“Hoje, mamãe morreu.
Ou talvez ontem, não sei bem”, Albert Camus.
Houve um tempo melhor, houve a
infância que não vivemos como lembramos, mas a nostalgia torna a vida não
vivida carnal. Houve alguma origem (e aqui não trataremos de mitos) que nos fez
chegar onde estamos. Há também uma necessidade não diagnosticada da massa
atribuir autores às ideologias específicas- e aí, Ian McEwan representa na figura de Darke o tema da ambivalência e representação ideológica. Sua
literatura trata de problemas contemporâneos porque lida com fracassos- o
escritor intelectual que acaba realizando livros infantis, a professora de
física que acaba servindo o marido político que não tem ideais específicos- as
personagens que transitam por A Criança
No Tempo já aceitaram o fracasso como intrínseco a existência par excellence. A estrutura não linear
parece ressaltar a onipotência do fracasso em situações supostamente desconexas
entre si- talvez o mito da origem resida em fracassos.
Um dos mais destacados autores
contemporâneos, Ian nasceu na Inglaterra (21 de Junho de 1948). Passou parte de
sua infância no Extremo Oriente, na Alemanha e no Norte da África. Conquistou
prêmios importantes como o Man Booker.
Em A Criança No Tempo, o autor
relata uma relação fria com seu país de origem, uma Nação de pessoas perdidas
que não sabem bem o que fazem. O escritor que vive tomando uísque e assiste
esporte, o político que não sabe se deve defender o lado liberal ou
conservador, mas que sustenta o argumento que “do lado que estiver, vai
vencer!”.
O livro atua como uma roda viva
descrevendo situações sem preocupar-se com a sequência lógico-linear destas.
Uma faceta subterraneamente desenvolvida são os anos adolescentes do
protagonista, Stephen, em que desdenhava da ordem do “mundo adulto”. Já na
meia-idade, lembra-se ironicamente de seus anos de formação, enquanto toma uma
cerveja com seu pai depois de ter arrumado o gramado. Aqui não há uma crítica a
paradoxos vividos, só a constatação latente do desajuste que a vida não só
oferece como impõe. Os conflitos das personagens são destacados mesmo dessa
forma, sem grandes exaltações, ironias ou coisas do tipo; até os embates são
desajustados, quietos, passivos. Para estas não importa muito a liberdade, elas
vivem enclausuradas em momentos, por isso a surpresa do primeiro-ministro ao
saber que Darke, político pretensioso
com rápida ascensão na carreira, retira-se para viver em sua casa de campo. A Criança No Tempo é uma constatação do
desajuste permanente que implica ser humano. Na literatura de McEwan é verificado como o passar dos
anos não sobredestaca acontecimentos
(desde os mais espantosos como a filha para sempre perdida, até memórias
simples de férias de verão). O livro, portanto, é um relato da condição
memorialística sobrepondo-se a um presente que sempre parece nulo.
Como no primeiro romance de
Stephen, que ironicamente torna-se um livro infantil, nesses relatos oferecidos
por Ian, não sabemos exatamente seu foco ou localização. O texto aparentemente
leve carrega consigo devaneios de profundo impacto em Stephen- sonhos sobre a
infância, imagens passadas borradas. Nelson Rodrigues falava que “não se faz
literatura com bons sentimentos”, mas Nelson já pensava em protagonistas com
caráter positivistas, oras; Stephen não sabe o que habita! MEwan já afirmou ser fã de Irène
Némirovsky, e os casos de Stephen talvez antecipem o perdido Dario Asfar (O Senhor Das Almas). O
sentido de desgaste, um anti-herói que se locomove sem muita ideia do tempo,
por isso a estrutura toda fragmentada para representar alguém que não passa de
estilhaços de vidro. A experiência vivida pode parecer brutalmente real
enquanto acompanhamos seu momento de tédio insignificante nas reuniões
comandadas por Lords e importantes
intelectuais.
O leitor lentamente percebe ao
longo do romance o círculo vicioso que a vida de Stephen se torna. Mesmo com as
pequenas (dês) venturas que seguem, parece que nosso herói está compelido em
dias vazios tomando uísque assistindo as Olimpíadas. Apesar do tédio das
reuniões, ou da visita à casa dos pais, o que salva Stephen são situações que
não tem que enfrentar a si mesmo. Não por acaso, sua vida melhora (ou não se
torna tão infeliz e deprimente) quando -depois de uma situação que é das mais
tristes e brutais dentro da literatura, ao ter noção exata da perda da filha-
ele começa a praticar árabe e aulas de tênis. As entrelinhas preparadas por McEwan não são claras, você pode querer
enfrentar o destino, mas talvez este apenas ofereça o que sempre cedeu.
McEwan em Berlim, 2005 |
Perdido no cotidiano
Enquanto avançamos no romance,
nasce uma dúvida, Stephen é realmente passivo ao ponto de não agir bruscamente
nem quando perde sua filha, um lunático quando compra presentes para uma
criança que já não existe, ou apenas alguém incrustado na densidade do
cotidiano e todo desgaste rotineiro? Ele merece nossa empatia? Até quando está
deprimido, não conseguimos evitar certa comicidade no homem rabugento
assistindo programas imbecis sobre casais na televisão. Mas depois de sua prova
de fogo- a noção exata da perda da filha- quando cai no abismo que há tempos
evitava, Stephen reencontra alicerces. McEwan
pinta um cenário em uma cidade que troca de clima assim com a montanha-russa
que está Stephen. Seu subconsciente não é evidenciado, não há aqui monólogos
internos reveladores, e sim situações confusas porque a vida é confusa!
A narrativa é sobre a
complexidade que é reerguer-se de uma perda. Mesmo que os signos de vida
estejam evidentemente claros- a política para Darke, os livros infantis para Stephen- as personagens estão todas
confusas no que deveria ser o habitat natural destas, não temos hospedeiro e
inventamos nossa salvação, é o que parece dizer McEwan. As pessoas que percorrem a história não têm matizes, mesmo
assim estão presas. Ao mesmo tempo em que a vida de Stephen fica insuportável,
parece que tudo pesa para o leitor, nada mais é fácil e ninguém é ingênuo, a
não ser o ranzinza que perdeu sua filha no supermercado. A história é a
alegoria perfeita sobre confundir sentimentos, transformar situações.
A abordagem crítica também
envolve o social como pano de fundo, uma Inglaterra rodeada por mendigos. O
protagonista da história sente em dever com eles, sabe da suposta relação entre
seu confortável estilo de vida e a decadência social que o país atravessa,
mesmo assim teme. Em certa cena, Stephen dá seu casaco por pena para uma
moradora de rua, mas se arrepende disso poucas horas depois, quando fica com
frio em um chalé. Enquanto esse lado é traçado na trama, vamos vendo os
insights que acontecem com ele, lembranças aparentemente desconexas. Somos
levados a perceber que na vida não há recompensas, não há troca equivalente.
Freud nos fez perceber a complicada linguagem intricada que é a mente humana,
que tudo é desenvolvido em função de supostos traumas, Stephen é um caso típico
freudiano. Mas não é uma interpretação rasteira o que acontece, Stephen já
admitira certos fracassos antes mesmo de perder a filha, e a palavra culpa não
é realçada na história, aliás, nem parece ser o maior mal do protagonista.
Quando adolescente este teve uma vida intensa, afinal, por que raios ele
vagarosamente se tornou um depressivo bêbado? Às vezes ele deseja a mulher que
faz parte da conferência sobre um manual de puericultura, mas isso passa
rapidamente porque ele já não engancha em nenhum futuro possível. Seu isolamento
não parece ser consequência do seu sentimento de culpa, e sim a simples
aceitação do que a vida oferece. A perda, nesse sentido, é a vida, e como
lidamos com ela a partir de situações traumáticas é o maior desafio.
Principalmente porque as assombrações
não desaparecem, o que resta é conviver com o fardo que se chama memória. McEwan ilustra nossos eternos desvios em
aceitar a dor. A qualidade do romance reside nas personagens buscando o tempo
inteiro algo para se ancorar- Dark
nos livros infantis, a mãe de Kate na música- e errando constantemente, como na
dolorosa cena em que se descobre um homem morto debaixo da árvore em meio à
neve. A literatura de Ian ressalta a disfunção onipresente que carregamos
conosco, mas também aborda certa gentileza austera, como o maquinista que por
simples vontade aceita dar carona a Stephen na emocionante sequência final. McEwan não traça um romance limite, mas
sim analisa os micro-universos das pessoas que circulam por uma Londres
complexa. Sua literatura alerta para a sobrevivência perante ilusões, traumas e
o presente.
Nenhum comentário:
Postar um comentário