"O Beijo Do Otário" é
um romance duro e maravilhoso à medida em que narra um trajeto aparentemente
inevitável entre diversas crises que viriam a formar o que conhece-se por
Estados Unidos Da América. Allan Parker é, predominantemente, alguém que
trabalha com cortes (não à toa é um diretor de cinema) e ambienta suas cenas em
rápidas sucessões. Numa época em que os destino parece estar na mão dos
liberais ou dos neoconservadores, o embrionário alvorecer norte-americano é
caracterizado, em "O Beijo Do
Otário", com um individualismo cru e paralelamente cômico (algo que David
Foster Wallace já havia detectado tanto em seus ensaios como no épico
"Graça Infinita").
Tommy Moran é o protagonista e
característico anti-herói que inundou as narrativas romanescas pós segunda
guerra mundial. Na espécie de "tour" que essa personagem nos leva por
todos os Estados Unidos, percebe-se um sistema de valores culminantemente
individualista e sarcástico que vai germinar e implodir na Grande Depressão De
1929. "O Beijo Do Otário" é, à sua maneira, um romance de formação.
Pois acompanha-se a vida de Moran
desde que ele se separa precocemente de sua família e transforma-se num exímio
batedor de carteiras que percorre todo o país fazendo este trabalho. Parker utiliza
um procedimento narrativo fragmentado e não necessariamente contínuo, até
porque o automatismo aparente de Tommy até certa parte de sua vida (quando se
apaixona por Effie) não sugeriria o
contrário. Os méritos do romance é impor uma característica "dura" em
Moran que aos poucos percebe-se como
mecanismo de defesa muito mais forjado do que intrínseco (e não é mais fácil na
vida prosseguir com o fingimento?). O que Parker faz, e talvez seja seu maior
mérito no livro, é mostrar que há certa desolação em risco ao se abandonar o
fingimento e realmente dar a face à vida.
Como pode alguém como Moran ser doce e como pode alguém como Effie mentir? Como poder abandonar o que
se foi a vida inteira por um amor idílico e como não ruir quando este se
mostrar abalado?
Tommy é o herói e o narrador, é
ele quem dá voz aos recantos de um EUA esquecido e, quando percebe uma chance
de redenção, tenta acessá-la. Moran é
uma pessoa relativamente "suave" se comparada com os outros tantos
trogloditas masculinos que a história apresenta. Pode-se tirar uma questão do
livro: como escapar dos acontecimentos que aparentam ser seu destino?
O próprio ato de
"dizer", "contar histórias" se sobressai não apenas (embora
predominantemente) na primeira pessoa, mas no tanto de histórias entrecruzadas
que o protagonista percebe ao seu redor- ele custosamente recusa ser parte
destas. Em sua estrada da desolação, Tommy é abado pelo excesso de narrativas
e, estando de frente à tantos contos dolorosos, ele não quer ser parte disso. Ele
é como alguém que perspicazmente toma nota das referências de formação dos
valores norte-americanos. Parker impõe uma narrativa convencional para um
protagonista "outsider" e talvez apenas no excesso de formalidades
que o romance não atinja totalmente seu projeto estético.
Se para Tommy falta aceitação de
seus sentimentos, para Parker faltou um pouco de inquietação no olhar para
manter o romance tão pulsante como é em seus melhores momentos. Eu não quero afirmar
que o autor quis escrever um grande romance, mas há de se ter algum rigor.
Principalmente quando é uma história que trata tantos anos da vida de alguém
sem mergulhos vertiginosos em sua psique ou escombros emocionais. É impossível
para o protagonista ter a liberdade tanto almejada no livro se seu próprio deus ex-machina restringe suas
possibilidades. Porque mesmo nos momentos mais preciosos, há ausência de invasão
que alce as personagens aos emblemas mais fundamentais do comportamento humano.
Não se trata de derrapadas
autorais, mas do que o livro muitas vezes esboçou ser. Há os grandes momentos,
mas não os grandes questionamentos. Porque passar para as palavras o cerne de
uma estrutura é muito difícil. Felizmente, tem-se muitos vislumbres.
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