“O que um certo lirismo chama de
margens da sociedade, e que se imagina como um fora , são os intervalos
internos, as pequenas distâncias intersticiais que permitem o funcionamento”
,Foucault.
Há quem diga que o sexo é a
descoberta da vida. Supervalorizações a parte, obviamente o sexo é uma centelha
importante de nossa existência. Em um mundo tão desigual, com crianças
exploradas aos doze anos e outras imaculadas aos dezoito, fica impossível
estabelecer uma espécie de “faixa etária das descobertas”.
Dividindo opiniões em todo o
mundo, Azul É A Cor Mais Quente
exerceu em mim uma enorme expectativa. Isso porque ninguém parava de falar
sobre o filme, literalmente todos os amigos e conhecidos quem curtem
minimamente cinema já tinham visto antes de mim. No entanto, para minha
tristeza, eram apenas comentários superficiais em relação ao trabalho de Abdellatif Kechiche: “filme longo,
chato, podia ter uma hora a menos” ou “muito legal as gostosas se pegando”. Mas
que raios- será que ninguém vê o filme como um estudo profundo da personagem Adèle (Adèle Exarchopoulos)?
Definitivamente não é um tratado
sobre o romance muito sexual das duas garotas. Primeiramente, seu
relacionamento é montado de forma colorida- os passeios no parque, o cabelo
azul de Emma (Léa Seydoux) , o jantar
nas casas dos pais, as conversas sobre arte, filosofia. Elas vão à parada gay,
dançam, gritam. Mas sabendo da trajetória de Abdellatif Kechiche, não esperava um filme de iniciante em uma
trama aparentemente tão leve- ou que o enredo se resumisse ao reconhecido
preconceito que os colegiais praticam com homossexuais. Se em Vênus Negra ele debatia sobre a
liberdade condicionada em um meio social corroído – e não poupava ninguém,
elite, cientistas- em Azul temos um
novo tipo de servidão fetiche encarnada pela Adèle.
Ou Adèle, quando vai morar com Emma, não sente reconfortada em uma
vida ordinária? Apesar de escrever bem, ela não quer ser uma artista como sua
companheira certa vez sugere- aqui, a destruição de outro estereótipo, da
garota lésbica vanguardista. Mais extraordinário: Adèle a certa altura afirma que foi a escola que lhe deu tudo, foi
sua brigada na vida, por isso ser professora. Logo ela, garota pós-geração de
1968, defendendo onde “[...] os grandes esquemas da pedagogia, isto é, a ideia
de que só se podem aprender as coisas passando por certo número de etapas
obrigatórias e necessárias, que essas etapas se seguem no tempo e, no mesmo
movimento que as conduz através do tempo, marcam tantos progressos quantas são
as etapas” (Foucault).
Emma é antagonista de Adèle, tem o cabelo pintado, sabe
filosofia, artes plásticas. Intelectualmente mais dotada e versada em vários
ramos da cultura, a garota cede a Adèle quando
a questão é prazer sexual. Outra esfera sem dúvida importante na vida de Adèle é o sexo. A mais considerável,
aliás. Devo confessar que vários formigamentos desdobraram-se em meu corpo com
cenas tão pungentes, reais e envolventes- é como se tudo o que estava contido
dentro de Adèle durante toda a trama
explodisse na sua primeira relação amorosa com a parceira.
Oralidade é o forte de Adèle, seu jeito meigo de falar, ou
quando inicia o beijo em Emma enquanto as duas estão deitadas no parque. Na
cena final, quase engole sua mão num fantástico jogo de sedução, adora comer,
dialogar. Sexualmente, é bissexual, o que mostra seu paladar aguçado e
eclético. Em um mundo onde há tantas dicotomias, pode parecer absurdo que
alguém ainda esteja tão fadada há experimentações. Ela está. Na aleatoriedade
da natureza, aconteceu de seu maior amor ser uma fêmea. Acontece que existem
mentiras também- estamos falando de relacionamento romântico entre dois humanos
e não figuras idealizadas do ativismo militante entre igualdade de gêneros.
Aliás, nossa protagonista tem dificuldade em se desapegar das coisas. Adèle é afável com Emma nas duas
esferas; de entrega emocional e física. Uma agrega a outra.
O período que viveu com Emma
seguirá a garota pelos seus dias. Pensa sempre nela, e o isolamento causado
pela ruptura torna-a uma pessoa desolada. Libertou-se -com o
homorrelacionamento- das amarras sociais, mas o que fazer quando se ainda está
presa a uma convivência? Filhos, casa, emprego seguro? Diferente ela já é- ou
talvez suas escolhas tenham forçado a garota, como se não houvesse ponto de
retorno. Sensações que causam regozijo tiram-nos o direito de voltar à
mediocridade. Diploma de faculdade não supre a necessidade da protagonista,
muito menos as crianças que cuida e tanto adora, ela precisa de mais. O encanto
transforma-se em solidão quando não há ninguém para apreciá-lo. Não há o que
seguir, tudo é possível, menos uma alternativa, voltar com a antiga namorada.
Os “comuns” com quem agora ela convive
já não tem mais graça. Se para Lacan somos frutos do vazio, nossa protagonista
já inventou seu sentido para a vida; gozar. E o prazer pode vir de várias
formas, em diversas encenações. Ela pode lavar pratos e ser o fetiche de sua
parceira, não há problemas em relação a isso- contanto que seja o objeto de
prazer. Ser possuída, possuir, ser lambida, lamber. Ela está nua aqui em um
sentido totalmente amplo; desferida de causas sociais, ela visa única e
exclusivamente uma excitação que possa satisfazer ambas. Que a monotonia seja
proibida!
Demonstrar interesse- ela sai com
o garoto do trabalho- não é de fato estar interessada. O que a separa de sua
verdadeira felicidade? Ela lê muito, mas entende tão pouco. A única verdade é
corporal, o resto é jogo de encenação. Fato são suas aulas, o sexo, os livros.
Riscada esta sua pele- por mãos que não vão mais te tocar. Os termos ficam
confusos. Nasce a vida adulta. Mais, não há. Só lembranças dolorosas de dias em
que tudo era prazer. Inclusive viver.
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