A primeira vez que eu viajei para Ibitiúva nós pegamos uma estrada de terra e eu lembro de estar ansioso e apressado e da dispersão poeirenta levantar embaçando a vista dos que estavam no carro. Da última vez que toda minha família se reuniu eu ainda não sabia de nada; eu não sabia das drogas e dos monstros que cada um de nós viraria, do inferno que os feriados familiares viriam a se tornar. Engraçado que naquela época eu pensava que futuramente olharia para estes momentos como alguma saudade de, sei lá, uma suposta inocência. Eu esqueci quase todos os momentos. Eu esqueci qual foi efetivamente meu primeiro beijo, eu esqueci a primeira vez que eu ralei o joelho e eu esqueci até mesmo os momentos que, naqueles instantes, eu prometi nunca esquecer. É como se eu tivesse voltado à estrada de Ibitiúva (engraçado como dela eu lembro) e tentasse clarear estes momentos apesar de toda poeira levitando e se acumulando nas minhas lembranças. Eu não fui em nenhum funeral de nenhum parente e nem do meu amigo que se matou que eu falei no outro post e eu acho que nos dias dos funerais, especialmente, eu devo ter ficado observando as nuvens formando distantemente e pensando qual seria o meio ideal de acessá-las. Melhor dizendo; lamentando-me pela certeza absoluta da impossibilidade de acesso ao Natural. E então eu ficava envolto no jogo humano, na simulação cotidiana pressionado muito por não chorar o quanto aquelas situações exigiam
Eu poderia viver com o peso de uma suposta culpa por nunca ter estado lá para ninguém pois eu sempre selecionei os poucos por quem eu estaria lá (pouquíssimos, na verdade), mas sempre sem algo que me conectasse com o fato de estar presenciando algo. E aos poucos muitas pessoas foram me desprezando (ou eu apenas achando que elas me desprezavam assim como o inverso deve ser verdade) e claramente todas foram colocadas de lado não apenas pelo tempo ou pela imposição da vida-cotidiana mas por este seletivismo estranho do cérebro em atribuir funerais e passagens à outro plano de pessoas ainda vivas
Meu tio morou no fundo de nossa casa até 2002, salvo engano. Ele bebia muito e meu pai ficou bem puto porque uma vez ele esqueceu o gás aberto e quase meteu fogo na casa toda. Eu não sabia muita coisa naquela época e não entendi porque meu Tio sempre educado embora sempre cheirando suor (que só anos depois eu fui entender que era acúmulo de álcool com o suor propriamente dito) causava uma sensação estranha nos meus pais. Eu lembro que ele era sócio-permanente dum clube bem chique em Santo André, o Atlético Aramaçan- embora hoje seja meio esquisito questionar como alguém que precisava morar na casa dos fundos da minha família classe-média baixa fosse membro de algo tão inatingível pra gente (das poucas vezes que eu lembro meu pai mirando um ponto alto ele falava sobre, algum dia, se tivesse condições, ser membro daquele clube e ai nós poderíamos jogar bola todo final de semana e nos dias quentíssimos de verão ir à piscina. Essas coisas)
Meu primeiro beijo efetivamente foi com N e eu devia ter, sei lá, quatorze anos embora para não passar vergonha porque praticamente todos da minha classe já haviam beijado eu mentia e dizia que meu primeiro beijo tinha sido aos 11 anos- e eu menti tanto nisso a ponto de muitos anos depois eu realmente confundir a idade do meu primeiro beijo. Eu tinha apenas 14 anos e ela me envolveu com seus braços e eu meio que lembro dos seus olhos verdes e da porta da sala-de-aula fechada e vários meninos e meninas muy jovens observando pelo vidro quadrado centralizado na porta-azul. Eu lembro que gostei e lembro que tinha gosto de menta- o mesmo gosto de menta que eu sentiria em muitos beijos anos depois. O que eu não imaginaria é que o gosto de menta variaria abissalmente para; maconha, cerveja, vodka barata, vinho barato, bafo matinal, halls (preferencialmente preto). Não importa a cor-do-cabelo, não importa a cor dos olhos ou o tipo físico; o catálogo essencial dos beijos que nos são dados nós atribuímos por critério de qual outro sabor externo influenciava na beijação
Naquela escola - a do primeiro beijo- eu fiquei até o primeiro ano do colegial e depois fui para outra escola muito bem vista em Santo André. Naquela época eu amava televisão e ficava assistindo ESPN Brasil o dia todo e eu meio que praticamente sabia tudo sobre futebol. Santo André designa claramente seus filhos à pertencerem, de uma maneira ou outra, à classe operária estereotipada do ABC paulista. Um histórico muito mais de desavenças, competitividade e liberalismo reacionário do que o sindicalismo heroico que certa parcela da esquerda sempre atribuiu à gente. De alguma maneira, ser do ABC era sempre querer estar numa metalúrgica que pagasse razoavelmente bem e andar sob o sol escaldante com macacão de peão enquanto atribuía-se todo o esforço para uma potencial compensação futura
Eu passava o dia jogando videogame e assistindo televisão perguntando-me quando as coisas efetivamente aconteceriam. E para simular que elas objetivamente aconteciam, eu mentia em excesso para meus colegas de escola sobre supostas noitadas enquanto o máximo que eu fazia era trocar uma ideia com meia dúzia de fodidos todo final de semana na Liberdade. Disso eu lembro bem, mais do que a maioria das pessoas que eu beijei ou dos motivos que me fizeram cursar cursos quais eu nunca me importei. Quando o meu ex-amigo, também chamado Henrique, foi preso, eu me senti meio esquisito. Ele que me mostrou Gorillaz quando ambos éramos ainda muy jovens e ele era meio que referência para jogar CS na lan house do bairro que todo moleque da rua ia
Quando eu era novo meu pai sempre arrumava um jeito de me dar dinheiro mesmo ambos sabendo mais ou menos que aquilo iria fazer alguma falta, eventualmente. Eu presenciei como alguém pode sacrificar-se pelo filho e quando as coisas melhoraram financeiramente e quando eu cresci e comecei à trabalhar é claro que eu depositava algum dinheiro em sua conta. Mas ele sempre devolvia quase tudo e embora ele não entendesse propriamente o mundo de músicas e livros e filmes no qual eu estava entrando essa era a sua maneira mostrando que sempre estaria lá. Não devia também ser muito fácil para ele ver o filho de todo mundo ao redor se dando bem na vida de um jeito ou de outro enquanto eu estava numa frustração enorme comigo mesmo e também com o mundo e ficava pensando obsessivamente nessas coisas submetido à utopia-teórica de Thoreau ou à agressividade de blogueiros ricos mostrando como dava para levar "o seu estilo de vida" e era naquele desacerto eterno em descompasso com a aceitação que eu andei muitos anos (e ainda resvalo nessa projeção que, no final, é tão abstrata quanto o estilo de vida que eu sempre critiquei). Não é também como se eu me crucificasse por isso; era o que dava para fazer/ser na época, e eu perdi muitos potenciais amores e potenciais amizades não por ser quem eu era, mas por nunca saber exatamente como começar a ser alguma coisa
Sempre que tá passando O Chamado em algum canal de televisão eu deixo nele e lembro que foi o filme de terror que mais me deixou cagado na vida. Eu o vi com meus pais, ainda muito novo, e tive que pedir para dormir com eles na cama de casal porque literalmente não conseguia fechar os olhos- naquela época eu ainda acreditava em deus ou em fadas ou que o ar pudesse pegar fogo. Eu dormi tantas vezes na cama dos meus pais quando era muito novo e devo tudo aquilo à um terror abissal da noite e do seu obscurecimento brutal de possibilidades (engraçado como depois a noite representaria em drogas e bebedeiras os únicos momentos que eu sentia estar no meio de algo). Um pouco depois dessa época atordoada e um pouco antes do meu primeiro emprego todo final-de-semana eu ia ao shopping com meu amigo T e nós íamos à pé para economizar dinheiro porque a gente juntava para, depois, comprar uma garrafa de vinho barato e descer a Rua Figueiras fingindo sermos adultos ou qualquer besteira dessas. Os verões de Santo André se resumiam em andar pela rua, jogar bola na rua e depois surgiu um videogame que eu fiquei vidrado tantas e tantas tardes. Henrique deveria estar fazendo o que na época? Eu não lembro em qual ano ele foi preso e depois saiu e eu o vi tomando uísque com energético na padaria próxima de casa e, honestamente, imaginei que veria aquela cena muitas vezes novamente até que na outra semana ele foi preso novamente e só seria liberto cinco anos depois (suponho, então, que ele já saiu, né?). A "Samara" imponente no monumento de Verbinski ao horror e a impossibilidade de redenção que tal gênero sempre precisou- quando tentaram fazer dela uma espécie de incompreendida ela foi lá e matou aquele cara e eu fiquei bem puto pensando "porra por que se já tava tudo bem" e eu carrego, desde então, daquela primeiríssima vez que assisti O Chamado, um respeito enorme pela menina morta subindo o poço cujo rancor e desejo de destruição sempre esteve muito além de qualquer compreensão (às vezes, andando por Lavras, eu acho que sinto um pouco do que "Samara" sentia). Eu ficava hipnotizado com o Horror na tela e Henrique devia estar hipnotizado com as coisas muito mais reais e brutais do que qualquer suposto horror fictício
" o Marcos morreu hoje" e como a gente advinha que foi suicídio e não uma morte mais ou menos comum? Como a gente se acostuma com as trocentas perdas per ano que a gente tem a ponto de esquecer a configuração do rosto ou a levitação da sobrancelha direita no rosto de quem a gente supostamente amou? O olho maníaco do outro desejando nossa destruição e nossos olhos provavelmente expressando a mesma coisa? É muito estranho porque essa familiaridade que se transforma em Horror (a "Samara", novamente) não faz só a gente perder o empenho como ficar paranoico com os símbolos que nos rondam a ponto de atribuir à estes uma especificidade doentia e qualquer objeto comum se tornar num Horror potencial. E aqui eu quero dizer do verdadeiro Horror; aquele que faz sua cabeça ficar acelerada pensando mil merdas diferentes de pessoas antigamente próximas e que te faz ter um vislumbre da Realidade e você ver, bem nitidamente, quão ruins as pessoas conseguem ser e ficar espantando com o próprio ódio que, de repente, nasce em ti
"E" costumava vir na frente do portão da nossa casa e me chamar e eu ficava feliz porque por algum tempo ele meio que foi meu melhor amigo e eu lembro de ir ao Estádio Bruno Daniel com ele e sua família assistir algum jogo do Santo André. Minha mãe que normalmente atendia e dizia "o Henrique já vai" e ai eu não lembro exatamente o que a gente fazia mas eu suponho que era ou jogar bola ou jogar videogame (eu não consigo lembrar se já existia lan house no pouquíssimo período que "E" e eu fomos melhores amigos). Em algum ponto da sua vida ele se tornou evangélico (daqueles que vai de terno-e-gravata e coisa e tal à igreja) e não dá pra condenar suas artimanhas para escapar do pai alcoólatra (embora nunca agressivo). "o Henrique tá ai?" é o que ele costumava perguntar meio sabendo que sim, eu estava. Imagino que quando minha mãe respondia "hoje ele não tá" ele deveria ficar surpreso e imagino que ele saía da sua casa (uma casa de aluguel em cima de uma loja de vassouras) sempre com a certeza de que eu estaria lá pois eu saía pouquíssimo. "E" e eu costumávamos rir bastante e, novamente, eu falho em lembrar sobre o que, precisamente. Acho que ele vai surgir cada vez menos na minha memória mas eu meio que fico feliz porque eu não consigo lembrar dum momento ruim entre a gente
Eu acordei hoje, 27 de dezembro e lembrei de todas essas pessoas e meio que quis escrever sobre elas. Elas vivem e não vivem, elas são abstrações e também são realidade. Tá muito calor aqui e imagino que no resto do país também (será se "E", mesmo neste calorão da porra, vai à Igreja de terno?). Tudo tem passado tão rápido e intrincadamente complexo numa evolução exponencial que às vezes, andando por Lavras e observando seu mar-de-árvores e os montes que encerram este mar, eu penso se dá para simplesmente sumir sem o peso disso tudo. Mas, às vezes, tudo parece tão distante e tão leve e eu sei que deveria me sentir, em algum nível, grato por todas estas pessoas e por todas histórias e lembranças que elas me proporcionaram e ainda proporcionam e, quem sabe, sentir menos este rancor adolescente de algumas delas e, quem sabe, mandar uma carta conciliatória para algumas delas pra quando, sei lá, a gente se encontrar na rua não fingir que não nos conhecemos ou que, em algum momento, estivemos confinados dentro da mesma narrativa. Eu só sinto que meio que não tenho uma narrativa sendo construída, sabe?
Meu tio morou no fundo de nossa casa até 2002, salvo engano. Ele bebia muito e meu pai ficou bem puto porque uma vez ele esqueceu o gás aberto e quase meteu fogo na casa toda. Eu não sabia muita coisa naquela época e não entendi porque meu Tio sempre educado embora sempre cheirando suor (que só anos depois eu fui entender que era acúmulo de álcool com o suor propriamente dito) causava uma sensação estranha nos meus pais. Eu lembro que ele era sócio-permanente dum clube bem chique em Santo André, o Atlético Aramaçan- embora hoje seja meio esquisito questionar como alguém que precisava morar na casa dos fundos da minha família classe-média baixa fosse membro de algo tão inatingível pra gente (das poucas vezes que eu lembro meu pai mirando um ponto alto ele falava sobre, algum dia, se tivesse condições, ser membro daquele clube e ai nós poderíamos jogar bola todo final de semana e nos dias quentíssimos de verão ir à piscina. Essas coisas)
Meu primeiro beijo efetivamente foi com N e eu devia ter, sei lá, quatorze anos embora para não passar vergonha porque praticamente todos da minha classe já haviam beijado eu mentia e dizia que meu primeiro beijo tinha sido aos 11 anos- e eu menti tanto nisso a ponto de muitos anos depois eu realmente confundir a idade do meu primeiro beijo. Eu tinha apenas 14 anos e ela me envolveu com seus braços e eu meio que lembro dos seus olhos verdes e da porta da sala-de-aula fechada e vários meninos e meninas muy jovens observando pelo vidro quadrado centralizado na porta-azul. Eu lembro que gostei e lembro que tinha gosto de menta- o mesmo gosto de menta que eu sentiria em muitos beijos anos depois. O que eu não imaginaria é que o gosto de menta variaria abissalmente para; maconha, cerveja, vodka barata, vinho barato, bafo matinal, halls (preferencialmente preto). Não importa a cor-do-cabelo, não importa a cor dos olhos ou o tipo físico; o catálogo essencial dos beijos que nos são dados nós atribuímos por critério de qual outro sabor externo influenciava na beijação
Naquela escola - a do primeiro beijo- eu fiquei até o primeiro ano do colegial e depois fui para outra escola muito bem vista em Santo André. Naquela época eu amava televisão e ficava assistindo ESPN Brasil o dia todo e eu meio que praticamente sabia tudo sobre futebol. Santo André designa claramente seus filhos à pertencerem, de uma maneira ou outra, à classe operária estereotipada do ABC paulista. Um histórico muito mais de desavenças, competitividade e liberalismo reacionário do que o sindicalismo heroico que certa parcela da esquerda sempre atribuiu à gente. De alguma maneira, ser do ABC era sempre querer estar numa metalúrgica que pagasse razoavelmente bem e andar sob o sol escaldante com macacão de peão enquanto atribuía-se todo o esforço para uma potencial compensação futura
Eu passava o dia jogando videogame e assistindo televisão perguntando-me quando as coisas efetivamente aconteceriam. E para simular que elas objetivamente aconteciam, eu mentia em excesso para meus colegas de escola sobre supostas noitadas enquanto o máximo que eu fazia era trocar uma ideia com meia dúzia de fodidos todo final de semana na Liberdade. Disso eu lembro bem, mais do que a maioria das pessoas que eu beijei ou dos motivos que me fizeram cursar cursos quais eu nunca me importei. Quando o meu ex-amigo, também chamado Henrique, foi preso, eu me senti meio esquisito. Ele que me mostrou Gorillaz quando ambos éramos ainda muy jovens e ele era meio que referência para jogar CS na lan house do bairro que todo moleque da rua ia
Quando eu era novo meu pai sempre arrumava um jeito de me dar dinheiro mesmo ambos sabendo mais ou menos que aquilo iria fazer alguma falta, eventualmente. Eu presenciei como alguém pode sacrificar-se pelo filho e quando as coisas melhoraram financeiramente e quando eu cresci e comecei à trabalhar é claro que eu depositava algum dinheiro em sua conta. Mas ele sempre devolvia quase tudo e embora ele não entendesse propriamente o mundo de músicas e livros e filmes no qual eu estava entrando essa era a sua maneira mostrando que sempre estaria lá. Não devia também ser muito fácil para ele ver o filho de todo mundo ao redor se dando bem na vida de um jeito ou de outro enquanto eu estava numa frustração enorme comigo mesmo e também com o mundo e ficava pensando obsessivamente nessas coisas submetido à utopia-teórica de Thoreau ou à agressividade de blogueiros ricos mostrando como dava para levar "o seu estilo de vida" e era naquele desacerto eterno em descompasso com a aceitação que eu andei muitos anos (e ainda resvalo nessa projeção que, no final, é tão abstrata quanto o estilo de vida que eu sempre critiquei). Não é também como se eu me crucificasse por isso; era o que dava para fazer/ser na época, e eu perdi muitos potenciais amores e potenciais amizades não por ser quem eu era, mas por nunca saber exatamente como começar a ser alguma coisa
Sempre que tá passando O Chamado em algum canal de televisão eu deixo nele e lembro que foi o filme de terror que mais me deixou cagado na vida. Eu o vi com meus pais, ainda muito novo, e tive que pedir para dormir com eles na cama de casal porque literalmente não conseguia fechar os olhos- naquela época eu ainda acreditava em deus ou em fadas ou que o ar pudesse pegar fogo. Eu dormi tantas vezes na cama dos meus pais quando era muito novo e devo tudo aquilo à um terror abissal da noite e do seu obscurecimento brutal de possibilidades (engraçado como depois a noite representaria em drogas e bebedeiras os únicos momentos que eu sentia estar no meio de algo). Um pouco depois dessa época atordoada e um pouco antes do meu primeiro emprego todo final-de-semana eu ia ao shopping com meu amigo T e nós íamos à pé para economizar dinheiro porque a gente juntava para, depois, comprar uma garrafa de vinho barato e descer a Rua Figueiras fingindo sermos adultos ou qualquer besteira dessas. Os verões de Santo André se resumiam em andar pela rua, jogar bola na rua e depois surgiu um videogame que eu fiquei vidrado tantas e tantas tardes. Henrique deveria estar fazendo o que na época? Eu não lembro em qual ano ele foi preso e depois saiu e eu o vi tomando uísque com energético na padaria próxima de casa e, honestamente, imaginei que veria aquela cena muitas vezes novamente até que na outra semana ele foi preso novamente e só seria liberto cinco anos depois (suponho, então, que ele já saiu, né?). A "Samara" imponente no monumento de Verbinski ao horror e a impossibilidade de redenção que tal gênero sempre precisou- quando tentaram fazer dela uma espécie de incompreendida ela foi lá e matou aquele cara e eu fiquei bem puto pensando "porra por que se já tava tudo bem" e eu carrego, desde então, daquela primeiríssima vez que assisti O Chamado, um respeito enorme pela menina morta subindo o poço cujo rancor e desejo de destruição sempre esteve muito além de qualquer compreensão (às vezes, andando por Lavras, eu acho que sinto um pouco do que "Samara" sentia). Eu ficava hipnotizado com o Horror na tela e Henrique devia estar hipnotizado com as coisas muito mais reais e brutais do que qualquer suposto horror fictício
" o Marcos morreu hoje" e como a gente advinha que foi suicídio e não uma morte mais ou menos comum? Como a gente se acostuma com as trocentas perdas per ano que a gente tem a ponto de esquecer a configuração do rosto ou a levitação da sobrancelha direita no rosto de quem a gente supostamente amou? O olho maníaco do outro desejando nossa destruição e nossos olhos provavelmente expressando a mesma coisa? É muito estranho porque essa familiaridade que se transforma em Horror (a "Samara", novamente) não faz só a gente perder o empenho como ficar paranoico com os símbolos que nos rondam a ponto de atribuir à estes uma especificidade doentia e qualquer objeto comum se tornar num Horror potencial. E aqui eu quero dizer do verdadeiro Horror; aquele que faz sua cabeça ficar acelerada pensando mil merdas diferentes de pessoas antigamente próximas e que te faz ter um vislumbre da Realidade e você ver, bem nitidamente, quão ruins as pessoas conseguem ser e ficar espantando com o próprio ódio que, de repente, nasce em ti
"E" costumava vir na frente do portão da nossa casa e me chamar e eu ficava feliz porque por algum tempo ele meio que foi meu melhor amigo e eu lembro de ir ao Estádio Bruno Daniel com ele e sua família assistir algum jogo do Santo André. Minha mãe que normalmente atendia e dizia "o Henrique já vai" e ai eu não lembro exatamente o que a gente fazia mas eu suponho que era ou jogar bola ou jogar videogame (eu não consigo lembrar se já existia lan house no pouquíssimo período que "E" e eu fomos melhores amigos). Em algum ponto da sua vida ele se tornou evangélico (daqueles que vai de terno-e-gravata e coisa e tal à igreja) e não dá pra condenar suas artimanhas para escapar do pai alcoólatra (embora nunca agressivo). "o Henrique tá ai?" é o que ele costumava perguntar meio sabendo que sim, eu estava. Imagino que quando minha mãe respondia "hoje ele não tá" ele deveria ficar surpreso e imagino que ele saía da sua casa (uma casa de aluguel em cima de uma loja de vassouras) sempre com a certeza de que eu estaria lá pois eu saía pouquíssimo. "E" e eu costumávamos rir bastante e, novamente, eu falho em lembrar sobre o que, precisamente. Acho que ele vai surgir cada vez menos na minha memória mas eu meio que fico feliz porque eu não consigo lembrar dum momento ruim entre a gente
Eu acordei hoje, 27 de dezembro e lembrei de todas essas pessoas e meio que quis escrever sobre elas. Elas vivem e não vivem, elas são abstrações e também são realidade. Tá muito calor aqui e imagino que no resto do país também (será se "E", mesmo neste calorão da porra, vai à Igreja de terno?). Tudo tem passado tão rápido e intrincadamente complexo numa evolução exponencial que às vezes, andando por Lavras e observando seu mar-de-árvores e os montes que encerram este mar, eu penso se dá para simplesmente sumir sem o peso disso tudo. Mas, às vezes, tudo parece tão distante e tão leve e eu sei que deveria me sentir, em algum nível, grato por todas estas pessoas e por todas histórias e lembranças que elas me proporcionaram e ainda proporcionam e, quem sabe, sentir menos este rancor adolescente de algumas delas e, quem sabe, mandar uma carta conciliatória para algumas delas pra quando, sei lá, a gente se encontrar na rua não fingir que não nos conhecemos ou que, em algum momento, estivemos confinados dentro da mesma narrativa. Eu só sinto que meio que não tenho uma narrativa sendo construída, sabe?
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