Lendo-se literatura
genuína, no entanto, não se adquire nada além de cultura literária, a mais
inofensiva de todas.”
Eu tive que sair da minha zona de
conforto, no que se refere às preferências estéticas, para ler os primeiros
capítulos desse livro do escritor argentino. Na verdade, o que aparece como
discurso do autor é a constante metamorfose (tanto das palavras como das
personagens). Aira observa o efeito
das mudanças bruscas e como isto espelha nosso comportamento.
Uma leitura desse livro é como
testemunhar o ciclo deformado que a memória impõe à História. A narradora, às
vezes narrador, apresenta as dificuldades de uma criança sob um prisma
originalíssimo, pode-se falar que o universo infantil e sua imaginação infinita
nunca foram tratados de forma tão madura, inclusive no tocante à linguagem.
Talvez esse jogo labiríntico criado por Aira
dê conta da complexidade de interpretação relativa a uma criança em um mundo
com códigos tão quebrados.
O possível surrealismo da obra só
existe porque suas múltiplas possibilidades parecem insuportáveis para nós,
meros leitores- cada frase gera um desdobramento. Com uma linguagem tão poética
mesmo no universo instável (e inexistente?) da protagonista, sua prosa tem
muito de poetas como Paul Valery e
surrealistas como Michel Leiris. A
sofisticação da linguagem não afasta o leitor faminto por uma boa leitura,
mesmo com signos tão confusos temos o relato de ausências. Originalíssimo, a
literatura de Aira tem que ser
descoberta!
O autentico formato do texto é
conduzido por uma garota de seis anos que não nos é apresentada- no livro só
compartilhamos da subjetividade desta. Óbvio que a leitura exigirá alguma
atenção, pois a estética é trabalhada toda em cima da incerteza e perspectivas.
O que não implica que Aira se
destaque apenas por um novo tipo de abordagem. Seu texto é simples e direto, ao
mesmo tempo em que suas reflexões ganham força por tão sinceras e bem escritas
que são.
As lembranças puxam uma às outras
e de repente é criado um bloco vivo de associações livres que contam a infância
da narradora. Tudo com uma linguagem simples, ao mesmo tempo em que se
aprofunda no psicológico da protagonista. Aira
é um grande criador de frases- irrompendo orações que se apresentam muito
fluídas abarcando criativas associações.
A literatura de Aira revela pensamentos escondidos,
sonhos, paradoxos. Com a sensação constante de estar imerso em um pesadelo
sádico irônico. Em meio essa realidade distante (no ponto de vista da
narradora), o que resta é criar sistemas de interações para fixar um sentido, o
problema é que muitas vezes este reside na banalidade. A obra revela
definitivamente o subconsciente, explica com exemplos ao invés de monólogos dispersos.
São autores assim que renovam a literatura, deixando claro que há muitos pontos
que ainda não foram explorados.
Nenhum comentário:
Postar um comentário