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domingo, 18 de maio de 2014

Tsai Ming-liang, Cães Errantes (Jiao You) (Taiwan/França, 2013)- O curso da maldição.



Tsai Ming-liang decidiu abandonar o cinema, pelo que disse após a estreia de Cães Errantes, no Festival de Veneza- e que se voltasse a filmar, seria exclusivamente instalações. De fato, Cães Errantes dialoga com a ineficácia da narrativa, onde simples enredo e ações das personagens são incapazes de evidenciar tudo o que a arte anseia.

A perversão de Cães Errantes parece sombria, pois o mundo principal pelo qual Tsai Ming-liang vinha trabalhando anteriormente, baseando situações ao redor do ator Lee Kang-sheng, não oferece redenção e é de uma aleatoriedade assustadora. A precisão detalhista é potencializada pela quietude transmitida no ambiente, onde só é interrompida em uma tempestade ou uma única cadencia com “trilha sonora”. A comédia foi praticamente erradicada e reduzida a algumas cenas estreladas pela múltipla percepção de Tsai e sua ironia perante o supermercado e respectivas formas de consumo.

Em Cães Errantes, percebemos Lee já sem sua mãe, com filho e filha. Curioso notar a ironia, porque agora é ele que mora do outro lado do rio, contrastando diretamente com o garoto desparecido de O Rio (1997). Estremece, no entanto, o ponto caótico que a tranquilidade dos ângulos da câmera atinge no protagonista que vamos acompanhando há anos. Não resta nada a Lee, uma sensação total de impotência que é uma maldição que Tsai lhe atribuiu, maldito deus ex-machina. As paisagens estão estáticas- assim como Lee está apreensivo, isolado do mundo- não há mais comunicação com o exterior. A profissão que Lee exerce, fazendo referências a outros clássicos do cinema de Taiwan, mostra um cineasta em pleno domínio do desencanto que pretende relatar.



A relação de espaço -que os atores estão confinados- é de estranheza, onde a movimentação parece nunca ser completa conforme desejada. Isso ressoa nos planos longuíssimos (dois têm mais de dez minutos), onde refletem a incompreensão das pessoas que habitam esse vazio e sua imobilidade em instalações opressoras. Nas caminhadas e contemplações solitárias de Lee Kang-sheng, o que temos é um mundo estático, onde o que paira é um ambiente pesado, arrastado.

É estimulante como diretores com Tsai, ao lado de outros, conseguem trabalhar o cinema digital apelando para uma espécie de imobilidade radical- o extracampo existente no conflito quieto entre os atores, o inesperado como rompimento da ação que supera qualquer megalomania 3D. Não é um filme enredo (isso pouco importa!), mas é sobre os caminhos conectivos e relação sentimentais que as pessoas focalizadas mantêm com o protagonista. As paisagens são descontroladas por faces arruinadas, uma instalação com antigos sinais de progresso é atacada pela presença de quem carrega o peso da opressão.

As análises que constituem cada cena são aprofundadas, por isso a demora- é como se cada sequência evocasse elementos destroçados da anterior para estabelecer um dialogo que basta por si. De maneira entrecortada, as cenas se refletem na onipresença de quem testemunha, normalmente uma câmera parada, ou até mesmo recortes que funcionam mais tradicionalmente. Por exemplo, como aumenta o desespero de Lee progressivamente, ao executar até mesmo atos triviais. As cenas, por serem em blocos, são memoráveis, e três tem que ser destacadas: quando Lee canta com seu rosto sendo cortado pelo vento (como símbolo de resistência!), quando destrói o boneco de repolho que sua filha construiu (como sinal de ira!) e quando contempla,  ao lado de Chen, o belo painel do artista plástico taiwanês Kao Jun-honn (já compreenderam a inutilidade das palavras, ficam dez minutos em silêncio).


Quando Chen e Lee contemplam o painel (que está fora de campo), a mulher está emocionada, e ele busca coragem para ter a força de abraçá-la, é uma paralisia que dura mais dez minutos, onde eles estão tomados pela visão. Isso até o outro corte, onde a câmera destaca painel e casal no mesmo plano- de uma distância maior, percebemos a natureza morta que os cercam, e como sua energia vital foi sugada.

Essa pressão de Cães Errantes está evidenciada no ambiente, nos corpos desgastados, nas paredes velhas- a força do filme é testemunhar voyeuristicamente a luta por espaço e respiração em localizações decididamente vastas, ai está o paradoxo. A cada bloco finalizado, uma sensação de apocalipse interno, Lee está destroçado, os sentidos morreram- na outra cena, um novo recomeço, uma nova busca, um horror metalinguístico sobre a possível evaporação de alternativas.

A conservação dos planos em que Lee está completamente esgotado nos remete a figura do cansaço do próprio diretor com as palavras. A história da família que transita perdida é de simples achados em um terreno perdido- por isso, algumas vezes, a câmera faz questão de movimentar-se independente de quem habita o campo, ocasionalmente encontra uma família caminhando na praia, em um momento tradicionalmente representado como felicidade, revertido a uma cena de escapismo. Assim como os lugares que “tem sua própria história”, as faces demarcadas têm suas próprias marcas, como a casa dos últimos momentos do filme- onde as paredes estão velhas. Não sei se a constatação do desgaste é o adeus que Tsai quis retratar para seu personagem-mor, Lee, mas essa captura de esgotamento é o que ressalta no longa-metragem. Aquele garoto, anteriormente filmado em 1989, com muito ainda a aprender sobre o mundo e seus códigos, está tremendo pro causa do álcool- Tsai aposta em nossa relação afetiva e a análise de Lee por conta de uma suposta empatia, o problema é que diferente da gente, o mundo não liga. E Tsai, por essa ruptura definitiva com o cinema já tão pouco tradicional que realizava, novamente ignora o banal para aprofundar um tema tão denso. E talvez esse estágio de aflição seja realmente o melhor momento para encerrar seu cinema.


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