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domingo, 5 de janeiro de 2014

Dostoievski (Crime e Castigo, 1866)- A tragédia inevitável.



O universo é um livro do qual cada dia é a folha. Nele tu lês uma página de luz — de despertar — e uma página de sombra — de sono —; uma palavra de aurora e uma palavra de olvido”, Edmond Jabès.

Quando uma criança nova faz algo de errado na escolhinha, normalmente esta se ressente e inventa desculpas para suas atitudes. Isso porque ao mesmo tempo em que formamos nossos matizes básicos construídos por convenções sociais, temos uma particularidade difícil de explicar. Ideologia só existe porque a página de nossa vida certa vez foi preenchida por uma ideia que pareceu brilhante na época. Os leitores percebem então, em Dostoievski, um reinado de tristeza que parece não ter libertação. O russo assinou grandes romances e mapeou profundezas que condenam o indivíduo à tragédia.

Raskólnikov conversa com o bêbado Marmieládov



Marcas da pobreza

Dostoievski era um leitor fervoroso do velho testamento e defendia um cristianismo mais primitivo, não tanto influenciado pelo Vaticano. Considere isso em uma Rússia decadente onde as tabernas noturnas vivem lotadas por bêbados pobres e garotas de dezesseis anos se prostituem para sustentar a família. Esses problemas incontestáveis são diagnosticados em Crime e Castigo. O início da obra é mais um inventário da miséria. Pessoas brutas e ausência de compaixão identificam a cidade por onde trafega Raskólnikov.

Logo no início nosso herói exala ambiguidade, que vai até o fundo de sua alma, como quando fica feliz e ao mesmo tempo colérico ao saber que sua irmã vai se casar. O objetivo que ele tem na cabeça é melhor do mundo, simples assim, e ao saber os pensamentos de um estudante comum em uma taberna, fica convencido de que tem a força para isso. A conexão direta e ininterrupta entre justiça e maldade se faz presente em Raskólnikov desde a primeira página. Afinal, quem nunca se julgou superior aos outros e a todos os sentimentos mundanos? Enxergar a vulgaridade alheia não é tão difícil assim, afinal. Crime e Castigo é uma resposta às imposições fáceis, às ambiguidades superficiais. Na ficção de Dostoieviski, as causas são difíceis, instáveis, praticamente inexistentes. Esse romance ilustra nossa confusão psicológica aliada a certa prática superficial manual objetiva.

A grande questão do romance em sua fase inicial é as variações de sensações experimentadas por Raskólnikov nas mais diversas situações. O elemento chave para capturar o núcleo desse livro é o entendimento claro de que nunca agimos de maneira uniforme. A ideia da metamorfose. O que interessa ao autor é descrever e desenhar as mais interessantes e complexas situações que (dês) caracterizam o ser enquanto humano. Dostoievski antecipou Camus e colocou o homem face a face com o absurdo enorme da liberdade.

Em Crime e Castigo, a regência da tragédia e a proximidade do niilismo são registradas desde que começamos a acompanhar os pensamentos dúbios de Raskólnikov. À frente dele, em primeira instância, não há o peso do assassinato, e sim o preço de ser castigado, ele não responde moralmente por suas ações. A justiça terrena se prova, então, triunfal a discursos éticos. Oras, se a o temor pelo castigo é regido pela consciência humana, o que acontece com alguém que entende que tudo se baseia em convenções instituídas? A resposta não é um além-homem (este já inventaria continuamente suas verdades) e sim Raskólnikov. É como se este fosse um desafio de Dostoievski à sua própria intelligentsia enquanto deus ex-machina. Ao redor do ser, há também o ente, outro vigilante do si mesmo. O destino é a tragédia, porque a consciência é culposa.

Em 1886, a Rússia testemunhava o crescimento significativo do socialismo dentro de sua população. O próprio Dostoievski, quando jovem, participou de grupos socialistas- Raskólnikov que vive em estado febril é a emergência de ideias utópicas avançadas em uma Rússia ainda caracterizada pelo servilismo, pelas tabernas noturnas e em constante transformação seguindo uma Europa em crescente modernização.

Mário Pontes escreveu que, “todos esses acidentes e defeitos, que as novas traduções se empenham em preservar, não bastam para afetar o interesse que desperta no leitor a profundidade do mergulho de Dostoievski na alma humana”. Figurando o exemplo de Mario, têm-se diversos diálogos das personagens sobre a situação da Rússia, dissolvendo o enredo e mergulhando na psique humana. Dessa forma, chegamos a Nietzsche, quando este confessou que “Dostoievski é o maior psicólogo do mundo”. As oscilações de espírito antecipam romances como Os Enamoramentos, do espanhol Javier Marías.
Quarto de Raskólnikov, por Jeremiah Humphries

 
Abordagem da miséria

Como uma breve pesquisada na internet, pode-se perceber Dostoievski fascinado por mitos cristãos, heróis trágicos (por isso tantas comparações com Herman Melville), conversas longas, cenas hipnóticas apaixonadamente febris, escândalos sociais, humilhação, alta tensão, discussões filosóficas, a redenção através da fé cristã, niilismo, inocência e culpa.

A abordagem de Dostoievski é tão vasta quanta as questões sociais pertinentes à época. Raskólnikov tem sua existência atormentada por diversas intempéries- um mal estar crônico ao constatar os códigos viciados que regem o comportamento humano. A crise do protagonista é revelada em seus passeios constantes pelas piores partes da cidade. Raskólnikov não raciocina com a razão e esse é seu maior castigo.

Em Crime e Castigo, as palavras de Raskólnikov já são proferidas pelo massacre, por sua eterna doença, seu eterno mal estar. Como resultado, naturalmente as dúvidas de um crime de assassinato vão pairar sobre ele. Agora, nessa espécie de perpetuação da dúvida, o intermédio dele se relacionar com as pessoas é a partir da doença. Raskólnikov é a doença tentando, miseravelmente, passar sua experiência a outros seres estabelecidos da ordem.

A miséria é um tema recorrente em Crime e Castigo, e volta sempre à tona. O relato das mais diversas (e pobres) condições de vida na Rússia, sendo representada pelo enorme calor que abafa das ruas. Um dos maiores motivos da apreciação da obra pela crítica é a vastidão das personagens. Se pode até parecer desnecessário tanto desenvolvimento em tramas teoricamente secundárias, Dostoievski tem plena noção de que está pintando não só a subjetividade sofrida de Raskólnikov, mas também uma Rússia marcada pelos níveis sociais e orientação cristã.

A História- em várias passagens do livro é citado o exemplo, então recente, de Napoleão- é um assunto muito discutido pelas personagens. Para fugir de credores, Dostoievski precisou viajar toda a Europa, por isso soube bem o efeito Napoleão no velho continente. Como não há fuga da História, Raskólnikov descobre que não há fuga da sua condição de assassino, a História é um pesadelo impossível de se acordar.

É óbvio que Dostoievski tinha noção clara da interferência da História em um espírito perturbado e analítico como Raskolnikóv, que mesmo com sua enorme inteligência não consegue tragar o sofrimento humano. Daí a tendência a suas fantasias, seu longo período de delírio onde planejava diferentes futuros, daí sua incerteza em lidar com pessoas e sua falta de tato no sentido tradicional. Ao recusar o mundo como é, resta a Raskólnikov elaborar sua medida de ação através de um código de moral próprio, reservado e solitário.

É o que acontece nas cenas fortes em que é interrogado pelo juiz de instrução, Pietróvitch. Raskólnikov começa a pensar que toda a palavra do juiz é uma injúria e um insulto à sua honra pessoal, que o juiz está sempre tentando armar uma armadilha; para pessoas como Raskólnikov as palavras do mundo, o jeito bonachão que Pietróvitch se comporta, configuram a armadilha. Podem ser palavras ofensivas ou atos triviais. Tudo é uma forma equívoca de se abordar pessoas de “outra ordem”. Neste raciocínio, o acuamento e autoisolamento são as únicas alternativas possíveis aos espíritos conturbados (ou a inversão de valores, quando Raskólnikov assassina a velha usurária). De resto, o único compartilhamento possível encontrado pelo protagonista foi com uma prostituta, pois viu nela inocência e sofrimento humano dignos de ajoelhar-se.

Contudo, o preço de Raskolnikóv vai ser fatalmente perder a liberdade, comendo sopas com barata e dormir em bancos duros. Em Crime e Castigo, Dostoievski aponta para a bela redenção final. Quantas vezes são necessárias caminhar até achar algo vivo sobre a Terra? Depende da sorte, de uma imensa e incompreensível roda-viva que nos torna culpados e inocentes. Entre esses dois, há os outros seres e as ideias- provavelmente não vamos permanecer puros, mas como carregar a cruz importa mais.

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