Com um epicentro lúdico que
sabota a mediação da verdade (a concretude dos fatos) para dizer que o evento
parte da experiência narrativo-temporal de cada personagem que " Shan he
gu ren", de Jia Zhang-ke, executa os múltiplos acontecimentos abordando um
período considerável das pessoas. Sabe-se há muito sobre a impossibilidade de
apresentar eventos em enredos e é no tatear de cada corpo procurando um bioma
mais ameno que circula toda a ação figurativa em " Shan he gu ren". As personagens não são representadas
fielmente e nem há este objetivo (ao invés disso é evidenciada a ação delas em
suas próprias microrredenções- mais precisamente a dança).
A dança, na filmografia de "Jia Zhang-ke", tem representado um
guia espiritual para as personagens se protegerem da vastidão (cidade/rural)
ambientada em seus filmes. O alvo analítico de "Zhang-ke" é sobre
reações pós-acontecimentos- a mãe depois de abandonar seu filho, este filho
depois de abandonar seu pai. Mesmo a concepção redentora que é cantada tantas
vezes ("ir para o Oeste) é vencida pelo imediatismo da dança. Por que
dançar em uma vastidão se não vai haver nenhum compartilhamento? Se na primeira
cena há um grupo dançante, na bela cena final há apenas uma idosa dançando
solitária. O discurso da solidão familiar e o esvaziamento contínuo de alguma
idealização (principalmente se surgida na primeira juventude) são o oposto
destes micromomentos dançantes.
Se eu falei em oposto, não é
exatamente um campo dicotômico entre dançar e permanecer estático. Mas a dança
parece ser movimentação natural das personagens em "Jia Zhang-ke". A relação extrema de constantes mudanças
políticas ao longo do tempo e da participação destas nas vidas (e na passagem
do tempo) das personagens coloca toda a projeção de " Shan he gu ren" em uma encruzilhada que os filmes anteriores
do diretor não necessariamente apontavam. O discurso opositivo só é possível
porque há um discurso de ordem. Basta elucidar que a passagem de tempo em toda
a filmografia do chinês sempre influenciou tanto nas paisagens quanto nas
personagens, mas nunca de uma forma tradicionalmente esperada (como se a
oscilação das pessoas que habitam o mundo de "Jia Zhang-ke" fosse tão imprevisível quanto a alteração nas
paisagens artificiais ou naturais). É um cinema obcecado na relação
pessoas-políticas-paisagens e de como esta relação descarrila a vida das
personagens. No entanto, tem-se "Shan he gu ren" como o primeiro
filme do diretor cuja ambientação não engole perversamente a vida das personagens-
e aí tem-se um ponto perigoso; as pessoas se tornaram perversas para "Jia Zhang-ke"? Se os resquícios de uma
obra panfletária nunca haviam invadido seu cinema, talvez "Shan he gu ren" seja o primeiro
filme em que o diretor sai da relação onipresente para fabular alguma teoria.
Nessa sociologia imanente é
importante que algum gesto transcendental como a dança (principalmente a
última) ainda guarde seu valor. Talvez não intencionalmente, mas a maior
virtude do filme é evidenciar a impossibilidade de simetria (a quantidade de
danças nunca vai ser a mesma que a quantidade de discussões). Sem cair em
qualquer universalismo falso, "Jia
Zhang-ke" deixa sutilmente claro que esta só é uma história possível
na China. Diante de tantas complexidades sustentáveis, é de se lamentar que a
primeira parte do filme cai no reducionismo "operário gente boa x rico
metido". Escolher entre o "capital" e a "doçura"
torna-se uma simetria inviável a tudo o que a obra teve a capacidade de
construir.
Mais previsivelmente, então,
avança-se com as mudanças sonoras também sendo atualizadas (os violinos da
primeira cena, o sintetizador da última) como se a cadeia de eventos seguisse
um condição apenas temporal (condição esta que o cineasta lutou para contrarrebater
em todas suas obras anteriores e, mais precisamente, em Plataforma). A
importância do filme se reduz à uma medida historicista sendo que sua
capacidade transcendental é engolida por qualquer tipo de mensagem política.
Sem tantas complexidades que inicialmente aparentavam, fica-se então a sensação
de distância das personagens.
Inscrever estes personagens na
subjetividade de um telespectador atento exige mais do que apenas belos planos
poéticos ou frases bem catalogadas que refletem o período socio-político. As
personagens estão inatas para sair de suas suposições originárias e isso impede
atravessamentos tão poderosos quanto os outros filmes do cineasta.
A prova de um sistema simplista
de representação binária não consegue ser holograma de mudanças e sim apenas
marionetes de uma manipulação mise-en-scène. Afinal, consistência e resistência
são tão efeitos capitalistas quanto a escolha interesseira da personagem na
primeira parte. O filme se sustenta visualmente mas a compreensão prévia de sua
estrutura inviabiliza uma alçada mais essencial. Nós já estamos no fim, já
fomos manipulados. A estrutura radical cedeu ao discurso.
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