"Olhe para cada
ser existente como sendo uma entrada para outro lugar."
― Tom
Stoppard, Rosencrantz and Guildenstern Are Dead
Hilton Lacerda decididamente
gosta do que atravessa os planos. Isso fica muito específico nas cenas que
encerram Tatuagem- um filme “dentro” do filme supostamente experimental,
dirigido por um intelectual filósofo amigo do grupo Chão de Estrelas- onde a
única nostalgia verdadeiramente transmitida é as lembranças que adquirimos
menos de duas horas atrás, ao sentar na poltrona. Aí é que temo que nosso
cinema dito marginal resida- numa mera projeção de colorações “apenas” vivas
resplandeçam e tomem o espaço de tudo que também deveria ser periférico.
A fragilidade de Tatuagem pode
ser medida na relação simpática que o público adquire com as personagens- todas
e todos são queridos! Embora o filme dialogue sim com conceitos de criação,
arte e composição, sua saturação onde quase tudo é harmônico estimula sua
vulnerabilidade. Essa impressão de um cinema onde, sim, as “leis” vigentes são
desrespeitadas e todas as morais parecem ir para o ralo sofre de um aneurisma
impressionante. Ora, todas as morais não
vão para o ralo! Na combinação de entretenimento e discurso sociopolítico sua
força peca em ambos.
Vale notar que a principal
locomotiva do filme são duas figuras emblemáticas no cinema nacional
contemporâneo. A fotografia de Ivo Lopes Araujo e a atuação de Irandhir Santos justificam os registros.
As cenas de Santos surgem com alto teor de entrega, como se ele quisesse se
emancipar do que no cinema é “pronto”. Ele revitaliza cenas perdidas e toda
carga dramática do filme gira em torno de sua figura, produzindo contrapontos e
ambigüidades, sofrimento e alegria juntos, abraçados. Essa singular
manifestação combina com a entrega de seu personagem em sua arte. Os nervos
expostos, a musculatura de Irandhir
apresentando robustez em estado de tensão- como se qualquer momento fosse o
clímax.
A participação de Araujo talvez,
ironicamente, justifique certa preguiça de Lacerda na direção. Reconhecidamente
um dos fotógrafos mais importantes do cinema nacional contemporâneo, sempre
figurando em filmes com pequenos orçamentos, sua fotografia realiza um
majestoso jogo cênico com os atores, nunca deixando as cenas “vazias” (o que
seria um crime para outro tipo de cinema). É justamente seu pulso que torna as
personagens menos “curiosidades” e mais palpáveis, especialmente nas
fantásticas coreografias que envolvem o grupo Chão De Estrelas. E não é por
abelhudice que o filme peca- Kleber Mendonça Filho fez isso magnificamente em
Som Ao Redor- mas é uma clara defasagem entre o que foi apresentado e o que
tentou ser o discurso do filme.
O principal problema de Tatuagem,
o que acarreta em diversas divergências nas seqüências de cenas, é a “limpeza”
da marginalidade. Embora, todos nós concordamos, seja linda uma defesa tão
vigorosa da maneira anárquica que a trupe leva a vida, o que temos na
constituição desse ambiente em Lacerda é um processo onde todos “têm” razão-
uma facilidade superabundante em nos recolhermos nesses personagens. Nós- a
classe média- não ficamos nem um pouco incomodados com o filme. Antes de
proferir um “comunismo pequeno burguês”, opto pela ingenuidade e paixão pura do
projeto. Eduardo Coutinho, conhecido por retirar beleza de situações do
cotidiano, consegue incomodar e discursar sobre uma determinada classe com
muito mais vigor no belo Jogo De Cena (2007). O que qualifica o documentário de
Coutinho mais que o discurso de Lacerda é justamente sua intensidade na
dramaturgia- no desenrolar de Tatuagem, temos a impressão sempre que está tudo
muito bem e o Brasil é um país que recolhe bem transexuais, travestis, pobres, negros
e poliamorosos. Qual a necessidade de algo intitulado como “marginal” se não
sentimos uma ameaça ou nada é verdadeiramente transgredido?
Incomoda-me muito a positividade
reinante no filme. Em um dos momentos que, pela construção, surgiria um
“clímax”, na reconciliação de Paulete
com Clécio, o que temos são meras
ruminações. Não é um filme de rupturas e dói demais ver um ator como Irandhir simplesmente chorar em vão.
Vejam bem, não é como se as personagens não fizessem besteira. Mas a construção
do filme é tão solidificada em cima desse “bem-estar” que não acreditamos. Suas
personagens falecem de um bem eterno que não encontramos nem em histórias das
Disney. Há diversas relações possíveis entre seres humanos tão “libertos” de
convenções e doutrinas sociais como afirmam serem os representantes do Chão De
Estrelas, mas Lacerda teima em reduzir as ações e reconduzi-las a uma espécie
de “pureza marginal”. Lacerda quer dizer o que para nós? Na tentativa de defender
um “modo de viver” ele faz apenas uma declaração de amor intragável desse
estilo.
Espantoso isso se considerarmos
que Hilton Lacerda é um roteirista experiente. Temos um drama que nos retrai à
medida que seu desenvolvimento se “prolonga”, sempre optando por saídas mais
fáceis e reconciliações estancadas. Cenas como a da tatuagem, que deveria ter
forte impacto no público, ficam condicionadas a toda a afirmação nauseante que
é o filme. Por isso devemos duvidar,
também, do tão chamado “cinema de autor”. Obviamente, se o autor não tem nada a
dizer, para onde ir, então? Ficaremos reclusos à boa atuação do protagonista e
aos planos deslumbrantes do fotógrafo? Nós já chegamos a um ponto da Arte em
que não precisamos desses “fofismos” escondidos
sobre a fantasia de “cinema marginal”.
E não quero aqui promover um
manifesto contra a celebração. Celebração e êxtase se confundem porque convivem
com o horror e a angústia. Uma comemoração autêntica exige contrapontos porque
a existência não é desenhada apenas em um plano. Pior, nem a defesa de certo
estilo de vida (se falamos em uma defesa sólida) é escrita apenas por um viés.
Temos o erro do desígnio histórico em um filme que pretende ser contra
designações. Filmes como Os Monstros (dirigido pelo coletivo formado por Luiz Pretti, Ricardo Pretti, Pedro Diógenes
e Guto Parente) apontam para um futuro menos condicionado e mais caótico, cujos
prazeres são experimentados na carne.
Sem perversão não há cinema. Sem
perversão não há arte. Há muito que se duvidar de um filme onde uma dicotomia
simples é construída, “quartel x Chão das Estrelas”, e temos uma exaltação da
vida dos artistas ao mesmo tempo em que os militares se mostram sempre
carrancudos e nervosos. Sabemos que não é assim. Nunca foi.
Tatuagem acaba pro ser um filme
que recusa o conflito. Um feel-good movie
para um público dito “alternativo”, mas que carrega os mesmos clichês dos
filmes que lotam as salas de cinema. Tatuagem não tem coragem de indagar, não
tem coragem de mostrar o exército metendo bordoada no cabaré, não tem coragem
de mostrar a dor de Paulete, não tem
coragem de se debruçar sobre o “seu” Romeu e Julieta. Hilton Lacerda prefere
deixar tudo para fora de campo. Mas essa jogada, aqui, não trabalha com nosso espectro
especulativo, com nosso recolhimento de signos externos. Ele não quer dor.
Simplesmente. Se eu teimo muito em zombar de filmes panfletários, Tatuagem não
quer zombar de nada. Tatuagem é uma paródia das coisas que mais quis atacar e
tenta nos seduzir justamente pelo que nunca vai poder ser. Isso é; um filme que
problematiza o inter-relacionamento entre diferentes ideologias em um período
de opressão. O problema é que Hilton Lacerda não só não consegue problematizar,
mas consegue reduzir algo tão sério e grave.
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