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sábado, 25 de março de 2023

Adrianne Lenker, Ichiko Aoba, Lana Del Rey, Natalie Mering e a busca por sentido

Na obra das cantoras, o lugar do compartilhamento é uma constante busca por sentido.


Dragon New Warm Mountain I Believe In You by Big Thief

“As memórias, mesmo as mais preciosas, desaparecem com uma rapidez surpreendente. Mas eu não concordo com isso. As memórias que mais valorizo, nunca as vejo desaparecendo".
Kazuo Ishiguro.

  Lana Del Rey faz parte de um desfiladeiro que desabriga certo conforto do que se espera da música pop e reveste as coisas que temos como banais e supérfluas - as house parties, o Bacardi, as compras (quando ela compra um caminhão por puro tédio em Bartender) - com uma projeção de quem sempre retorna com uma sombra. Nada mais são do que passos de um mesmo mundo que abriga pílulas que se pararem de funcionar desalojam certo tipo de existência. Na verdade, encontrar sentido no meio dessa oferta tem sido o foco de seus álbuns, pelo menos, desde Norman Fucking Rockwell (2019).

  Esta é a verdadeira razão de as cores em suas músicas estarem associadas a experiências de dependência; a multiplicidade não liberta, pois ela é um processo que tem a si como fim. A estrutura das canções fragilmente desaparece, gradualmente se decompondo em sons de um único instrumento que resiste à harmonia dos arranjos para terminar sozinho.

  Apesar de circular por outro espectro de elaboração melódica, Ichiko Aoba enche suas cores com uma perambulação parecida; a revelação do sangue infesta cores que antes pareciam pálidas. Ela percebe a existência de pragas e coloca inúmeros "apesares" em suas canções para a tentativa de criar um caminho que seja capaz de anular, ainda que temporariamente, a contemplação abatida de um horizonte incolor.

Grande concha

  A própria Aoba revela a existência de uma concha (e podemos entender por concha qualquer meio ecossistêmico que nos presenteie com uma falsa sensação de segurança) que é muito difícil de abandonar. É difícil destruir parte de sua estrutura para criar novos laços que não reabram as feridas anteriores. As carências por um passado impossível ainda nos perseguem e, às vezes, somos tão reféns delas que a concha parece se confundir com nosso coração. É de se notar que Lana Del Rey ouve coisas tão díspares dentro de uma mesma melodia e consegue perceber a infiltração da própria prisão em objetos exteriores como bebidas (que em breve passa a compor seu líquido intestinal), automóveis e remédios.

  De certa maneira, Natalie Mering (Weyes Blood) consegue saber também tão pouco sobre a direção à qual estamos indo. Contudo, ela admite que há uma busca por amor como uma ação universal que faz a ligação entre cérebro e sistema nervoso, apesar de estarmos procurando nos lugares errados (as pílulas da Lana, o passado impossível de Aoba). Ao contrário de uma busca insensível por prazer instantâneo, a ideia de amor se plastificou somente nesses prazeres. Geralmente, Adrianne Lenker (que tem projeto solo e é vocalista no Big Thief)  tenta contar como personifica o passado impossível em objetos concretos (argila, por exemplo) para, então, eles serem algo materialmente superáveis. Lenker acredita, sim, ser possível ver através desses objetos, pois apesar da concha estar em nosso coração, ela não precisa ocupar todo o espaço que cultivamos para nutrir afetos. Há muito a se construir.

  Foi assim que Lenker escreveu Dragon New Warm Mountain I Believe In You (2022): a existência de uma criatura mágica que inunda um mundo de sentido apesar desse universo frígido. Ela materializa algo em tese inexistente para afirmar a crença em uma superação filtrada por seus traumas pessoais.

And In The Darkness, Hearts Aglow by Weyes Blood

A chama derradeira

  Natalie Mering leva ao extremo suas tentativas árduas de esconder a dor. As regras de vivência e os códigos sociais e as postagens no Instagram parecem fazer da dor algo impossível. Algo descartável. Algo que não filtra nossas experiências e recondiciona nosso olhar para a beleza. No caso de forwards beckon rebound, Adrianne Lenker cria algo edificante e motivador. Parece um reconhecimento de uma parte muito falha da humanidade. Como se houvesse ambos os lados, a sombra e a luz, convivendo em uma dolorosa aceitação do que significa ser humano. É por esse motivo que esquecemos do outro lado quando nos envolvemos em determinado voo, porque o contexto nos possui e aniquilamos a possibilidade de invasão alheia. Estamos fechados para o outro (e é muito frustrante e ególatra só estar aberto para o que é uma manifestação de você). Nunca poderíamos construir nada com essas vivências, nem poderíamos chamar de existência um projeto de vida que foi determinado por um modelo prévio. Para construir qualquer coisa nessa mundo fragmentado é preciso sentido para erguer pontes em um cotidiano brutalizado.

  Neste aspecto, Lenker se aproveita da passagem temporária para se ancorar nos toques afetivos talvez como única bússola emotiva neste universo. Ela praticamente apela para qualquer coisa (os sinais de internet, por exemplo) para sentir o toque da pessoa que ama. 

  É com essa ambiguidade de dependência emocional e estar aberta para o outro que seu Yin Yang se constrói. A permanência se transforma em uma instabilidade dilacerada. Encarar a multidão é enfrentar as partes esquecidas e tentar se conectar afetivamente é ceder espaço para que sua concha não se esqueça de você.

Filhas do Império

  No fundo, cada uma das cantoras procura por seus céus claros após uma tormenta, enquanto aguardam outras. A intersecção de um mundo vindouro em que as feridas não façam as novas possibilidades sucumbirem.

  A fusão de esperança com perigo leva Lana Del Rey a um impasse. Como parar de se identificar com as paranoias que sua própria cabeça produz?  Para isso ela convoca os sorrisos (que às vezes são verdadeiros), os vestidos rosas e os iates brancos. Usa referências literárias (Sylvia Plath) em mesmas sentenças que os itens de luxo constrói uma paisagem que não intenciona ser tão abundante como parece, mas fruto de um mesmo desespero em tentar assimilar os objetos do mundo com um propósito. O melhor exemplo está em happiness is a butterfly. Trata-se de uma canção que menciona icônicas paisagens estadunidenses, o desejo de dançar e sua insegurança quanto ao parceiro romântico. Assim como Lenker, ela está com receio de que sua necessidade de afeto se transforme em dependência emocional.  Aliás, para ambas, esse mundo em potencial harmonia está sempre a uma rejeição de se esfacelar. Afinal, elas são agentes que perpetuam a exaustiva aptidão humana para o desgaste e também pedem ajudar para morrer.

Fronteira para o medo

  O uso de pedidos de ajuda nos álbuns das artistas mostra que elas sabem que sozinhas não podem firmar um sentido indissolúvel. Elas pedem ajuda para recordar o passado, embora isso não seja tão fácil quanto se pode supor, pois em nossa comunidade o passado é raramente discutido. Assim como no romance O Gigante Enterrado, de Kazuo Ishiguro, "ele [o passado] havia de algum modo sumido em meio a uma névoa tão densa quanto a que cobria os pântanos. Simplesmente não ocorria àqueles aldeões pensar sobre o passado — nem mesmo o recente". Isso significa que o medo universal de discutir o passado é proposto como uma intimidade que constantemente reconfigura seus modelos de afetos para tentar inaugurar momentos menos exaustivos.

  Talvez o importante seja mesmo brilhar como os raios que resplandecem na superfície metálica de uma espingarda. Viver nas memórias dos últimos toques enquanto âncora de uma realidade.  Esperar o wifi  enquanto rolamos a tela do celular aguardando qualquer manifestação que nos tire dessa passividade. A terrível visão da própria sombra provoca a insuficiência de não podermos bloquear o sol durante todo o dia. Com GrapevineNatalie Mering encontra diversas miniaturas que têm o poder de levar o nosso amor embora. Depois de se sentir sequestrada, o que vem é uma crença de que nada mais importa. E, claro, não é fácil para Lana Del Rey ser uma das garotas do cânion, mas não há problema em ser qualquer pessoa, contanto que essa personificação nos segure aqui.

domingo, 12 de março de 2023

Tudo que nós amamos nós deixamos para trás

  Quando você dizia que me amava, minha tristeza terminava. E me separava de todo o meu caminho de aumentar meu sofrimento. Uma estrada que não levava a lugar algum, se não me distanciar de todas as pessoas que eu amo. Você me despertou desse eterno sono de mim mesmo. Essa vontade de me matar que eu sentia todo santo dia. Seu adeus, depois de três dias, ainda acende todo o carinho que existe em mim.


Tudo que amamos deixamos para trás.


 Eu sinto muito que eu perdi seus últimos momentos enquanto eu aprendia a esquiar em um chalé do primeiro mundo. Eu não podia estar lá quando você mais precisava do seu "big brother" e eu não pude prover todo o carinho e atenção que você precisava. Agora você está morta e minha culpa não consegue fazer você renascer. Obrigado por me amar. Obrigado por trazer luz aos meus olhos. 


Tudo que amamos deixamos para trás.


Nada nesse mundo pode se comparar ao buraco no meu coração e o peso no ar de quando você partiu para o céu. Eu te perdi para o câncer.


Não pude dar um último adeus.


Tudo que amamos deixamos para trás.

-

Alma B. F.


☆ 2015

✟ 2023


quarta-feira, 27 de julho de 2022

poemas para as ruas pedregosas


  •  AURORAS


A oportunidade de ser uma calamidade humana é um aceno positivo da distância que nos separa da morte. Quando fui algo, encenei o drama dos encontros para perpetuar a sensibilidade de quem se viu apartado de uma biografia, mas o próprio frio na espinha é uma oportunidade de celebrar o inóspito. A sinfonia que determina o dueto humano brota da dor, do caos e da morte para ser um arranjo que sonoriza nossos crepúsculos.


  • TIJOLOS


As goteiras e rachaduras escancararam que a transmigração é sempre necessária quando suas palavras querem honrar o buraco. Abandonar a liturgia do nosso velho lar foi a forma de retornar à aparição. O testemunho da permanência é sempre derivado do encontro. Quando Adão e Eva compartilharam o fruto, o pecado do isolamento estava dissolvido. Construímos essa residência a partir da ressonância, nossos gritos de desespero foram a fundação desses tijolos.


  • RAÍZES


"Narrar meu destino seria honrar as mortes que eu testemunhei, as doenças que percorreram meu corpo. O sopro do poema e sua posição mística não dignificam experiência alguma, é apenas outra forma de soletrar rachaduras e goteiras". É na sensibilidade da chegada que se constroem lares apesar da certeza de que há um olho infindável perscrutando. "Somos sopro e aparição". Sim, mas somos também sinfonias e raízes.


  • LAR


Nós éramos garotos e não tínhamos a competência das feridas, embora eu estranhasse a propriedade pela qual você dignificava as experiências com as palavras que nunca vinham à minha boca. Só depois de velho eu apreendi alguns signos de comunhão que constituem um lar de mudos e contadores de histórias. Entende? Às vezes precisa-se de 20 anos para retornar à criança que fomos e lhe confidenciar que os grunhidos e os urros são capazes de dignificar um lar.


  • VIDA


A promessa fracassada brotou da esperança que tínhamos com as palavras-escândalos. Elas constituiriam um mundo-avesso que honraria o sopro do desaparecimento. Mas a intimidade-carne só é revelada quando encantada pela ressonância alheia. Era o começo da pandemia, você tirou a máscara e soprou palavras que cristalizaram uma nova construção. As casas que flutuam na indiferença aguardam até serem alçadas pela possibilidade de residência.


  • ABISMO


A despedida das antigas ilusões revolucionárias foi num dia quase-frio numa minúscula cidade mineira. Seu short verde, uma peça de uma nova tecnosfera, a climatização de um interior menos frígido e inóspito. O calor das transmissões mundanas (o próprio ato de tocar e ser tocado por outro corpo) recria e constrói um mundo possível onde antes residia uma espera perpétua na estalagem pela diligência do abismo.


  • VIDA


Minha irmã foi a antítese no mundo materno. É assustador quando outro corpo confirma seus medos. A reconstituição da fraternidade pós-morte apenas é possível na desinência de um sujeito autônomo que se projeta como articulador de futuros. A superfície rarefeita é apenas uma breve visita ao estado originário. O que se constitui a partir da dor e do luto é um lar cujos cômodos compõem uma nova sinfonia. É dessa forma que encontro os seus olhos em cada pessoa que passa por minha vida.


  • PRESENÇA


Quando seu corpo recuar tanto que se transforma numa pergunta, quando seus olhos estiverem cansados do extermínio da luz, quando qualquer projeção de afeto avermelhar sua pele, quando todas as crisálidas perderem a aderência do sol (ou da chuva ou da terra)... O vento sopra em intervalos constantes, perdi a preleção por qualquer vitalidade. É mais fácil triturar os redemoinhos do encontro do que novamente pernoitar na possibilidade de uma presença.


  • COISAS


O gesto-álibi nasce do questionamento dissonante das falsidades que pulverizam este corpo. Um aceno inaugural, para ser um verdadeiro boas-vindas, a desmedida teria de substituir todos os gestos frígidos aos quais nos habituamos. Era um dia frio de julho e os corredores ecoavam crianças curiosas ainda não abarrotadas pela necessidade dos movimentos. Todos balbuciamos comemorações antes de encontrarmos o mundo. Retornar ao compartilhamento é reencontrar a criança perdida que ainda celebra a inconstância das coisas imbecis.


  • SORRISO


O meu relato foi o da desmedida pois desconfiei que por meio da infiltração nas verdades históricas algo mais puro sairia. Os resíduos de todas as profanações contra o corpo são correntes disfarçadas de tradição e de moral. Para ser como D., para seu corpo receber e retribuir verdadeiramente todos os gestos, é preciso dizimar a palavra-ordem desde a sua infância, é preciso ir fundo nos projéteis-de-verdade e dizimar toda a falcatrua humana. Quando você for acolhida em meio aos detritos, daí nascerá seu primeiro sorriso.


  • NÓS TÍNHAMOS O HOJE (PRÓLOGO)


Quando eu penso no percurso que percorremos, vêm-me à memória as longas e preguiçosas conversas sobre as besteiras que tínhamos de suportar até lidarmos com a vida adulta. Eu invoco as trocas com Rita e Tito, numa tentativa vã de reviver a intensidade pueril daqueles diálogos. A casa parecia uma mansão, mas suspeito que era estruturada por uns três cômodos. Nós ficávamos na rua o dia todo, o frio meio estranho meio chuvoso de Santo André e uns papos sobre futuros intangíveis que se delineavam como algo muito doloroso e sobre o qual tínhamos receios de constituir algo concreto. Anos depois eu revi Rita no hospital, ela cansada de seus procedimentos errados e, sob aquela sala de azulejos, falhamos em reviver as crianças que não mais existiam. Na impossibilidade de reconquistar o passado, ela pediu Não me abandone jamais.


  • TAMBÉM CONHECIDO COMO: O INFERNO É PARA HERÓIS, PARTE III


Há dezessete anos você perguntou Que merda você vai fazer agora, garoto?. Eu procurei nos lugares errados, Jeffrey (creio que você também, apesar de você ter perfurado toda a fantasia das cordas adultas). Mas você estava certo sobre o desespero. Ele foi um combustível de espera na diligência. Ele foi o segredo da alquimia de transformar todas as coisas expostas em sopros messiânicos. Você estava certo sobre a hora-revelação. Mas ela não chega num vento purificado das coisas mundanas. Ela é o próprio sagrado dizer-sim à carne, às feridas, aos rituais de compartilhamento que configuram o humano. Vê, Jeffrey, nós procuramos nos lugares errados. Mas nunca é tarde para erguer a mão e acenar um testemunho de boas-vindas. Nós não precisamos triturar o mundo, só abrigar na diligência até a ressonância de outro gesto humano.

quarta-feira, 7 de julho de 2021

Atlanta hawks, depressão e Penedo.

   


  Eu falei "este é o fim dos dias" tantas vezes nos últimos tempos, como se a repetição proporcionasse uma espécie de mantra místico que faria o mundo acabar. Eu mesmo sonho com meu mundo acabando todas as vezes quando o sol da manhã transforma os sonhos em impossibilidades patéticas de uma mente infantil. Nós estávamos esperando o nascer-do-sol, cheio de expectativas para a vida adulta e quem seria o primeiro maluco que iria se aventurar de casar, comprar uma casa, ter um filho, ficar mais de dois anos no mesmo emprego. Eu não sabia o que era crédito financeiro, não tinha muita responsabilidades a não ser zelar pela indiferença solar (enquanto todos tentávamos transmutar no elemento negativo como palavra-inauguração: o mundo sempre seria uma celebração que renasce a cada piscar de olhos). As dívidas começaram aí e tornaram depois a base de muitas conversas terapêuticas sobre insatisfação capitalista, depressão, ansiedade, crise de pânico e todas essas desordens que todos os meus amigos têm (inclusive os que aguardavam o nascer-do-sol naquele sábado de madrugada em Santos).


  Eu odeio o ritmo de nossas vidas esses dias. Encarando o vazio de uma tela iluminada, gritando com caricaturas de pessoas reais cuja presença não sentimos há mais de um ano, as faces afastando-se, rodopiando para a indiferença do inumano, a indiferença do inacessível: quando o outro é sempre uma negação de si e de sua humanidade (em Penedo eu vejo patos - ou gansos? - atravessarem o parque, protegendo-se de maneira enfática nas árvores que sombreiam de forma tão harmônica quanto um movimento de arremesso do Trae Young do logo da quadra na virada contra o Sixers). Todo mundo tá insatisfeito e cada olhar é uma incompreensão surreal, que aparenta ser algo assim: "sim, sim. Você tem depressão, tá triste, tem uns 30 anos, houve músicas nostálgicas para inventar uma ancestralidade de paz que nunca existiu. Mas ninguém mais aguenta te ouvir, sabe? Ninguém mais liga pra todas essas vidas despedaçadas".


  A B. falou algo assim: "você diz que é o fim dos dias, mas continua mandando esses stickers idiotas que eu amo. Você continua me falando empolgado de livros que você sabe que eu não tenho vontade alguma de ler. Você não acredita em Deus mas toda segunda-feira manda algo como 'Deus abençoe a semana de vocês, galera'". Talvez o plano de Deus seja mesmo um mapa de todas as pequenas coisas perfeitas: os patos - ou gansos? - descansando sob a sombra das árvores; a ponte área do Collins em cima do Embiid; as chamadas no discord/zoom/skype/meet com os amigos; o conto Funes, o memorioso, de Jorge Luis Borges.


  Se toda cidade é igual, amaldiçoada e melancólica com um nome diferente, talvez seja a hora de se aquietar em algum lugar. Envelhecer lentamente tendo saudade de dias que não sei bem se existiram. Parar de exigir comportamentos-impossíveis, fazer uma hora de caminhada por dia, ler qualquer poesia, beber qualquer cerveja. Eu cansei das discussões sobre nada. Eu cansei de não perdoar as pessoas que eu amo. Eu cansei de reviver todas as alegorias personificadas em ideais impossíveis. Eu cansei de não conseguir apoiar as pessoas, de sentir vergonha todos os dias quando eu acordo pelo simples fato de ser uma matéria numa Terra, ironicamente, inerte. Eu espero poder contar o bem que nós fizemos em mais de uma mão.


  Quando você observa Penedo de cima, seu cansaço se esvai (ou você se esquece dele). As árvores, espessas e dum verde tão penetrante que faz parecer que todos os outros verdes são claros, avolumam-se e parecem invadir seu cérebro como uma transposição redentora das raízes esquecidas. A matéria é um milagre, as partículas são química, os olhos lacrimejados testemunharam um sopro de vida tão raro que fica difícil não sucumbir à ideia de Deus.

quarta-feira, 16 de junho de 2021

escrevendo para expurgar um trauma e, talvez, pensar menos nisso

 Faz mais de dois anos e eu tento, muito em vão, recuperar mensagens apagadas da conversa do Whatsapp para falar com mais propriedade. Saber o que eu disse e qual foi a reação - eu lembro, muito claramente, da pessoa ter escrito: “a culpa é sua por não ter falado antes, como eu ia saber?”. Saber por que o inacontecível aconteceu. Ou talvez seja uma revanche mesmo e há um demônio em mim determinado em acabar, em aniquilar o outro. Mas eu acho que não é isso. De qualquer forma, descubro minhas intenções enquanto eu escrevo.

  Eu acordei e ela se esfregava em mim com seu órgão, com baixos suspiros de prazer. Eu não consegui abrir os olhos, eu pensei que aquilo talvez fosse outra coisa. Ela pegava no meu órgão, acariciando muito lentamente, e continuava a suspirar enquanto se masturbava com outra mão, depois de parar de raspar su boceta na minha coxa direita. Eu pensei que se continuasse com olhos fechados aquilo ia acabar rápido (eu não vou fingir que pensei em voltar a dormir como se aquilo fosse um sonho). Aquilo durou muito tempo. Chutaria uns vinte minutos.

  Eu fingi que acordei, abrindo meus olhos, enquanto ela continuava a mexer no meu órgão e se masturbar. Ela olhou para mim com olhos de prazer como se tivesse me acordado para aquilo, beijando minha boca. Ai eu balbuciei algo, levantei rápido, fui ao banheiro. Fiquei aliviado quando olhei o celular e vi o horário. Disse a ela que tínhamos de nos apressar, afinal ela precisava ir ao aeroporto para não perder o voo. Aquela foi a última vez que eu a vi.

  O relacionamento tinha acabado e eu parei de responder prontamente as mensagens e de procurar ela para conversar. Fiz um ghosting absurdo e eu não voltaria atrás em nada do que rolou depois. Exclui ela das redes sociais até que a primeira lembrança aconteceu. Uma amiga dela, também amiga minha, mandou um áudio falando que eu precisava, pelo menos, dar uma explicação porque, poxa, ela havia se esforçado tanto, tantas vezes, para estar comigo, apesar da distância, apesar de tudo (o que era verdade e talvez, antes do fato, eu não reconhecia da maneira apropriada).

  Eu mandei, então, mensagem pra ela. Eu talvez errei bem em não ir direto ao ponto. Podia mesmo ter terminado tudo na hora e ter exposto ali. Eu não quero fingir que eu senti medo, que havia qualquer relação, fora o que rolou, que poderia desnivelar nossa relação. Também não quero fugir do papel privilegiado que estou em qualquer relação heterossexual. Mas eu fiquei confuso. Profundamente confuso (o sentimento de violação só veio mais tarde, e hoje, dois anos depois, é que ele verdadeiramente explode).

  Enfim, as mensagens foram confusas e displicentes em que eu, verdadeiramente, acusei ela de coisas pequenas (“a gente não se dava bem”, “você também parou de falar comigo”), até uma hora em que eu não aguentei mais e falei. Falei que ela tinha feito o que fez e eu tinha ficado assustado. Ela falou que não sabia que aquilo tinha me incomodado e que eu deveria ter falado para ela na hora. Eu escrevi, em caixa alta, algo assim: A CULPADA FOI VOCÊ. EU NÃO TIVE CULPA. Ela reconheceu. Não lembro se houve desculpas. Acho que não.

  Ela continuou mandando mensagens por meses. Longas. Que eu continuei a ignorar até que uma hora ela parou. Eu já fazia terapia e aquele assunto sempre foi tratado de maneira que eu nunca fraquejei, tanto em minha posição irredutível quanto eu me sentir tentado a chorar ou etc. Tudo aqui é uma reação de uma necessidade de urgência, não quero parecer que aquilo acabou com a minha vida ou piorou minha relação  com outras pessoas, embora, de fato, eu nunca mais tenha transado depois. Eu reconheço minha posição de privilégio etc etc, de ter acesso a uma terapeuta que sempre me guiou com primor nisso tudo. Nem quero também atacar a pessoa e a não ser ela ninguém vai saber quem foi. A não ser uma exceção.

  Mas é uma coisa dispersa, nebulosa, confusa, que voltou à minha cabeça esses dias e me martela muito, às vezes parece que eu vou explodir. Sei que não é, nem um por cento, o que outras pessoas passaram em relação a abuso e nem quero entrar na mesma fileira delas e me desculpo, de verdade, com elas se isso parece uma redução simplista do que rolou com elas. Em minha defesa, este bloguezinho existe há 8 anos como forma de expurgação minha. Eu já escrevi sobre minha depressão, sobre o suicídio do meu melhor amigo e outras coisas que volta e meia eu retorno para ler como uma forma de reencontro pessoal. De me desculpar e também superar.

  Espero que escrevendo isso saia um pouco da minha cabeça. Às vezes, funciona. Eu não sei se eu superei, sinceramente. Não é algo que me atrapalha no dia-a-dia e em dias assim eu só preciso do lembrete de que aconteceu e ficou no passado.


Acoustics EP by yvette young


terça-feira, 8 de junho de 2021

"nós viemos para este mundo para ver e ouvir" - atravessamentos provocados por "An", de Naomi Kawase

   


  Eu tento convencer a mim: "nós viemos para este mundo para ver e ouvir". Entre as milhares melodias de morte que interrompem minha cabeça em ângulos distorcidos. Eu me afasto dos amigos, fabrico dramas mentais "ninguém está nem ai comigo". Eu até me esqueci das manhãs cozinhando com D., das travessias ferroviárias por uma cidade que sempre nos relegou ao inferno. Dos caminhos surpreendidos por um sol onírico que atravessava as tristes ramagens de junho, em que toda a insignificância que me habitava o sentido verdadeiro da condição humana alcançava. O mundo renascia em vestígios, em rodopios celestiais de folhas perdidas na vastidão de nossos dias. O cansaço parecia ínfimo. Ou melhor: ele complementava o sentido de dias que sempre pareceram indignos, lembrando que dá para passar esta vida sem estar o tempo todo aborrecido. O início, a origem de todo respiro, cansado entre uma batalha de átomos infinitos que testemunham a transmutação de se estar vivo.  Eu tenho andado tão cansado absolutamente todos os dias, constantemente pensando "eu preciso fazer algo com a minha vida". Olhares suaves, casas velhas que chamaram lares... Eu ainda escuto cada rangido, como se as portas fossem voltar a bater, o choro, as tremedeiras, quantas vezes nos ferimos e toda Santo André pareceu um abrigo desprotegido, qualquer sofá velho de amigo não podia recuperar os corpos desgastados por uma vida cheia de nada. Um trabalho cheio de nada. Veja, os dias passavam como fumaças que escapam para um mundo indiferente - eu não sentia a vida, não sentia minhas veias, suprimindo na garganta um eterno grito ausente. Esses dias eu olhei para a cicatriz do meu braço direito e lembrei de Ana me desafiando a pular muros com cacos de vidro. Eu sonhei com Feijão a noite retrasada, lembrei que dá última vez que nos vimos ele trabalhava de Uber e contou como sua vida jamais tinha se resolvido. Eu disse: "eu te entendo amigo. Eu também tenho esse embrulho no estômago irrestrito". Talvez eu quisesse dizer que ainda éramos os mesmos garotos desprotegidos, deslumbrados com o hotel em Curitiba, fazendo planos futuros para nossas vidas, apesar do cinza, apesar de não termos ideias de onde chegar. Talvez sejamos os mesmos garotos, perdidos no centro do Paraná, renegando nosso lar, implorando pela constante renovação sonora de um mundo em que é muito difícil de se escutar.

segunda-feira, 12 de abril de 2021

o invisível, o amor e o bem inapelável

  "Rique, a única coisa que vale a pena imaginar são as coisas que saltam aos olhos: o invisível, o amor, o bem inapelável que nos move em frente. Essas coisas, sabe", os olhos semicerrados como se I. duvidasse do que ela falava, ou como se duvidasse de que eu iria acreditar no que ela falava. Ou como se essas coisas não existissem, mas, ao falá-las em alto e bom tom, ela podia registrar sua fé em uma voz discordante dos ventos frios do outono.

  "Mas isso não tem sentido nenhum. Por que eu tenho que acreditar em palavras quando sei que, aqui no fundo, ou em toda minha superfície, não existe absolutamente nada, e todos os preenchimentos são tentativas bobinhas de alcançar algo?".

  "Você vê tanto filme, ouve tanta música; isso deveria servir de alguma coisa, ai.". Ela deu de ombros, ameaçou ir embora sob a neblina que baixava sobre Santo André, virou mais uma vez e disse: "não sei como ainda sou sua amiga".

  Eu também não sabia.

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  O perfume das jasmins era algo conhecido pra mim. Abrir a porta e entrar no jardim de I. era sempre lembrar um cheiro específico que podia invadir mesmos as zonas urbanas das cidades mais feias e esquecidas como era Santo André - ou aquela parte de Santo André para qualquer propósito.

  I. coordenava aquela Casa para crianças trissómicas havia uns dois anos. Mas, para ela, trabalhar com trissomia era determinante desde que descobrira o que era Síndrome de Down quando perguntou a seus pai sobre sua irmã caçula. As crianças cuidavam das mais diversas plantações e o sol sorria duvidando que aquela ilha de alegria e perfumes pudesse existir numa cidade tão fodida. Ela olhava para elas como se materializasse o invisível, o amor e o bem inapelável que tanto gostava de afirmar.

  Depois que ela terminava o trabalho, eu ajudava-a a guardar as ferramentas dentro do Velho Casarão (que eu, T. e F. invadíamos sempre quando crianças para jogar bola no matagal ou tentar andar de skate naquele piso horrível da piscina vazia). "Eu tenho conversado muito com Deus... não me olha assim, Rique, não quero falar do seu ateísmo idiota agora...". Ela não conseguia se segurar, falava e desabafava sobre as milhões de coisas que passavam pela sua cabeça e, apesar de minha teimosia e tendência ao cinismo, não conseguia não ficar verdadeiramente maravilhado sobre sua empolgação com vários aspectos mundanos. Acho que, pensando agora, aquela foi a primeira vez que entendi o que era amar o mundo. Não a família, os amigos ou um relacionamento romântico - mas o mundo todo! Mesmo. I. queria abraçar tudo e ai de quem a impedisse! Eu me sentia como uma presença estranha ao seu lado, navegando ao redor de alguém tão fundamentalmente oposta a mim. Ela tentava se lembrar de coisas muito velhas e de repente sua fala era todo o Passado como uma entidade maravilhosa que surge para redimir o Presente. As lembranças da infância. A alegria no nascimento da irmã. A dúvida de por que a caçula não era fisicamente parecida com as outras crianças. O ódio por achar que não tinha uma irmã normal. A aceitação rápida e o amor absoluto por quem ela afirmava ser a criatura mais adorável da Terra. Muitas vezes, quando ela tentava rezar e se via numa escuridão insondável, era o riso abafado da pequena assistindo a um desenho, brincando de boneca ou puxando os cabelos do papai que a salvava de um abismo que, segundo ela mesma, era a coisa mais amedrontadora da face da Terra.


Há seis dias eu conversei com sua irmã, F., e não soube dar meus pêsames, nem olhar fundo em seus olhos para dar conforto. Só contei essa lembrança de I. A internet ficou ruim e o meet caiu. Espero que ela possa ter escutado tudo apesar de não fazer diferença alguma.


quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

falando em códigos com meus amigos imaginários

  


  Eu só precisava de alguma luz para voltar para casa. Sob a noite intempestiva, Santo André parecia um delírio de um adolescente introspectivo que não conseguia estabelecer uma resolução para os próximos dias. Eu não sabia nada sobre amor, ou empregos, ou como ganhar dinheiro e apostava que as insistentes caminhadas noturnas trariam uma espécie de luz. Eu só queria beber nos showzinhos no Catedral, aos quais eu ia sozinho porque não tinha amigos. Eu pegava um garrafa de vinho no posto de gasolina e bebia. E aí, sim, eu ficava comunicativo, falava com as pessoas nos shows. Eu odiava quem eu era quando não estava bêbado. Odiava minha cabeça que ficava em disparada em qualquer mínimo início de contato visual com alguém. Eu só me sentia bem assistindo a Dead Fish, Dance Of Days, Level Nine ou Cueio Limão no Catedral Bar aos domingos. Eu passava a semana ouvindo Blink escondido no meu quarto. Eu não sabia nada sobre o amor e passei os anos da escola perfeitamente escondido, falando em códigos com meus amigos imaginários.


  Eu olhava o fundo do copo e aguardava ansiosamente o efeito. Eu queria sentir meus sentimentos que sabia estarem enterrados sob uma tonelada de vergonha e complexos. Eu esperava que meus sonhos seriam realizados. Ter uma banda. Ou escrever um livro. Quem sabe qualquer coisa de palpável, qualquer coisa parecida com o que eu sentia ouvindo meus discos favoritos. Era muito difícil porque eu não era amigo de ninguém que queria ser escritor e eu não gostava das bandas que o pessoal da escola gostava. Eu fechava meus olhos e não conseguia me imaginar em futuro algum. Era tudo tão borrado e impreciso quanto os edifícios subterrados por trás da noite andreense. Eu tentava entender uma espécie de alquimia sagrada: como adquirir o bilhete de entrada pra vida e ai, sim, ser factível e tangível para as outras pessoas? Eu tinha um medo terrível, agonizante, de morrer sem experimentar a intimidade.


  Eu encaro o teto com uma paz sorrateira. É incrível que eu sobrevivi imaculado aos anos para poder carregar a história daqueles que não estão mais aqui. Passo outra noite com insônia sob os efeitos dos antidepressivos e, enquanto rolo o feed do twitter, sinto uma estranha empatia com o que todos os meus amigos estão passando. Quem diria que eu poderia usar algo como "todos os meus amigos" quando eu passei  adolescência fugindo de todo mundo e criando razões abstratas para não encarar os dias. Porque eu amo cada um deles mais do que minha boca suporta dizer, porque eu encontro em cada um deles uma energia que deixa tudo mais suportável e os dias parecem menos agonizantes e aterrorizadores embora continuamos a prosseguir sob a ameaçadora sombra da morte, dos amigos que se foram e dos que sumiram e eu posso jurar que encontro cada um deles na quietude empoeirada de um quartinho de pensão barata na cidade onde cresci. Eu ainda não consigo dormir muito bem, mas os monstros que invadem minha cabeça parecem cada vez mais fracos e admoestados sob a luz de um amor que é constantemente recém-descoberto. Ou talvez seja outra coisa. Talvez eu apenas descobri a maravilha de estar aberto ao toque dos olhares cândidos voltados em minha direção. E sentir que mereço esses toques e, quem sabe, até seja capaz de dar alguns deles nesses dias violentos que nos têm surpreendido. Porque eu quero tanto continuar aqui e estou extremamente ansioso pelos dias subsequentes, em que a distância poderá ser, parcialmente, diminuída quando eu me sinto, finalmente, admirado pelos olhos que sempre admirei.

quinta-feira, 19 de novembro de 2020

poemas para as ruas pedregosas III

 


Perdão


Eu guardo suas palavras assim como tenho seu amuleto 

para sempre inerente ao meu corpo. Seus olhos trágicos

na noite de despedida foram como relâmpagos anunciando tempestades

em nossa terra natal. Sempre volto à ponte em

que nos conhecemos para lembrar como você decidiu morrer

ali, sob os carros que poderiam conter nossa intimidade 

se a força da perdição não tivesse guiado seus 

passos até um esmagamento. Você teria seu perdão.


Noturno

Todas as vozes são iguais, ecos

de que alguma preciosidade foi perdida

no processo da vida, entre hotéis

e conferências, sorrisos e adulações. Eu

sempre chego esgotado em um quarto

desconhecido, observando o céu da cidade

mudar de tons como gerentes fiscalizam 

seus funcionários.


Pensei ouvir alguma voz diferenciada, cantando 

canções populares em outra frequência, o

que me trouxe a sensibilidade do 

frescor: o mundo é uma andança

contínua entre becos escuros no aguardo 

de uma voz eminente que quebre 

o feitiço estéril de estar acorrentado

aos suores noturnos. 


Construção

O sonho de destaque sempre foi 

a demanda inalcançável. Eu escrevia 

uma tonelada de páginas e enviava 

a mim mesmo. Mergulhei, nu, na 

piscina e quando saí encontrei outro 

homem perdido, andando de bicicleta, as 

canelas finas, os olhos desajustados com 

a realidade. Passamos uma noite inteira 

assistindo a filmes antigos de zumbis, 

o retrato do meu filho morto 

nos fazendo companhia. Todas as dissertações 

que eu sonhei fazer vagaram em 

torno do mesmo tema: encontrar uma 

espécie de voz que não fosse

dissonância pura, para, então, ser possível 

qualquer espécie de construção.


Aceno


Levantei o banco do carro

para olhar o cemitério encharcado 

de memórias e fantasmas. Eu 

sentia muita raiva e dor, 

tomei analgésicos até começar a 

fantasiar diálogos com os mortos 

em piscinas frias. Eu perguntava 

por que eles se mataram 

e eles respondiam que era 

muito difícil. Insuportavelmente difícil.


Voltei a encarar a realidade 

quando as pessoas que desprezei 

decidiram que, por algum motivo, 

eu merecia uma espécie de

redenção. Olhando para um enorme

quadro na sala-de-estar, 

ouvindo um rumorejar do vento 

improvável, eu aceitei a dor

no meu sistema nervoso central

de outra maneira. Segui receitas 

e receitas até chegar embaixo 

da árvore, no mesmo cemitério 

que a depressão se manifestou, 

e ouvir o Sino Dos

Ventos que nossas crianças fizeram

como um último aceno.


Salvação


Olhar para o aquário vazio 

foi como revisitar a infância. 

Minha irmã ainda estava lá, 

jogando esqueletos sobre piscinas aquecidas. 

Andamos pelo cemitério onde o 

túmulo do papai está, uma 

espécie de zona neutra entre 

o presente e o que

fomos. Ela disse que o 

corte deveria ter sido mais 

profundo, mais certeiro. Eu disse 

que eu estava melodramático e 

saí andando por essa velha 

cidade como quem anda por 

respostas. Encontrei um grande amor 

decidido a dar abrigo e 

no invólucro da questão central 

me deparei com fotos nossas, 

quando éramos crianças e adolescentes. 

A única pessoa em que 

eu posso me apoiar é 

a única que me decifrou 

de verdade: nascemos no mesmo 

dia, cometemos mais ou menos 

os mesmos erros e formulamos 

a mesma questão, ancorando, um 

no outro, uma hipótese de 

salvação.


Futuro


Para além da pedreira, para além do lixão, 

do puteiro que ficava aberto o dia todo, 

das inúmeras lojas baratas que roubávamos álcool e 

de vez em quando deixávamos uns reais a 

mais em função da culpa, há um Abismo. 

Ele é infinito. Ele é uma entidade cujo 

eco é a infância que ignorou a gravidade 

e ricocheteia os adultos insensíveis como um bafo 

quente numa tarde de novembro. Há o protetor 

do Abismo Infinito que vende joias roubadas de 

corpos jazendo no cemitério dos ricos. Os mortos 

não reclamam suas joias, eles surgem da iminência 

do Abismo Infinito, soprando, paradoxalmente, vida e futuro.


Calor


Você falou sobre a inevitabilidade da primavera e como,

mesmo enclausurado, consegue sentir o cheiro da chuva horas

antes da primeira gota. Eu disse que isso era

um dom. Você riu timidamente e disse que as quinta-

feiras são sagradas. Eu comecei a desenhar flores, árvores,

pássaros e crianças porque acho que, de certa forma, te

devo a bênção da visão. Eu vejo os dias

transcorrendo de outra forma: sem os cacos de vidro,

sem os remédios e eu juro que nem sabia

que isso era possível.


Eu voltei a tocar piano e cada nota me

lembra o rosto enclausurado, como se estivesse numa foto

três por quatro colegial, sentindo um frio terrível na

espinha, o mal-estar crônico até sentir o calor

de outro corpo ignorando a lei da física. Sob

a manta da comunhão, a glacialidade do mundo se

desmancha como se a corrente de ar mais fria

não suportasse a ideia do calor.