário