"Vamos passando,
passando, pois tudo passa
Muitas vezes me
voltarei
As lembranças são
trompetas de caça
Cujo som morre no
vento.", Apollinaire.
Os versos de Apollinaire são
interpretados muitas vezes erroneamente. Não é uma brincadeira com o jogo de
palavras e com o fato de vento não ter som. Não poderia ser tão banal assim. A
morte, esse grande acontecimento a que estamos destinados, acontece também no
campo das memórias. Quase toda a vida, os pontos mais importantes- aos quais
adicionamos um pouco de ficção- surgem como raios de lembranças quando se cruza
com a morte, ao menos é o que dizem.
Historicamente os romances tem um
antepassado de tratar esse tema de forma um tanto quanto sinistra. A Bíblia, um
dos maiores livros do mundo, cria um paradoxo estimulante quando promete uma
além-vida ao mesmo tempo em que mostra seres agonizando a morte. Talvez seja
exatamente por essa veia de polos extremos que o livro tenha se sacralizado.
O livro Fim, estreia de Fernanda Torres no gênero romance, narra os últimos
instantes de vida de cinco amigos. Álvaro, Sílvio, Ribeiro, Neto e Ciro, embora
camaradas, têm personalidades distantes, viveram a juventude nos anos 60 e iam
juntos às festas com drogas e bebidas. Naquele tempo, estavam em um estágio de
insatisfações constantes, desnorteados com tantas possibilidades de escolhas no
Rio de Janeiro, além de nunca estarem contentes com as próprias. Fernanda
Torres não deve nada para um Nelson Rodrigues, as situações são extremas e
completas com traição, vício, inveja, ódio. Parece que o amor é impossível.
A Luz da Mortalidade
A composição de Fim é matemática, cinco capítulos
seguidos e um epílogo. Na primeira página de cada capítulo há o dia em que a
personagem nasceu e o dia em que morreu.
Os capítulos tem uma primeira
parte, em primeira pessoa, que o narrador vai contando suas inúmeras histórias
tristes, como a vida foi perdendo o encanto, o casamento a graça, a paixão.
Depois de a morte em si ser narrada numa retirada praticamente poética, o
narrador é em terceira pessoa contando o que acontece com as pessoas próximas
ao recém-defunto - ou não tão próximas assim- com um passado em comum. Um mundo
completo de falhas de comunicação, desejos escondidos, anseios. Não é necessariamente
um livro aonde vamos montando aos poucos, a força narrativa está no momento;
seu tom fragmentado, multiobservacional, permite esmiuçar a tragédia da vida.
Torres brilha ao deixar a história unida por laços tão frágeis, prender
atenção, ainda assim conduzir um estilo literário muito próprio.
Todos protagonistas rememoram
muito a época em que saiam com seus outros quatro camaradas, a partir de um
fato o livro vai desdobrando os acontecimentos posteriores íntimos de cada um.
A história é exatamente sobre os pontos fracos deles e como encaram o fim-
drogas, antidepressivos, orgias. Tudo isso começa logo na primeira página,
quando nos é apresentado Álvaro.
Embora a superfície do enredo
seja aparentemente leve, o mundo em que os protagonistas estão afogados é
horrendo e demasiadamente humano- traições, desconfiança, violência, agressão.
Isso tem muito a ver, obviamente, com a revolução dos costumes pós-geração
hippie, juntando cinco histórias cotidianas demais para exemplificar o
inventário da classe média carioca. Lembrando que em 70, o Rio ainda era o
porto das novidades no Brasil, absolutamente tudo de mais recente acontecia por
lá. O andamento dos costumes deixou de ser rigoroso como uma fila indiana
–passou a ser mais como uma transação horizontal- sempre aberta às novas
experiências, o livro também é o debate entre novos pensamentos e tradições
enraizadas. O que não deixa de ser triste; ao constatar o inicio do livro,
Álvaro andando velho e descuidado pelas ruas, as novidades também se tornam velhas
e morrem. A comédia de Torres é sinistra, é o humor do ser-para-morte.
O princípio de Torres como
romancista é notável, o que nos faz questionar: “por que ela nunca tinha se aventurado
na literatura antes?”. Temos aqui uma autora segura, se aventurando em um
terreno narrativo muito irregular e conseguindo amarrar todas as possíveis
pontas (detalhe para o padre Graça). O compromisso com a escrita, a boa
literatura, exige muita dignidade no trato com o leitor, respeitar sua
inteligência, oferecer distintas possibilidades. Itens que demoram anos para
serem desenvolvidos, como esmurrar ponta de faca, mas Fernanda age com esmero
em relação a isso (talvez estivesse matutando e arriscando escritos
secretamente). Já fica a expectativa de quais serão os próximos recursos
literários usados pela escritora e como vai se sair sem ter que repetir a
brilhante fórmula utilizada. Isso daí, só com o passar dos anos saberemos.
Por hora, fica a aprovação.
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