“Não há possibilidade
de existência sem narrativa, sem viver uma outra história.”, Xico Sá.
No lançamento da obra-prima Coin Coin Chapter One: Gens Des Couleurs
Libres, Matana Roberts anunciava
que aquele seria o primeiro capítulo dos doze sobre a busca da formação da
cultura negra nos seus últimos trezentos anos, incluindo poesia, teatro, e tudo
que teve participação em diversas etapas da construção sociopolítica dessa
cultura. A série tem até uma protagonista, que possui diversas ocupações em
diferentes épocas, o que nos remete, é claro, a Woolf. E tudo isso poderia dar
incrivelmente errado, pela ambição e pelo compromisso em relacionar uma arte
estética com temas tão densos, não fosse Matana
saber o que faz e criar uma obra única não só dentro do jazz como da música.
Em um contexto tão amplo, lidando
com mais de 300 anos de história afro, o jazz livre é apenas mais um
instrumento- incluindo gospel, Field
recording, blues- para trazer a tona uma narrativa sobre supertições,
invocações e luta. Podemos relacionar essa brava vastidão ambiciosa com a obra
de Anthony Braxton, o envolvimento sociopolítico de Davis, a técnica de sopro
fraseada de Pharoah Sanders e a
ousadia de Cecil Taylor. Como contraponto ao capítulo I desse corpo monumental
sonoro, Matana optou por uma banda
bem menor do que a antecessora; Jeremiah
Abiah (vocais), Tomas Fujiwara (bateria),
Thomson Kneeland (contrabaixo), Jason
Palmer (trompete) e Shoko Nagai
(piano). Assim como a banda foi reduzida, a cacofonia esquizofrênica deu
passagem a partes mais líricas, totalmente melódicas. Obviamente, entre todas
as vozes que condecoram o disco (todos os membros da banda cantam), quem se
destaca é o tenor de opera Jeremiah.
São tempos complexos, e por isso a insistência de vozes, o passado ciclicamente
apresenta outras versões e consequentemente novas marcas. Roberts retrata
elementos como vergonha, superação, castigo e dor, de uma maneira coletiva. Ou
como ela mesma chama: “som panorâmico doloroso”.
As frases repetidas, as passagens
quase faladas de Matana em coro com o
resto da banda, ressaltando as superações dessa comunidade ao longo da história
e seus obstáculos; Roberts tem plena noção de seu dever enquanto mensageira da
ancestralidade de uma minoria brutalmente oprimida com o passar do tempo. Os
interessantes contrapontos criados, como o saxofone melancólico que segue a uma
esperançosa melodia gospel. Aliás, partes precisas de canções gospel aparecem
em cortes decisivos, num imenso jogo de contraste afetivo. Há beleza e
sofrimento, belas passagens e tempos agonizantes.
Não só o punk rock surgiu em
1977, Roscoe Mitchell também lançava Nonaah, abrindo percepções sobre o
saxofone, aprofundando a estética jazzista. Matana
rompe fronteiras musicais para estender e continuar na esteira de grandes nomes
da vanguarda musical. No momento, é difícil achar música mais relevante sendo
feita em algum outro lugar do mundo que não na cabeça de Roberts.
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