Perdão
Eu guardo suas palavras assim como tenho seu amuleto
para sempre inerente ao meu corpo. Seus olhos trágicos
na noite de despedida foram como relâmpagos anunciando tempestades
em nossa terra natal. Sempre volto à ponte em
que nos conhecemos para lembrar como você decidiu morrer
ali, sob os carros que poderiam conter nossa intimidade
se a força da perdição não tivesse guiado seus
passos até um esmagamento. Você teria seu perdão.
Todas as vozes são iguais, ecos
de que alguma preciosidade foi perdida
no processo da vida, entre hotéis
e conferências, sorrisos e adulações. Eu
sempre chego esgotado em um quarto
desconhecido, observando o céu da cidade
mudar de tons como gerentes fiscalizam
seus funcionários.
Pensei ouvir alguma voz diferenciada, cantando
canções populares em outra frequência, o
que me trouxe a sensibilidade do
frescor: o mundo é uma andança
contínua entre becos escuros no aguardo
de uma voz eminente que quebre
o feitiço estéril de estar acorrentado
aos suores noturnos.
O sonho de destaque sempre foi
a demanda inalcançável. Eu escrevia
uma tonelada de páginas e enviava
a mim mesmo. Mergulhei, nu, na
piscina e quando saí encontrei outro
homem perdido, andando de bicicleta, as
canelas finas, os olhos desajustados com
a realidade. Passamos uma noite inteira
assistindo a filmes antigos de zumbis,
o retrato do meu filho morto
nos fazendo companhia. Todas as dissertações
que eu sonhei fazer vagaram em
torno do mesmo tema: encontrar uma
espécie de voz que não fosse
dissonância pura, para, então, ser possível
qualquer espécie de construção.
Aceno
Levantei o banco do carro
para olhar o cemitério encharcado
de memórias e fantasmas. Eu
sentia muita raiva e dor,
tomei analgésicos até começar a
fantasiar diálogos com os mortos
em piscinas frias. Eu perguntava
por que eles se mataram
e eles respondiam que era
muito difícil. Insuportavelmente difícil.
Voltei a encarar a realidade
quando as pessoas que desprezei
decidiram que, por algum motivo,
eu merecia uma espécie de
redenção. Olhando para um enorme
quadro na sala-de-estar,
ouvindo um rumorejar do vento
improvável, eu aceitei a dor
no meu sistema nervoso central
de outra maneira. Segui receitas
e receitas até chegar embaixo
da árvore, no mesmo cemitério
que a depressão se manifestou,
e ouvir o Sino Dos
Ventos que nossas crianças fizeram
como um último aceno.
Salvação
Olhar para o aquário vazio
foi como revisitar a infância.
Minha irmã ainda estava lá,
jogando esqueletos sobre piscinas aquecidas.
Andamos pelo cemitério onde o
túmulo do papai está, uma
espécie de zona neutra entre
o presente e o que
fomos. Ela disse que o
corte deveria ter sido mais
profundo, mais certeiro. Eu disse
que eu estava melodramático e
saí andando por essa velha
cidade como quem anda por
respostas. Encontrei um grande amor
decidido a dar abrigo e
no invólucro da questão central
me deparei com fotos nossas,
quando éramos crianças e adolescentes.
A única pessoa em que
eu posso me apoiar é
a única que me decifrou
de verdade: nascemos no mesmo
dia, cometemos mais ou menos
os mesmos erros e formulamos
a mesma questão, ancorando, um
no outro, uma hipótese de
salvação.
Futuro
Para além da pedreira, para além do lixão,
do puteiro que ficava aberto o dia todo,
das inúmeras lojas baratas que roubávamos álcool e
de vez em quando deixávamos uns reais a
mais em função da culpa, há um Abismo.
Ele é infinito. Ele é uma entidade cujo
eco é a infância que ignorou a gravidade
e ricocheteia os adultos insensíveis como um bafo
quente numa tarde de novembro. Há o protetor
do Abismo Infinito que vende joias roubadas de
corpos jazendo no cemitério dos ricos. Os mortos
não reclamam suas joias, eles surgem da iminência
do Abismo Infinito, soprando, paradoxalmente, vida e futuro.
Calor
Você falou sobre a inevitabilidade da primavera e como,
mesmo enclausurado, consegue sentir o cheiro da chuva horas
antes da primeira gota. Eu disse que isso era
um dom. Você riu timidamente e disse que as quinta-
feiras são sagradas. Eu comecei a desenhar flores, árvores,
pássaros e crianças porque acho que, de certa forma, te
devo a bênção da visão. Eu vejo os dias
transcorrendo de outra forma: sem os cacos de vidro,
sem os remédios e eu juro que nem sabia
que isso era possível.
Eu voltei a tocar piano e cada nota me
lembra o rosto enclausurado, como se estivesse numa foto
três por quatro colegial, sentindo um frio terrível na
espinha, o mal-estar crônico até sentir o calor
de outro corpo ignorando a lei da física. Sob
a manta da comunhão, a glacialidade do mundo se
desmancha como se a corrente de ar mais fria
não suportasse a ideia do calor.
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