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quinta-feira, 15 de maio de 2014

Daniel Ribeiro, Hoje Eu Quero Voltar Sozinho (Brasil, 2014)- O equilíbrio cego.




“Um sopro dispersa os limites da casa”, Rimbaud.

Não sei se eu, ex-amante convicto de comédias românticas, posso falar sobre uma pós-experiência quando me reencontro com um filme rotulado como adolescente. Mas, enfim, por que nos prender a gêneros quando estamos na época em que gêneros se confundem com tags e o público adolescente beira os quarenta? Aliás, quem foi o infeliz que disse que esse filme é exclusivamente destinado a pessoas que ainda não tem todos seus pelos pubianos (gera mais dinheiro colocar determinada obra centrada em determinado público?)? Juro que não é brincadeira, mas Hoje Eu Quero Voltar Sozinho caminha para um espaço ainda não visto nos dilemas adolescentes. Daniel Ribeiro não teme temas que se convencionou chamar de espinhosos, sabe que apesar do contexto, sua obra tem força própria. Apesar das personagens juvenis e em situação de amadurecimento, seu filme não força para nenhum terreno simples onde rotulações fáceis seriam postuladas. O jovem diretor em seu primeiro longa-metragem sabe por que e como construir suas cenas.

A ação é uma continuação do curta-metragem que rendeu mais de um milhão de visitas no youtube, datado de 2009. Esse roteiro baseia-se na cumplicidade entre público e aspirações artísticas que compartilha com o diretor. A estabilidade de uma amizade é colocada em cheque quando um menino de cachos aparece na vida de dois velhos amigos, Henry Miller falou que monstros “perturbaram a norma, o equilíbrio”, mas o que é um monstro para um garoto cego? As fichas de Leonardo (Guilherme Lobo) não são de nossa normatividade. Afinal, o que desestabiliza quem não anda com o mesmo equilíbrio?



As apostas são basicamente a mesma do curta-metragem. Estamos em um microuniverso onde os pequenos atos do cotidiano entre três adolescentes se assemelha muito à grande parte da classe média brasileira. Seguimos os três em sua fase de transformação e afirmação. Leonardo, o garoto cego, tem uma mãe demasiadamente preocupada (mas uma preocupação justificada), um pai que busca melhor diálogo e uma avó nostálgica. No primeiro momento, parece que sua vida é uma prisão. A mãe evoca em muitos instantes sua anormalidade visual. Isso reflete em suas indecisões, seus tremores e incertezas.

Diante de todo esse cenário que surge Gabriel. Assim como Leonardo, ele é uma pessoa ingênua, muitas vezes esquecendo a cegueira do amigo e sugerindo ações visuais. Gabriel explica um fenômeno natural para o amigo- um eclipse- Leonardo responde que “acha que entendeu”, compartilham uma dimensão nova. Por alguns minutos que o diálogo se manteve na linha do imaginário, supostas dificuldades foram suspensas. Leonardo, por algumas vezes, se abre ontologicamente com o amigo. Da mesma forma que ambos trocam figurinhas sobre música clássica e popular, ou no momento que Gabriel faz Leonardo dançar. Eles estão trabalhando novos sentidos, o que fortalece sua conexão. Há uma harmonia que conflui (estranhamente hoje em dia) para uma espécie de pureza, um terreno liso.

As situações dramáticas envolvem os três adolescentes e suas micropaixões. Diversos sentimentos em que um esboço de raiva, inveja, ciúme e descobrimento invadem as personagens. Gabriel é bonito, as meninas da escola olham para ele. Ele é tão extrovertido e natural, que faz com que três pessoas se sintam atraídas. Balanceando com cuidado para não cair em clichês estereotipados, Daniel Ribeiro induz a ansiedade de amor por pessoas que mal sabem lidar com sentimentos (mas afinal, quem sabe?). Por isso as risadas, as cenas de ternura- é um depoimento de uma adolescência encantada em seu círculo social, que não conhece a brutalidade das grandes metrópoles, mas ainda assim real e condizente com certa parcela da população.






O desejo entre Leonardo e Gabriel cresce tenuemente, como a descoberta do outro como ser sexual/romântico na adolescência. Representando a sociedade ainda aprisionada por conceitos prévios ocultos, Giovana não vê essa possível relação homossexual no primeiro momento. Mas ela é uma menina boa- como é demonstrado durante o longa-metragem- e depois de concebida essa ideia, acha legal. As brincadeiras que os colegas de escola do trio fazem com a relação ainda inexistente entre ambos os amigos, beira brincadeiras prestes a se tornar uma opressão psicológica. Na última cena, a reação do casal é uma das coisas mais sutis e tocantes. Incrível que, com tamanha delicadeza, Daniel Ribeiro demonstra uma afirmação do indivíduo em todo vigor, ainda em plena adolescência.

Há, entre o que é amarrado no roteiro, o garoto cego e as nítidas referências à insegurança quanto à homossexualidade, metáforas que se convergem para uma descentralização no tocante ao tema. A cegueira simboliza alguém ainda não iniciado. Leonardo é inseguro, quer saber com sua melhor amiga se é bonito, se seu corpo é legal. A criação da autoimagem é barrada pela falta de referência visual, identificação e desejo de cópia. Qual a lógica de um menino desses ainda vestir o conceito do mundo? Hoje Eu Quero Voltar Sozinho, por simples diálogos e situações, investiga a formação do ser quando este não está embutido no social, e dessa vez, ele até é aceito de onde, por limitação, não consegue se encaixar.

E é justamente por causa dessa casca maluca, onde estão totalmente expostos às aberrações do mundo, que Leonardo e Gabriel são fortes e imunes às brincadeiras dos amigos. Então essa localização do “eu” está justamente no compartilhamento mais profundo com o outro, onde a questão da autoimagem é pulverizada em função de uma relação de confiança. A cegueira torna as outras questões pequenas porque o protagonista é guiado pela emoção. Essa emoção e concentração na caracterização da formação do indivíduo é a mola propulsora que enfrenta qualquer irracionalidade homofóbica. Por que é tudo muito simples que até os cegos podem ver- infelizmente, a tradição e a outrofobia teimam em deixar tudo complexo.

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