Alice Munro é a última ganhadora do Nobel de literatura. O que
inevitavelmente rendeu várias edições para seus livros. Normalmente é muito
chato isso, alguém ter que alcançar o suposto prêmio máximo da literatura para
poder ser reconhecida nos outros países, mas nesse caso veio em bom tempo.
Sendo que os últimos vencedores dedicavam-se a romances e eram homens, a última
nominação vem para mostrar que literatura séria não é feita só pelo gênero
historicamente favorecido, longe disso. Por ser contista e mulher, há sim certos
preconceitos intelectuais e sociais a superar para vencer tal prêmio.
Sim, algumas grandes escritoras
venceram a premiação recentemente. E considerando as últimas vencedoras, fica
claro que não há um tipo de “apreciação” ao sexo erroneamente considerado
frágil, e que há diversas formas de literatura habitando as mentes das
mulheres. Evidente que cada uma desenvolve um tipo de linguagem muito
específica, embora acabem revelando temas comuns como a memória íntima,
proximidade- aliás, praticamente tudo de alto nível escrito atualmente segue
por aí. As histórias de Munro se
desenvolvem num suposto exterior exemplificado por ações e pensamentos rápidos,
numa intimidade abundante, ao mesmo tempo em que se podem ler as histórias sem
tomar partido.
A força da memória e o que
carregamos do tempo –a invenção, a ficção de uma autonarração- guia as
personagens que andam pelo descampado e veem nas imagens nunca antes vistas um
inventário de sua vida. Todo convencional objeto ganha dimensões de vida e como
a madeleine de Proust, libertam as
pessoas do real para serem jogadas no deserto da memória. Como esse deserto é
suportável parece ser a resposta mais difícil e por onde os humanos mais
trafegam e, consecutivamente, tropeçam.
Algumas peças carregam valor
simbólico em seus livros, como os conjuntos de móveis ou decoração das casas,
parecem estar intrinsecamente conectados ao despertar repentino da memória. Os
móveis de decoração interior também representam dificuldade de ruptura e o
frescor do recomeço. Essas coisas deslocam-se no universo de Munro e a forma de conexão é a metáfora
para os sentimentos.
Regras da intimidade
Há uma característica de dever
conviver com outros, habitar o mesmo lar de pessoas que você não quer se
tornar. Quando as articulações tornam-se apenas mecanismos de abastecimento da
obviedade rotineira. O conhecimento
empírico domina a literatura de Munro:
em algum ponto as personagens percebem que a leveza é tão constante como o sofrimento.
Na obra de Alice, as coisas estão mais submersas e não simplificam em uma
possível redenção, ao contrário, os raros momentos de redenção são justamente
em períodos difíceis- a mulher que vai morrer e beija um homem mais novo sob a
luz das estrelas, a empregada doméstica que aceita cuidar do tuberculoso quando
este encontra a miséria financeira e de saúde. Escrever esse tipo de contos -em
que o real pode encantar e desencantar- exige um domínio estético pleno.
Embora os contos no geral possam
ser lidos isoladamente, se analisados há um conceito que une todas essas peças,
podendo retratar um quebra-cabeça –ainda não resolvido- que é a literatura de Munro, um universo arduamente construído
através de mais que cinquenta anos de carreira. Alice treinava já quando
criança a elaboração rápida de ideias em forma de escritos. Virando as costas
para os transtornos psicológicos de delírios e poder que reinam nos grandes
romancistas atuais, Munro constrói
cautelosamente um mundo cuja disfunção reside justamente no fato de tudo
continuar.
Os atos domésticos, como a simples
tarefa de fazer comida, tornam-se uma reflexão acerca das individualidades. Por
isso a época –clima, dia, mês, ano, estação- é anunciada logo no início de uma
nova história, junto com uma atividade aparentemente banal, cotidiana. Coabitar
sua literatura é entender a busca perdida entre os lençóis, refletir sobre
nossas indulgências. Por isso os contos são orlados no mesmo país, Canadá, e na
mesma faixa temporal, entre as décadas de 50 e 70, o que incorpora no universo
de Munro a formação do íntimo
contemporâneo, sob a dissolução das perspectivas históricas que são meras
ferramentas coadjuvantes no mundo onde o impacto maior é a percepção do tempo.
Cada início uma aparição, onde
surgem figuras demasiadamente humanas despidas de longas descrições, pois tudo
reside nos atos que executam. Deparamos-nos com cavalos vigilantes, a
comparação da morte com o sentimento de submersão em um lago gelado. Pessoas
arremessadas em uma espécie de ordem que se corrói a todo o momento- a menina que
se transforma em escritora e corta laços com os antigos amigos de sua família.
São entradas inesperadas que abrem alas para as personagens torturadas por
desejos contrastantes.
As personagens buscam sua
sensação da memória, e não os atos executados, por isso ficam perdidos. A
destruição de marcas da infância refere-se a estas perdas. Como produtos
queridos que de repente somem de nossas gavetas. Uma catálise do jargão: “só se
ama quando se perde”. A recusa está em aceitar que as coisas não estão nada sobre
nosso controle. Todo trabalho de uma vida estruturada pode ser arruinado por
desejos alheios.
Percebem-se no começo de cada
conto, os narradores absolutamente confusos, tornando o desfecho, pela visão
sentimental, absurdamente imprevisível. Essa hesitação perante a quantidade de
informações que as personagens precisam exorcizar (vale lembrar que é uma
indefinição muito bem construída no sentido literário), fornecem detalhes
fragmentados em demasia, para ao decorrer da história os fatos começarem a se encaixar.
Detalhes sem aparente relação, que ao serem pesados no fundo da memória,
compõem um tocante final. Munro nos
alicia, com a isca que na verdade reside em uma pergunta “quem é,
ontologicamente, que está falando? O que lhe da autoridade para sentir?”. Todas
essas ferramentas de construção velam um rosto muito humano que encontramos nos
belos finais, a face de Alice.
Ação pessoal
Alice trabalha com histórias
semelhantes à sua realidade. Quando aparece uma escritora que já foi casada,
existe aí muito da biografia da autora. O salto da infância para os problemas
adultos são incríveis, como mundos que se destoam. As imagens dos outros
devolvem às personagens pedaços de vida que vivenciaram. Isso ao bel prazer da
memória, que intercala acontecimentos por afetividade. Porque, obviamente,
entre uma cena memorável da infância e o caos do atual, existem histórias
interessantíssimas.
Mais uma vez, a morte de um
sentimento é metaforizada em objetos pessoais, peças queridas de pessoas que
simbolizam muito na vida das personagens. O que talvez pareça paradoxo, é que
justamente a partir do descarte desses objetos representando a perda da
ingenuidade, há uma base para a construção de um relacionamento mais prudente,
sim, é brutal, mas só nos tornamos pessoas melhores quando compreendermos a
maldade do mundo. Munro apela para o
significado da memória afetiva, ou ficção afetiva, para deixar claro nossa
passagem pela Terra. Parece que há uma pulsação obsessiva sobre histórias com
morte em sua literatura para afirmar a vida. Assumir a derrota, jogar lixo
fora, o bebê quase morto pela mãe, o pai que matou o filho ao dar ré no carro-
é a catálise do fim anunciado que norteia nossas ações. Alice propõe uma
espécie de reflexão: “se nossas memórias nos guiam no momento de maior
intimidade, como fazer para aderir novas vivências para gerar um eu mais amplo
e profundo?”.
Os desentendimentos marcam as
personagens que transitam no mundo de Alice. É a ruptura que causa um
relacionamento mais profundo, próximo e privativo. A construção desse mundo
onde a morte é o nascimento da inauguração no sentido de existir. As pessoas, segundo
a literatura de Munro, se associam
pelas perdas, é a derrota que as une. É uma importante reflexão do nosso
mecanismo de relacionamentos e desconstrução do discurso massivo de que união
só acontece em situações positivas, isso porque erroneamente encaramos
ajuntamento como algo intrinsecamente bom, fincado na positividade do mundo e
na dicotomia imbecil de bem e mal. Resumindo, a morte é o encontro, a
destruição é o começo.
Quando encaram o horror, as
pessoas enxergam mais profundamente seus próximos. Descobrimos a fragilidade do
outro. O que importa não é o ato em si, e sim a maneira que elas se unem após
tais situações. Dividir um sofrimento- como um casal que divide a morte dos
filhos, dois idosos em uma casa de repouso- é o cume dos relacionamentos.
Confiança plena. As crianças, no mundo de Munro,
também tem forte carga sobre as vidas alheias- Alice nos diz que ninguém está
impune, mas como uma redenção, para afirmar nossa fragilidade originária.
Munro sabe bem o significado das tragédias, suas histórias estão
cheias delas, aliadas a um forte senso autobiográfico, em um passeio pelo que
de melhor a literatura oferece em sua antiguidade. E levanta outro ponto, onde
nossas fraquezas são necessariamente algo que nos descaracterizam da vida
social? Há circunstâncias que abrandam a violência de nossos desejos? É
violento desejar? Por isso os vários saltos temporais que os narradores realizam,
como se um exame muito minucioso exigisse uma cura diferente a cada revisão.
Seu universo é de como criamos mecanismos para sair do inferno que nos
arremessamos. Como aviso de amigo, é bem difícil.
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