Eu estou doente. Meu nariz escorre muito, febre alta, estas coisas. (coisas que nos lembram que ainda estamos vivos e, curiosamente, são sintomas de nossa morte). Eu escolhi me recolher de tudo aqui no interior; não sei o que eu esperava, como se sair de São Paulo fosse resolver alguma coisa. A casa que deixei em Santo André é praticamente vazia em móveis. Quantas vezes eu tive uma crise de ansiedade naquela casa desfigurada, olhando a parede branca fixa da sala de TV que se descascava indiferente à toda história que aquele lar abrigou? "poderia ser pior". Mas aqueles cantos ouviram choro e a parede insensível continuou sua progressão rumo à decadência
De algum jeito, já faz quatro anos. De algum jeito passou e eu pensei menos do que pensei que iria pensar e, ao mesmo tempo, eu continuo pensando na mesma proporção que exatamente três anos e dez meses atrás. Estranho, né? Eu tentei abraçar tudo neste intervalo; álcool, livros e qualquer outra coisa para permanecer em outro mundo. Eu digo a mim mesmo que você, de alguma forma, estava me observando quando eu estava colando grau, que naqueles flashes luminosos era você quem surgia para instantes depois desaparecer. Mas, mesmo assim, surgir. Essas coisas
Com tanta melancolia rondando, fica difícil não lembrar dos filmes que vimos juntos. Eu não pediria mais nada se eu soubesse que Melancolia teria sido nossa última interação e você dizia coisas como "eu não gostei muito" e eu te disse de como a Kirsten nua pra lua representava muita coisa e você discordaria e a gente trocou um abraço tímido no metrô e daí você foi embora e eu nunca mais te vi. Lembranças tuas surgem meio que do nada, sabe? Enquanto eu fico aqui lendo os livros que a gente combinou que leríamos ao mesmo tempo e depois falaríamos deles enquanto tomávamos uma cerveja qualquer nos barezinhos/padarias/lanchonetes de São Paulo
Você morreu em 2012 e eu não fui ao funeral e eu fiquei trancafiado em casa assistindo toda filmografia do Lars Von Trier como minha homenagem às memórias de nossas interações. Você não aguentava mais a Medicina, você dizia que aquilo te sufocava, mas eu não imaginei que te sufocaria a tal ponto de .. Com um corpo cheio de marcas que não eram de nascença embora eu suspeito que ambos desconfiemos que o ato da tua morte foi apenas a externalização de coisas que você carregava desde a nascença. Sabe?
Os dias em Santo André não mudaram basicamente nada desde que você se foi. Uma coisa ou outra. O mundo, o funcionalismo social, é completamente indiferente às relações afetivas. Nós nos dissolvemos no ambiente e ele adquire corpo e a gente vai sumindo aos poucos. Engraçado como eu lembro só de um tipo de sorriso teu; o aparelho reluzindo à frente dos seus dentes cerrados e brancos. Você me ajudava a achar os filmes de vanguarda e a gente compartilhava isso e suspeito que sabíamos que era um compartilhamento bem maior que provavelmente não saberíamos especificar. Eu ainda to aceitando tudo, absolutamente tudo, embora eu sempre mantive isso debaixo de todas as linhas que escrevi. Eu deixei tudo isso escondido atrás do nervosismo e do rancor para com o mundo, para com as pessoas que ficaram perto de mim- engraçado, sempre temporariamente
Mas aquele livro do McCarthy eu nunca li, nunca tive coragem. Você ia ficar desapontado em saber que dei para um sebo, mas lê-lo com suas anotações de pé-de-página seria meio esquisito, confesso. Então eu improvisei vário textinhos com teu nome (este também é um rascunho, nunca vai ser publicado) tentando dar corpo à uma vida que já era alimento às raízes das árvores de um cemitério que eu nunca vou visitar (você sabe que eu odeio cemitérios tanto quanto funerais)
O que te lavou a fazer faculdade que não queria e como ela foi pesar tanto ao ponto de você sentir tua vida ser uma distância do mundano e você se aperfeiçoou na arte do distanciamento enquanto interagia com as pessoas e eu posso falar tranquilamente que era só o corpo de Marcos que estava lá a ponto de você compreender absolutamente este sentimento de "só o corpo estar lá" e ver que não estava nem dentro de si então de que serviria o mundo, ou a faculdade, ou os filmes cult? Eu assumo que tudo se deteriora e você apenas acelerou este processo
As palavras mansas e uma tarde de um final de semana qualquer olhando São Paulo nublada e quente no fim do ano prestes a cair uma chuva de verão. A catarse que era sempre teu quarto e como sua pele branquíssima adquiria tons vermelhosos pois envergonhado da bagunça- roupas sobre roupas, pacotes de amendoim (ovinho branco da Elma Chips seu favorito) jogados pelo chão
Eu me pergunto quem foi que viu teu corpo e qual foi a reação. Eu imagino se teus pés estavam descalços porque você sempre andava no seu apartamento descalço. É extraordinária a fraqueza que nós temos com memórias, com as lembranças de interações que se estendiam memorialisticamente em um horizonte aparentemente tangível para sumir entre os dedos de quem nunca conseguiu fixar nada. Quem consegue fixar alguma coisa neste mundo? O céu de Lavras parece editar meu humor e eu vejo os pedreiros em frente à minha casa construindo uma estrutura que nunca acaba enquanto o gramado do meu quintal cresce e pinica os tornozelos de todos que passam - nem estas raízes estão fixadas em algo que contenha o aroma da duração
Suas mãos tremendo enquanto tentava tomar o café- tremendo tanto a ponto de ficar mais café sobre a mesa do que a quantidade ingerida por você e eu te perguntei algo como "Marcos tá tudo bem" e sua assertiva silenciosa para ambos sabermos que não, não estava tudo bem mas você não queria (ou não tinha forças para) falar sobre isso e aí eu inventei um assunto qualquer para aquele silêncio não corroer nós dois. Você se foi sem cozinhar o macarrão que vivia prometendo fazer e hoje é meio que engraçado porque quando nos corredores de qualquer supermercado eu vejo os pacotes de macarrão eu lembro de você sorrindo falando sobre fazer macarrão. Não, eu ainda não me recuperei e é teu sorriso que muitas vezes me persegue em noites insones
No topo dos arranha-céus as nuvens flagram alguém andando reflexivamente sob uma cidade em ruínas olhando para pontos tão altos e distantes tentando encontrar vestígios de alguém que foi seu melhor amigo. Sob as luzes deles acesos, à noite, São Paulo parece menos decadente e eu passo à acreditar, minimamente, em uma magia qualquer- uma magia de comunhão que te traz pra mim em breves relapsos quando eu me pego sorrindo meio que sem querer idealizando um macarrão que eu nunca vou comer
Marcos - 1991 - 2012
De algum jeito, já faz quatro anos. De algum jeito passou e eu pensei menos do que pensei que iria pensar e, ao mesmo tempo, eu continuo pensando na mesma proporção que exatamente três anos e dez meses atrás. Estranho, né? Eu tentei abraçar tudo neste intervalo; álcool, livros e qualquer outra coisa para permanecer em outro mundo. Eu digo a mim mesmo que você, de alguma forma, estava me observando quando eu estava colando grau, que naqueles flashes luminosos era você quem surgia para instantes depois desaparecer. Mas, mesmo assim, surgir. Essas coisas
Com tanta melancolia rondando, fica difícil não lembrar dos filmes que vimos juntos. Eu não pediria mais nada se eu soubesse que Melancolia teria sido nossa última interação e você dizia coisas como "eu não gostei muito" e eu te disse de como a Kirsten nua pra lua representava muita coisa e você discordaria e a gente trocou um abraço tímido no metrô e daí você foi embora e eu nunca mais te vi. Lembranças tuas surgem meio que do nada, sabe? Enquanto eu fico aqui lendo os livros que a gente combinou que leríamos ao mesmo tempo e depois falaríamos deles enquanto tomávamos uma cerveja qualquer nos barezinhos/padarias/lanchonetes de São Paulo
Você morreu em 2012 e eu não fui ao funeral e eu fiquei trancafiado em casa assistindo toda filmografia do Lars Von Trier como minha homenagem às memórias de nossas interações. Você não aguentava mais a Medicina, você dizia que aquilo te sufocava, mas eu não imaginei que te sufocaria a tal ponto de .. Com um corpo cheio de marcas que não eram de nascença embora eu suspeito que ambos desconfiemos que o ato da tua morte foi apenas a externalização de coisas que você carregava desde a nascença. Sabe?
Os dias em Santo André não mudaram basicamente nada desde que você se foi. Uma coisa ou outra. O mundo, o funcionalismo social, é completamente indiferente às relações afetivas. Nós nos dissolvemos no ambiente e ele adquire corpo e a gente vai sumindo aos poucos. Engraçado como eu lembro só de um tipo de sorriso teu; o aparelho reluzindo à frente dos seus dentes cerrados e brancos. Você me ajudava a achar os filmes de vanguarda e a gente compartilhava isso e suspeito que sabíamos que era um compartilhamento bem maior que provavelmente não saberíamos especificar. Eu ainda to aceitando tudo, absolutamente tudo, embora eu sempre mantive isso debaixo de todas as linhas que escrevi. Eu deixei tudo isso escondido atrás do nervosismo e do rancor para com o mundo, para com as pessoas que ficaram perto de mim- engraçado, sempre temporariamente
Mas aquele livro do McCarthy eu nunca li, nunca tive coragem. Você ia ficar desapontado em saber que dei para um sebo, mas lê-lo com suas anotações de pé-de-página seria meio esquisito, confesso. Então eu improvisei vário textinhos com teu nome (este também é um rascunho, nunca vai ser publicado) tentando dar corpo à uma vida que já era alimento às raízes das árvores de um cemitério que eu nunca vou visitar (você sabe que eu odeio cemitérios tanto quanto funerais)
O que te lavou a fazer faculdade que não queria e como ela foi pesar tanto ao ponto de você sentir tua vida ser uma distância do mundano e você se aperfeiçoou na arte do distanciamento enquanto interagia com as pessoas e eu posso falar tranquilamente que era só o corpo de Marcos que estava lá a ponto de você compreender absolutamente este sentimento de "só o corpo estar lá" e ver que não estava nem dentro de si então de que serviria o mundo, ou a faculdade, ou os filmes cult? Eu assumo que tudo se deteriora e você apenas acelerou este processo
As palavras mansas e uma tarde de um final de semana qualquer olhando São Paulo nublada e quente no fim do ano prestes a cair uma chuva de verão. A catarse que era sempre teu quarto e como sua pele branquíssima adquiria tons vermelhosos pois envergonhado da bagunça- roupas sobre roupas, pacotes de amendoim (ovinho branco da Elma Chips seu favorito) jogados pelo chão
Eu me pergunto quem foi que viu teu corpo e qual foi a reação. Eu imagino se teus pés estavam descalços porque você sempre andava no seu apartamento descalço. É extraordinária a fraqueza que nós temos com memórias, com as lembranças de interações que se estendiam memorialisticamente em um horizonte aparentemente tangível para sumir entre os dedos de quem nunca conseguiu fixar nada. Quem consegue fixar alguma coisa neste mundo? O céu de Lavras parece editar meu humor e eu vejo os pedreiros em frente à minha casa construindo uma estrutura que nunca acaba enquanto o gramado do meu quintal cresce e pinica os tornozelos de todos que passam - nem estas raízes estão fixadas em algo que contenha o aroma da duração
Suas mãos tremendo enquanto tentava tomar o café- tremendo tanto a ponto de ficar mais café sobre a mesa do que a quantidade ingerida por você e eu te perguntei algo como "Marcos tá tudo bem" e sua assertiva silenciosa para ambos sabermos que não, não estava tudo bem mas você não queria (ou não tinha forças para) falar sobre isso e aí eu inventei um assunto qualquer para aquele silêncio não corroer nós dois. Você se foi sem cozinhar o macarrão que vivia prometendo fazer e hoje é meio que engraçado porque quando nos corredores de qualquer supermercado eu vejo os pacotes de macarrão eu lembro de você sorrindo falando sobre fazer macarrão. Não, eu ainda não me recuperei e é teu sorriso que muitas vezes me persegue em noites insones
No topo dos arranha-céus as nuvens flagram alguém andando reflexivamente sob uma cidade em ruínas olhando para pontos tão altos e distantes tentando encontrar vestígios de alguém que foi seu melhor amigo. Sob as luzes deles acesos, à noite, São Paulo parece menos decadente e eu passo à acreditar, minimamente, em uma magia qualquer- uma magia de comunhão que te traz pra mim em breves relapsos quando eu me pego sorrindo meio que sem querer idealizando um macarrão que eu nunca vou comer
Marcos - 1991 - 2012
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