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segunda-feira, 12 de abril de 2021

o invisível, o amor e o bem inapelável

  "Rique, a única coisa que vale a pena imaginar são as coisas que saltam aos olhos: o invisível, o amor, o bem inapelável que nos move em frente. Essas coisas, sabe", os olhos semicerrados como se I. duvidasse do que ela falava, ou como se duvidasse de que eu iria acreditar no que ela falava. Ou como se essas coisas não existissem, mas, ao falá-las em alto e bom tom, ela podia registrar sua fé em uma voz discordante dos ventos frios do outono.

  "Mas isso não tem sentido nenhum. Por que eu tenho que acreditar em palavras quando sei que, aqui no fundo, ou em toda minha superfície, não existe absolutamente nada, e todos os preenchimentos são tentativas bobinhas de alcançar algo?".

  "Você vê tanto filme, ouve tanta música; isso deveria servir de alguma coisa, ai.". Ela deu de ombros, ameaçou ir embora sob a neblina que baixava sobre Santo André, virou mais uma vez e disse: "não sei como ainda sou sua amiga".

  Eu também não sabia.

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  O perfume das jasmins era algo conhecido pra mim. Abrir a porta e entrar no jardim de I. era sempre lembrar um cheiro específico que podia invadir mesmos as zonas urbanas das cidades mais feias e esquecidas como era Santo André - ou aquela parte de Santo André para qualquer propósito.

  I. coordenava aquela Casa para crianças trissómicas havia uns dois anos. Mas, para ela, trabalhar com trissomia era determinante desde que descobrira o que era Síndrome de Down quando perguntou a seus pai sobre sua irmã caçula. As crianças cuidavam das mais diversas plantações e o sol sorria duvidando que aquela ilha de alegria e perfumes pudesse existir numa cidade tão fodida. Ela olhava para elas como se materializasse o invisível, o amor e o bem inapelável que tanto gostava de afirmar.

  Depois que ela terminava o trabalho, eu ajudava-a a guardar as ferramentas dentro do Velho Casarão (que eu, T. e F. invadíamos sempre quando crianças para jogar bola no matagal ou tentar andar de skate naquele piso horrível da piscina vazia). "Eu tenho conversado muito com Deus... não me olha assim, Rique, não quero falar do seu ateísmo idiota agora...". Ela não conseguia se segurar, falava e desabafava sobre as milhões de coisas que passavam pela sua cabeça e, apesar de minha teimosia e tendência ao cinismo, não conseguia não ficar verdadeiramente maravilhado sobre sua empolgação com vários aspectos mundanos. Acho que, pensando agora, aquela foi a primeira vez que entendi o que era amar o mundo. Não a família, os amigos ou um relacionamento romântico - mas o mundo todo! Mesmo. I. queria abraçar tudo e ai de quem a impedisse! Eu me sentia como uma presença estranha ao seu lado, navegando ao redor de alguém tão fundamentalmente oposta a mim. Ela tentava se lembrar de coisas muito velhas e de repente sua fala era todo o Passado como uma entidade maravilhosa que surge para redimir o Presente. As lembranças da infância. A alegria no nascimento da irmã. A dúvida de por que a caçula não era fisicamente parecida com as outras crianças. O ódio por achar que não tinha uma irmã normal. A aceitação rápida e o amor absoluto por quem ela afirmava ser a criatura mais adorável da Terra. Muitas vezes, quando ela tentava rezar e se via numa escuridão insondável, era o riso abafado da pequena assistindo a um desenho, brincando de boneca ou puxando os cabelos do papai que a salvava de um abismo que, segundo ela mesma, era a coisa mais amedrontadora da face da Terra.


Há seis dias eu conversei com sua irmã, F., e não soube dar meus pêsames, nem olhar fundo em seus olhos para dar conforto. Só contei essa lembrança de I. A internet ficou ruim e o meet caiu. Espero que ela possa ter escutado tudo apesar de não fazer diferença alguma.


Um comentário:

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