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quarta-feira, 27 de julho de 2022

poemas para as ruas pedregosas


  •  AURORAS


A oportunidade de ser uma calamidade humana é um aceno positivo da distância que nos separa da morte. Quando fui algo, encenei o drama dos encontros para perpetuar a sensibilidade de quem se viu apartado de uma biografia, mas o próprio frio na espinha é uma oportunidade de celebrar o inóspito. A sinfonia que determina o dueto humano brota da dor, do caos e da morte para ser um arranjo que sonoriza nossos crepúsculos.


  • TIJOLOS


As goteiras e rachaduras escancararam que a transmigração é sempre necessária quando suas palavras querem honrar o buraco. Abandonar a liturgia do nosso velho lar foi a forma de retornar à aparição. O testemunho da permanência é sempre derivado do encontro. Quando Adão e Eva compartilharam o fruto, o pecado do isolamento estava dissolvido. Construímos essa residência a partir da ressonância, nossos gritos de desespero foram a fundação desses tijolos.


  • RAÍZES


"Narrar meu destino seria honrar as mortes que eu testemunhei, as doenças que percorreram meu corpo. O sopro do poema e sua posição mística não dignificam experiência alguma, é apenas outra forma de soletrar rachaduras e goteiras". É na sensibilidade da chegada que se constroem lares apesar da certeza de que há um olho infindável perscrutando. "Somos sopro e aparição". Sim, mas somos também sinfonias e raízes.


  • LAR


Nós éramos garotos e não tínhamos a competência das feridas, embora eu estranhasse a propriedade pela qual você dignificava as experiências com as palavras que nunca vinham à minha boca. Só depois de velho eu apreendi alguns signos de comunhão que constituem um lar de mudos e contadores de histórias. Entende? Às vezes precisa-se de 20 anos para retornar à criança que fomos e lhe confidenciar que os grunhidos e os urros são capazes de dignificar um lar.


  • VIDA


A promessa fracassada brotou da esperança que tínhamos com as palavras-escândalos. Elas constituiriam um mundo-avesso que honraria o sopro do desaparecimento. Mas a intimidade-carne só é revelada quando encantada pela ressonância alheia. Era o começo da pandemia, você tirou a máscara e soprou palavras que cristalizaram uma nova construção. As casas que flutuam na indiferença aguardam até serem alçadas pela possibilidade de residência.


  • ABISMO


A despedida das antigas ilusões revolucionárias foi num dia quase-frio numa minúscula cidade mineira. Seu short verde, uma peça de uma nova tecnosfera, a climatização de um interior menos frígido e inóspito. O calor das transmissões mundanas (o próprio ato de tocar e ser tocado por outro corpo) recria e constrói um mundo possível onde antes residia uma espera perpétua na estalagem pela diligência do abismo.


  • VIDA


Minha irmã foi a antítese no mundo materno. É assustador quando outro corpo confirma seus medos. A reconstituição da fraternidade pós-morte apenas é possível na desinência de um sujeito autônomo que se projeta como articulador de futuros. A superfície rarefeita é apenas uma breve visita ao estado originário. O que se constitui a partir da dor e do luto é um lar cujos cômodos compõem uma nova sinfonia. É dessa forma que encontro os seus olhos em cada pessoa que passa por minha vida.


  • PRESENÇA


Quando seu corpo recuar tanto que se transforma numa pergunta, quando seus olhos estiverem cansados do extermínio da luz, quando qualquer projeção de afeto avermelhar sua pele, quando todas as crisálidas perderem a aderência do sol (ou da chuva ou da terra)... O vento sopra em intervalos constantes, perdi a preleção por qualquer vitalidade. É mais fácil triturar os redemoinhos do encontro do que novamente pernoitar na possibilidade de uma presença.


  • COISAS


O gesto-álibi nasce do questionamento dissonante das falsidades que pulverizam este corpo. Um aceno inaugural, para ser um verdadeiro boas-vindas, a desmedida teria de substituir todos os gestos frígidos aos quais nos habituamos. Era um dia frio de julho e os corredores ecoavam crianças curiosas ainda não abarrotadas pela necessidade dos movimentos. Todos balbuciamos comemorações antes de encontrarmos o mundo. Retornar ao compartilhamento é reencontrar a criança perdida que ainda celebra a inconstância das coisas imbecis.


  • SORRISO


O meu relato foi o da desmedida pois desconfiei que por meio da infiltração nas verdades históricas algo mais puro sairia. Os resíduos de todas as profanações contra o corpo são correntes disfarçadas de tradição e de moral. Para ser como D., para seu corpo receber e retribuir verdadeiramente todos os gestos, é preciso dizimar a palavra-ordem desde a sua infância, é preciso ir fundo nos projéteis-de-verdade e dizimar toda a falcatrua humana. Quando você for acolhida em meio aos detritos, daí nascerá seu primeiro sorriso.


  • NÓS TÍNHAMOS O HOJE (PRÓLOGO)


Quando eu penso no percurso que percorremos, vêm-me à memória as longas e preguiçosas conversas sobre as besteiras que tínhamos de suportar até lidarmos com a vida adulta. Eu invoco as trocas com Rita e Tito, numa tentativa vã de reviver a intensidade pueril daqueles diálogos. A casa parecia uma mansão, mas suspeito que era estruturada por uns três cômodos. Nós ficávamos na rua o dia todo, o frio meio estranho meio chuvoso de Santo André e uns papos sobre futuros intangíveis que se delineavam como algo muito doloroso e sobre o qual tínhamos receios de constituir algo concreto. Anos depois eu revi Rita no hospital, ela cansada de seus procedimentos errados e, sob aquela sala de azulejos, falhamos em reviver as crianças que não mais existiam. Na impossibilidade de reconquistar o passado, ela pediu Não me abandone jamais.


  • TAMBÉM CONHECIDO COMO: O INFERNO É PARA HERÓIS, PARTE III


Há dezessete anos você perguntou Que merda você vai fazer agora, garoto?. Eu procurei nos lugares errados, Jeffrey (creio que você também, apesar de você ter perfurado toda a fantasia das cordas adultas). Mas você estava certo sobre o desespero. Ele foi um combustível de espera na diligência. Ele foi o segredo da alquimia de transformar todas as coisas expostas em sopros messiânicos. Você estava certo sobre a hora-revelação. Mas ela não chega num vento purificado das coisas mundanas. Ela é o próprio sagrado dizer-sim à carne, às feridas, aos rituais de compartilhamento que configuram o humano. Vê, Jeffrey, nós procuramos nos lugares errados. Mas nunca é tarde para erguer a mão e acenar um testemunho de boas-vindas. Nós não precisamos triturar o mundo, só abrigar na diligência até a ressonância de outro gesto humano.

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