A variação de gêneros no Brasil
tem sido cada vez mais evidenciada pela dissolução do império “sertanejo” e
afins. Pensem que, no imaginário de certa juventude, ficar difícil fazer uma
associação livre entre lugares físicos e gêneros musicais. Na verdade,
constrói-se um labirinto de influências e ramificações, de tradições
desconstruídas e também prolongadas. Pode-se encontrar essa difusão sonora em
Goiânia, terra dos Boogarins. Levando para o lado positivo do verbo, a banda
tenta realmente “inventar” sonoridades novas através de caminhos conhecidos.
Eles fazem essa “caminhada” no escuro para ampliar as possibilidades
instrumentais da banda.
Eu não sei até qual ponto a
“intuição” é um fator para a composição do grupo, mas mesmo assim, a música do
conjunto me parece fortemente apoiada na intuição, em sessões livres em que
encontram elementos que os agradam e são melhores lapidados para entrar no
disco. Tudo soa, mais que um relato íntimo, como uma exposição do ambiente que
os cerca. “Manual [...]” é uma tentativa de evasão para lugares onde a intuição
pode levar, é uma caminhada fermentada pela proximidade física dos signos que
compõe o habitat do conjunto.
O disco é próximo, parece algo que sempre
ouvimos. Mesmo assim, é difícil de explicar e de entender. Quero dizer, é
difícil dizer o que esperar de “Manual [...]”. Com uma sonoridade que resgata
certa estética dos anos 1960, o Boogarins usa reverb e letras que buscam uma estimulação mais onírica. E não
sabemos em que lugar nós vamos parar, pois essa veia psicodélica é tão gritante
que nos causa uma imersão no “instante”. É como ir de encontro a uma massa
sonora (que não é agressiva, até é reconfortante, como eu disse) e deixar que
ela se entregue por você. É preciso ter a noção de que a “naturalidade” das
progressões do Boogarins não apela para truques; elas são fonte da intuição do
grupo.
Enquanto todo um fluxo
imprevisível percorre o disco (mas não deixa de ser um fluxo extremamente não
agressivo), começamos a nos importar com questões como “ok, mas SÓ essa massa
sonora que vai preencher todo o trabalho?”. Mas não podemos esquecer que esse
suposto manual do Boogarins é o próprio registro de um ambiente bastante
surreal (a julgar pela capa) que é propagado não por seu retrato, mas pela
percepção da sua irrealidade. Sem parar com essa catalogação do irreal, mas
também perdurando uma grande dúvida de “não é só resgate que a banda realiza?”
que podemos definir “Manual [...]”. Aí, pode-se cair em questões subjetivas, de
“se eu gosto tudo bem, oras”. Até os efeitos que eles podem trazer, podem-se
perguntar outras coisas, talvez mais importantes, “até que ponto de afogamento
eles nos levam que esqueçamos coisas tão secundarias (conceitos) na música?”.
Porque o que sentimos ao ouvir um álbum é o que mais importa no fim das contas
e tentativas de causar sensações não faltam para o Boogarins.
Esses são os riscos de discos tão
pautados em subjetividades extremas como a intuição, ao mesmo tempo em que é o
fator que propulsiona o Boogarins um álbum tão esperado pelos fãs. Não é sobre
lealdade, mas sobre o aguardo de algo que eles possam se relacionar. Não há
nada em “Manual [...]” que não foi utilizado no último disco- o mesmo clima de
“sonho”, de contemplação e de imersão em signos espaciais. A libertação da
áurea que eles mesmos criaram não acontece e não é como se eles buscassem isso.
Que o Boogarins tem grande
capacidade com reverbs e estruturas psicodélicas eu não tinha dúvida,
infelizmente, em “Manual [...]” não foi possível saber se eles caíram nesse
conforto ou apenas são realmente estacionários nesse estilo. Sons tão parecidos
demoram para se desvencilhar do lançamento anterior e o disco ser enxergado
como uma unidade dentro da discografia da banda. Não acredito também em
comparações que muitos fizeram com o Tame Impala que, embora talvez realmente
tenha influenciado o Boogarins, tomou um rumo extremamente covarde no tocante à
continuidade em sua discografia. Penso em “Manual [...]” como um disco
exatamente igual (no conceito) ao primeiro.
E aqui eu devo me contradizer
novamente e afirmar que quando se tem uma banda tão intuitiva como o Boogarins
essa nivelação de conceito pouco importa. Sente-se a inclinação da banda em
fazer música corporal, sensorial. Fala-se, nas letras, muito sobre “sentir”,
sobre ultrapassar os prédios e isso por que o Boogarins deixa passar e esquecem
“o tempo todo”. Essa junção onírica de sintetizadores e distorção forma um
bloco sonoro que nos propulsiona inevitavelmente a algo. E essa é a invenção da
banda, essas intuições que são demonstradas tão bem sonoramente. A banda quer
algo que não é definitivamente claro; ela quer misturar tudo sem ver, ela quer
passar esse ambiente que os cerca da maneira mais fiel possível dada a percepção
do conjunto. Por isso, tal incompletude em “Manual [...]” não me soa como um
espaço vazio não preenchido. Soa-me como o registro de uma busca contínua.
Até as repetições podem ser
distorcidas, podem ser revisitadas e mostram que o passado se repete (em outras
músicas) que o Boogarins lança seu segundo disco. É difícil mesmo de deixar uma
impressão que não seja confusa sobre o último disco da banda. Ao mesmo tempo em
que temos um disco muito parecido com o primeiro, é impossível negar o talento
dos rapazes com os reverbs. Pode-se esperar que eles acrescentassem mais
elementos em sua sonoridade nos futuros trabalhos, e que a recorrência da “estética
psicodélica” seja outro bom escape deles e não apenas o único e principal. Seja
o que for, “Manual[...]” ainda expõe uma banda
que realiza sons instigantes em sua zona de conforto.
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