O que é original já não tem
importância. E nem sei se algum dia teve. E nem sei o que é originalidade.
Passo dias vasculhando bandcamps e soundclouds para encontrar algo que eu
gosto. Não tem que dizer nada. Não precisa dizer nada. Tem que me agradar. Tem
que desafiar meu senso comum e causar um deslocamento. Não me refiro às
originalidades, portanto. Refiro-me a deslocamentos. Enquanto ouvinte, enquanto
arte. Meu quarto é uma discoteca. Meu quarto é uma discoteca de música pop e
experimental. Meu quarto é tudo entre esses polos. Os sons saem das caixas, meu
senso comum é agredido. Meu quarto é uma máquina que recepta divergentes
estéticas e as reproduz sem nenhum fim específico a não ser causar o
deslocamento que falei. Falo sobre deslocamentos parado, digitando, num mundo
onde as supostas “pós-modernidades” irrompem como confusão. São muitos
conceitos, são muitas tags, é um
excesso que reverbera a não pertença. É um excesso que excluí, mas também
paradoxalmente é o único excesso que pode me recuperar. Sem excesso não há
mundo possível e passaríamos a existência como Kasper House. É um excesso que permite descobertas. Descobertas
como Kokoro, como a tão nomeada vaporwave,ou qualquer designação que se
encaixe nesse mundo. “Nunca antes na história da humanidade houve tanta
apropriação cultural”, disse Neo. Tudo é possível. “Remixar não é criar”. “Arte
não é cópia”. Mas quais as definições de criar? Minha mente é um complexo de
conceitos, minha mente recepta e redistribui. A internet é uma plataforma. Não
há uma raiz. Estamos complexados e bêbados nessas estruturas- estamos bem,
então.
Assim, temos tecnologias dispostas
o suficiente para proliferar diversos remixes, estes podem ser analisados a
partir da criação através da percepção e sensação artísticas do criador, ou
para um conceito sólido e objetivo, ou para esferas mais abstratas e subjetivas
e tudo entre esses opostos. Diversos gêneros vão contribuir na criação de uma
nova ambientação que pode até discordar radicalmente da estética que eles eram
a priori, isso tornam o próprio meio nocivo e distorcido, intencionalmente desvirtuado
e uma reintegração à reapresentação sonora de quem pesquisa. O que se torna
interessante no Mobile Suit Belial é
a forma fluída que diversos elementos das mais variadas culturas no Brasil, o funk internacional, junto com animes
japoneses, se integram e refletem que apesar de praticamente incompatíveis em
primeira instância, seus significados primários são violentamente trucidados
por quem os redistribuí (isso é, obviamente, mais uma homenagem e um
atravessamento do que qualquer espécie boba de “destruição”).
O material de origem em discos “vaporwave” é o elemento principal para
apresentação do desenvolvimento estético- os barulhos escondidos no
alto-falante, as vozes computadorizadas, os sons indefinidos que surgem atrás
das melodias mais claras, os sintetizadores- é como se todos esses sons
definissem certa perspectiva, ou melhor, a perspectiva é apresentada ela mesma
na distorção dos materiais originais e na integração desses resquícios. É como
se os complexos pudessem criar uma nova estética. Talvez ai nós podemos a
começar a encontrar um pouco mais de encaminhamento e evitar os discursos
prontos de “vaporwave” não faz
sentido”. Vejam bem, pessoas que insistem em dizer isso caem, sem saber, no
próprio discurso torto desses artistas, essas pessoas já estão contaminadas
pelas relações de consequência, necessitam de uma falsa ideia conceitual e
dizem “esquisito”, e se esquivam da discussão. A distorção dos samples é a reflexão dos eventos que se
passam com a pessoa que faz a remix, e sua simples aplicação já deveria garantir
esse tal de “conceito” que tantos exigem.
A saturação do Mobile, no entanto, foge à exploração
mais comum na ‘vaporwave’ e utilizada
métodos semelhantes aos outros nomes no estilo, mais notoriamente Saint Pepsi eマクロスMACROSS
82-99, ou seja, o favorecimento de algo mais orientado pelo funk (dos anos 70 e o brasileiro) como
elementos mais clássicos no estilo, como as vozes, especificamente Joel Santana
falando seu inglês, o PRONA em inglês, o surgimento do Cassiano. Para quem
exigia conceito anteriormente, essa percepção e a música que ela produz já
deveria se garantir por si só. São modulações que registram um estado e até
onde sei, registros desse tipo é o que chamamos de arte. É uma noção mais radical
do que “a música que sucede é necessariamente um desenvolvimento da antecessora”.
Não é bem assim; a música que sucede é um reflexo da percepção sonora adquirida
pelo artista e todas as fraturas, feridas e também alívio e bem estar que com
ela surgiu. O sample se tornando o instrumento
em si.
Mobile Suit Belial foge então de conceitos mais “subentendidos” do
gênero para, com sua depuração e orientação de certo refinamento, mixando os samples com as diversas possibilidades
da manipulação eletrônica, entregar um produto final que é, realmente, menos
ofensivo e mais “agradável”. Kokoro é
uma obra que se insere e se apropria das várias técnicas coaguladas e
possibilita uma audição própria, não “apropriada”. As canções originais são
fantásticas, disso ninguém duvida, mas Guilherme Miranda estabeleceu seu ponto
de vista, exacerbando as possibilidades. No fundo, o disco é isso. Possibilidades.
É um dialogo entre discrepâncias que talvez a própria inauguração dessa conversa
sugira a redenção possível. Não se trata de uma resolução para elementos que
não interagem, mas como a própria interação é um reflexo de quem analisa. Com Kokoro, o Mobile realiza o que muitos detratores apontariam o dedo sem pensar
duas vezes. Curiosamente, suas armas são os que estes mais repudiam. Não há
tempo para recuar e pensar duas vezes. As remixes vulgares estão ai para
ofender quem tem que ficar ofendido, mas Kokoro
transcende a mera usurpação e escava um buraco ele próprio. E escavar buracos é
o que entendo como arte, pelo menos a arte necessária, aquela aberta e sem
defesas.
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