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quarta-feira, 9 de abril de 2014

Gilmore Girls, Parte I- A democratização da cultura.




Viver é lutar contra os demónios do coração e do cérebro. Escrever, é pronunciar sobre si o último julgamento”, Henrik Ibsen

Rever Gilmore Girks (G.G), além da nostalgia, talvez me dê pistas do caminho que venho tomando na tão banalizada estrada da vida. Na primeira vez que vi a série, toda tarde na Warner Channel (segunda à noite eram os episódios inéditos), fiquei maravilhado. Continuo, ainda. Enredo simples que envolve diversos contextos em uma cidade onde parece que nada acontece, mas é só impressão. Nós, jovens que só queremos abandonar nossas desgastadas cidades que caíram na mesmice, nos identificamos logo com Rory. Poxa vida, também cresci amando literatura, coisa que ninguém a meu redor parecia se importar. Televisão está tão carregada de bobagens que nos esquecemos de algumas pérolas pelo caminho.

Lembro que parecia um evento quando começava qualquer episódio da série criada por Amy Sherman-Palladino. Recomendei essa série para muitos amigos durante o colegial, obviamente que estes preferiam assistir a ação desenfreada (e boba) de Smallvile ou ficar intrigado com os mistérios (cada vez mais chatos) de Lost. E de fato, se alguém importa verdadeiramente com alguma ação, isso G.G cumpre- é só reparar na velocidade dos diálogos, movimentação cênica das personagens. Estávamos crescendo, é verdade. E talvez isso já indicasse que seria um pouco diferente da média, pelo menos do saudoso Colégio Vinicius de Moraes (você acha que é diferente até conhecer São Paulo de verdade).



É indispensável falar em toda cultura- do erudito ao pop, marxismo à Fantástica Fábrica de Chocolate- que abrange Gilmore Girls. Um minuto por página escrita de diálogos é o tempo médio de um seriado, bem, Sherman-Palladino reduziu isso a uma página a cada vinte segundos. Tantas palavras significaram aos produtores contratar “técnicos” de dialogo para os atores. Metalinguagem pode ser mais característica às obras unitárias, como um romance ou filme, mas aqui há um fluxo constante de intercambio cultural. O mais legal de tudo é que você não precisa entender as inúmeras referências para achar graça. Ceder a certo tipo de elitismo cultural-artístico não faz o jogo das séries de televisão americana, mesmo que seu criador assim seja. Revendo G.G, consigo entender muito mais as alusões, que conseguem lidar comedidamente com tudo o que nos envolve.

Como sempre gostei de literatura (inúmera referencias são feitas a esse assunto) assistir Gilmore Girls é sinônimo de boas piadas. Elas digerem enorme quantidade de comida junk, tanto que você pensa: “cara, como elas não engordam?”. Mas tudo nessa série é feita por um considerável exagero. Aliás, toda a série é baseada na repetição- o comportamento de Lorelai com os homens, alguns filmes que estão sempre revendo, poemas que estão relendo. Impossível não apreciar o cíclico e rico mundo criado, com diálogos que enriqueciam tanto o drama que até esquecíamos a linha principal. Tudo fica gravado na memória: a música inicial, o jeito da mãe de Rory mover o cabelo, a neurose da mãe coreana. O conhecimento de Sherman-Palladino não é transmitido de maneira pedante, mas sempre engraçado ou dramático. Sério, parece um poço sem fim de tanta elegância e manejo com as palavras. O dialogo também é exagerado, em um mundo catalisado pelo foco no relacionamento humano.

 
Junto com toda essa mistura cultural que as personagens conseguiam manejar, de filmes secretos a entretenimentos de massa, estão os relacionamentos humanos e como os diálogos inserem a erudição em situações de atrito. Encontrei em Gilmore Girls uma cultura progressista, onde as pessoas tem o direito de saber tantas coisas. Escritores franceses, animações non-sense e melodrama variam para formar a teia de intercambio. A forma de relacionar o passado com o presente é tão natural e com uma estética plenamente artística que quase esquecemos que era um seriado da Warner e não da HBO. Podendo os espectadores assumir a formação das pessoas- não havia pré-informações antes de uma personagem aparecer. Sem deixar pontas soltas- muito similar ao que ocorre em Parks and Recreation.

Gilmore Girls demonstra que alta cultura e entretenimento popular não precisam ficar tão longe. De certa forma, a série é uma sátira de análises acadêmicas sobre temas teoricamente rasos, digamos uma música do Luan Santana, enquanto simboliza a união de diferentes abordagens na mesma estética- praticamente livres das imposições que Harold Garfinkel via nas pessoas comuns, sabiamente descuidadas em algum âmbito sentimental. Quando entrevistei a vanguardista Christina Vantzou para meu blogue, ela me disse que o que eu gosto é pop para mim. Jogando isso para G.G, não há porque não referenciar elementos de uma cultura dita erudita se as personagens estão fascinadas por isso! Qualquer escritor queria muito misturar, com tamanha elegância, formação em cultura de massa como televisão e futebol, leituras do Nietzsche, os estudos de improviso de Coltrane,etc.



Entre as coisas que eu aprendi em Gilmore Girls, toda essa mistura é a mais legal, está tudo bem gostar de Heidegger e ouvir Stravinsky ao mesmo tempo em que fico alucinado assistindo uma final de Liga dos Campeões e melodramas. Exceder os limites comuns é viver mais, pulsar com intensidade.

Além disso, a série indica as diferentes aleatoriedades que formam uma pessoa culturalmente, composta de diversos interesses. Em G.G, o excesso sugere não estar em um estado passivo- a série perpassa por quase todas as sensações, com exceção do tédio, é impossível ficar entediado assistindo. Embora todas as categorias que abrange (e acredite, não são poucas) possam parecer demasiadas contraditórias, o paroxismo indica uma esquizofrenia cultural no melhor sentido. A constante recapitulação de obras de arte por Lorelai também sugere que absorver não é uma coisa simples. Em um sentido mais amplo, pode ser um passo a passo de formação do individuo em uma Era tão conhecida com o substantivo “pós”, muito em função de não fazermos ideia do que significa essa avalanche de informações e como retê-las.



Conversas longas, dramáticas, tragicômicas, certamente habitam o incomum universo imaginário descrito por Sherman-Palladino. As múltiplas referências que verdadeiramente se multiplicam ao longo do desdobramento dos diálogos escapam da monotonia de um dia a dia convencional. Altamente influenciado por séries de televisão dos anos 50, as conversas certamente são os momentos que aperfeiçoam a qualidade da série. Embora haja uma atuação muito competente do vasto elenco, indubitavelmente Alexis Bledel não interpretará outra Rory, pela singularidade da criadora de G.G. Pois bem, não é na atuação que se encontra o desenvolvimento dramático do enredo, a ação ocorre basicamente nos diálogos. A atuação está garantida desde que as falas estejam na ponta da língua, exceto raríssimas exceções. A movimentação rápida e explosiva deixa o telespectador sem espaço para respirar. Excessos é a virtude de Gilmore Girls, as repetições e diversas referências insinuam um movimento contínuo. Não à toa, comparo assistir G.G com as peças de Henrik Ibsen. Eu sei, eu já estive nesse campo, e Palladino joga nesse time.

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