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quarta-feira, 7 de julho de 2021

Atlanta hawks, depressão e Penedo.

   


  Eu falei "este é o fim dos dias" tantas vezes nos últimos tempos, como se a repetição proporcionasse uma espécie de mantra místico que faria o mundo acabar. Eu mesmo sonho com meu mundo acabando todas as vezes quando o sol da manhã transforma os sonhos em impossibilidades patéticas de uma mente infantil. Nós estávamos esperando o nascer-do-sol, cheio de expectativas para a vida adulta e quem seria o primeiro maluco que iria se aventurar de casar, comprar uma casa, ter um filho, ficar mais de dois anos no mesmo emprego. Eu não sabia o que era crédito financeiro, não tinha muita responsabilidades a não ser zelar pela indiferença solar (enquanto todos tentávamos transmutar no elemento negativo como palavra-inauguração: o mundo sempre seria uma celebração que renasce a cada piscar de olhos). As dívidas começaram aí e tornaram depois a base de muitas conversas terapêuticas sobre insatisfação capitalista, depressão, ansiedade, crise de pânico e todas essas desordens que todos os meus amigos têm (inclusive os que aguardavam o nascer-do-sol naquele sábado de madrugada em Santos).


  Eu odeio o ritmo de nossas vidas esses dias. Encarando o vazio de uma tela iluminada, gritando com caricaturas de pessoas reais cuja presença não sentimos há mais de um ano, as faces afastando-se, rodopiando para a indiferença do inumano, a indiferença do inacessível: quando o outro é sempre uma negação de si e de sua humanidade (em Penedo eu vejo patos - ou gansos? - atravessarem o parque, protegendo-se de maneira enfática nas árvores que sombreiam de forma tão harmônica quanto um movimento de arremesso do Trae Young do logo da quadra na virada contra o Sixers). Todo mundo tá insatisfeito e cada olhar é uma incompreensão surreal, que aparenta ser algo assim: "sim, sim. Você tem depressão, tá triste, tem uns 30 anos, houve músicas nostálgicas para inventar uma ancestralidade de paz que nunca existiu. Mas ninguém mais aguenta te ouvir, sabe? Ninguém mais liga pra todas essas vidas despedaçadas".


  A B. falou algo assim: "você diz que é o fim dos dias, mas continua mandando esses stickers idiotas que eu amo. Você continua me falando empolgado de livros que você sabe que eu não tenho vontade alguma de ler. Você não acredita em Deus mas toda segunda-feira manda algo como 'Deus abençoe a semana de vocês, galera'". Talvez o plano de Deus seja mesmo um mapa de todas as pequenas coisas perfeitas: os patos - ou gansos? - descansando sob a sombra das árvores; a ponte área do Collins em cima do Embiid; as chamadas no discord/zoom/skype/meet com os amigos; o conto Funes, o memorioso, de Jorge Luis Borges.


  Se toda cidade é igual, amaldiçoada e melancólica com um nome diferente, talvez seja a hora de se aquietar em algum lugar. Envelhecer lentamente tendo saudade de dias que não sei bem se existiram. Parar de exigir comportamentos-impossíveis, fazer uma hora de caminhada por dia, ler qualquer poesia, beber qualquer cerveja. Eu cansei das discussões sobre nada. Eu cansei de não perdoar as pessoas que eu amo. Eu cansei de reviver todas as alegorias personificadas em ideais impossíveis. Eu cansei de não conseguir apoiar as pessoas, de sentir vergonha todos os dias quando eu acordo pelo simples fato de ser uma matéria numa Terra, ironicamente, inerte. Eu espero poder contar o bem que nós fizemos em mais de uma mão.


  Quando você observa Penedo de cima, seu cansaço se esvai (ou você se esquece dele). As árvores, espessas e dum verde tão penetrante que faz parecer que todos os outros verdes são claros, avolumam-se e parecem invadir seu cérebro como uma transposição redentora das raízes esquecidas. A matéria é um milagre, as partículas são química, os olhos lacrimejados testemunharam um sopro de vida tão raro que fica difícil não sucumbir à ideia de Deus.

quarta-feira, 16 de junho de 2021

escrevendo para expurgar um trauma e, talvez, pensar menos nisso

 Faz mais de dois anos e eu tento, muito em vão, recuperar mensagens apagadas da conversa do Whatsapp para falar com mais propriedade. Saber o que eu disse e qual foi a reação - eu lembro, muito claramente, da pessoa ter escrito: “a culpa é sua por não ter falado antes, como eu ia saber?”. Saber por que o inacontecível aconteceu. Ou talvez seja uma revanche mesmo e há um demônio em mim determinado em acabar, em aniquilar o outro. Mas eu acho que não é isso. De qualquer forma, descubro minhas intenções enquanto eu escrevo.

  Eu acordei e ela se esfregava em mim com seu órgão, com baixos suspiros de prazer. Eu não consegui abrir os olhos, eu pensei que aquilo talvez fosse outra coisa. Ela pegava no meu órgão, acariciando muito lentamente, e continuava a suspirar enquanto se masturbava com outra mão, depois de parar de raspar su boceta na minha coxa direita. Eu pensei que se continuasse com olhos fechados aquilo ia acabar rápido (eu não vou fingir que pensei em voltar a dormir como se aquilo fosse um sonho). Aquilo durou muito tempo. Chutaria uns vinte minutos.

  Eu fingi que acordei, abrindo meus olhos, enquanto ela continuava a mexer no meu órgão e se masturbar. Ela olhou para mim com olhos de prazer como se tivesse me acordado para aquilo, beijando minha boca. Ai eu balbuciei algo, levantei rápido, fui ao banheiro. Fiquei aliviado quando olhei o celular e vi o horário. Disse a ela que tínhamos de nos apressar, afinal ela precisava ir ao aeroporto para não perder o voo. Aquela foi a última vez que eu a vi.

  O relacionamento tinha acabado e eu parei de responder prontamente as mensagens e de procurar ela para conversar. Fiz um ghosting absurdo e eu não voltaria atrás em nada do que rolou depois. Exclui ela das redes sociais até que a primeira lembrança aconteceu. Uma amiga dela, também amiga minha, mandou um áudio falando que eu precisava, pelo menos, dar uma explicação porque, poxa, ela havia se esforçado tanto, tantas vezes, para estar comigo, apesar da distância, apesar de tudo (o que era verdade e talvez, antes do fato, eu não reconhecia da maneira apropriada).

  Eu mandei, então, mensagem pra ela. Eu talvez errei bem em não ir direto ao ponto. Podia mesmo ter terminado tudo na hora e ter exposto ali. Eu não quero fingir que eu senti medo, que havia qualquer relação, fora o que rolou, que poderia desnivelar nossa relação. Também não quero fugir do papel privilegiado que estou em qualquer relação heterossexual. Mas eu fiquei confuso. Profundamente confuso (o sentimento de violação só veio mais tarde, e hoje, dois anos depois, é que ele verdadeiramente explode).

  Enfim, as mensagens foram confusas e displicentes em que eu, verdadeiramente, acusei ela de coisas pequenas (“a gente não se dava bem”, “você também parou de falar comigo”), até uma hora em que eu não aguentei mais e falei. Falei que ela tinha feito o que fez e eu tinha ficado assustado. Ela falou que não sabia que aquilo tinha me incomodado e que eu deveria ter falado para ela na hora. Eu escrevi, em caixa alta, algo assim: A CULPADA FOI VOCÊ. EU NÃO TIVE CULPA. Ela reconheceu. Não lembro se houve desculpas. Acho que não.

  Ela continuou mandando mensagens por meses. Longas. Que eu continuei a ignorar até que uma hora ela parou. Eu já fazia terapia e aquele assunto sempre foi tratado de maneira que eu nunca fraquejei, tanto em minha posição irredutível quanto eu me sentir tentado a chorar ou etc. Tudo aqui é uma reação de uma necessidade de urgência, não quero parecer que aquilo acabou com a minha vida ou piorou minha relação  com outras pessoas, embora, de fato, eu nunca mais tenha transado depois. Eu reconheço minha posição de privilégio etc etc, de ter acesso a uma terapeuta que sempre me guiou com primor nisso tudo. Nem quero também atacar a pessoa e a não ser ela ninguém vai saber quem foi. A não ser uma exceção.

  Mas é uma coisa dispersa, nebulosa, confusa, que voltou à minha cabeça esses dias e me martela muito, às vezes parece que eu vou explodir. Sei que não é, nem um por cento, o que outras pessoas passaram em relação a abuso e nem quero entrar na mesma fileira delas e me desculpo, de verdade, com elas se isso parece uma redução simplista do que rolou com elas. Em minha defesa, este bloguezinho existe há 8 anos como forma de expurgação minha. Eu já escrevi sobre minha depressão, sobre o suicídio do meu melhor amigo e outras coisas que volta e meia eu retorno para ler como uma forma de reencontro pessoal. De me desculpar e também superar.

  Espero que escrevendo isso saia um pouco da minha cabeça. Às vezes, funciona. Eu não sei se eu superei, sinceramente. Não é algo que me atrapalha no dia-a-dia e em dias assim eu só preciso do lembrete de que aconteceu e ficou no passado.


Acoustics EP by yvette young


terça-feira, 8 de junho de 2021

"nós viemos para este mundo para ver e ouvir" - atravessamentos provocados por "An", de Naomi Kawase

   


  Eu tento convencer a mim: "nós viemos para este mundo para ver e ouvir". Entre as milhares melodias de morte que interrompem minha cabeça em ângulos distorcidos. Eu me afasto dos amigos, fabrico dramas mentais "ninguém está nem ai comigo". Eu até me esqueci das manhãs cozinhando com D., das travessias ferroviárias por uma cidade que sempre nos relegou ao inferno. Dos caminhos surpreendidos por um sol onírico que atravessava as tristes ramagens de junho, em que toda a insignificância que me habitava o sentido verdadeiro da condição humana alcançava. O mundo renascia em vestígios, em rodopios celestiais de folhas perdidas na vastidão de nossos dias. O cansaço parecia ínfimo. Ou melhor: ele complementava o sentido de dias que sempre pareceram indignos, lembrando que dá para passar esta vida sem estar o tempo todo aborrecido. O início, a origem de todo respiro, cansado entre uma batalha de átomos infinitos que testemunham a transmutação de se estar vivo.  Eu tenho andado tão cansado absolutamente todos os dias, constantemente pensando "eu preciso fazer algo com a minha vida". Olhares suaves, casas velhas que chamaram lares... Eu ainda escuto cada rangido, como se as portas fossem voltar a bater, o choro, as tremedeiras, quantas vezes nos ferimos e toda Santo André pareceu um abrigo desprotegido, qualquer sofá velho de amigo não podia recuperar os corpos desgastados por uma vida cheia de nada. Um trabalho cheio de nada. Veja, os dias passavam como fumaças que escapam para um mundo indiferente - eu não sentia a vida, não sentia minhas veias, suprimindo na garganta um eterno grito ausente. Esses dias eu olhei para a cicatriz do meu braço direito e lembrei de Ana me desafiando a pular muros com cacos de vidro. Eu sonhei com Feijão a noite retrasada, lembrei que dá última vez que nos vimos ele trabalhava de Uber e contou como sua vida jamais tinha se resolvido. Eu disse: "eu te entendo amigo. Eu também tenho esse embrulho no estômago irrestrito". Talvez eu quisesse dizer que ainda éramos os mesmos garotos desprotegidos, deslumbrados com o hotel em Curitiba, fazendo planos futuros para nossas vidas, apesar do cinza, apesar de não termos ideias de onde chegar. Talvez sejamos os mesmos garotos, perdidos no centro do Paraná, renegando nosso lar, implorando pela constante renovação sonora de um mundo em que é muito difícil de se escutar.

segunda-feira, 12 de abril de 2021

o invisível, o amor e o bem inapelável

  "Rique, a única coisa que vale a pena imaginar são as coisas que saltam aos olhos: o invisível, o amor, o bem inapelável que nos move em frente. Essas coisas, sabe", os olhos semicerrados como se I. duvidasse do que ela falava, ou como se duvidasse de que eu iria acreditar no que ela falava. Ou como se essas coisas não existissem, mas, ao falá-las em alto e bom tom, ela podia registrar sua fé em uma voz discordante dos ventos frios do outono.

  "Mas isso não tem sentido nenhum. Por que eu tenho que acreditar em palavras quando sei que, aqui no fundo, ou em toda minha superfície, não existe absolutamente nada, e todos os preenchimentos são tentativas bobinhas de alcançar algo?".

  "Você vê tanto filme, ouve tanta música; isso deveria servir de alguma coisa, ai.". Ela deu de ombros, ameaçou ir embora sob a neblina que baixava sobre Santo André, virou mais uma vez e disse: "não sei como ainda sou sua amiga".

  Eu também não sabia.

-

  O perfume das jasmins era algo conhecido pra mim. Abrir a porta e entrar no jardim de I. era sempre lembrar um cheiro específico que podia invadir mesmos as zonas urbanas das cidades mais feias e esquecidas como era Santo André - ou aquela parte de Santo André para qualquer propósito.

  I. coordenava aquela Casa para crianças trissómicas havia uns dois anos. Mas, para ela, trabalhar com trissomia era determinante desde que descobrira o que era Síndrome de Down quando perguntou a seus pai sobre sua irmã caçula. As crianças cuidavam das mais diversas plantações e o sol sorria duvidando que aquela ilha de alegria e perfumes pudesse existir numa cidade tão fodida. Ela olhava para elas como se materializasse o invisível, o amor e o bem inapelável que tanto gostava de afirmar.

  Depois que ela terminava o trabalho, eu ajudava-a a guardar as ferramentas dentro do Velho Casarão (que eu, T. e F. invadíamos sempre quando crianças para jogar bola no matagal ou tentar andar de skate naquele piso horrível da piscina vazia). "Eu tenho conversado muito com Deus... não me olha assim, Rique, não quero falar do seu ateísmo idiota agora...". Ela não conseguia se segurar, falava e desabafava sobre as milhões de coisas que passavam pela sua cabeça e, apesar de minha teimosia e tendência ao cinismo, não conseguia não ficar verdadeiramente maravilhado sobre sua empolgação com vários aspectos mundanos. Acho que, pensando agora, aquela foi a primeira vez que entendi o que era amar o mundo. Não a família, os amigos ou um relacionamento romântico - mas o mundo todo! Mesmo. I. queria abraçar tudo e ai de quem a impedisse! Eu me sentia como uma presença estranha ao seu lado, navegando ao redor de alguém tão fundamentalmente oposta a mim. Ela tentava se lembrar de coisas muito velhas e de repente sua fala era todo o Passado como uma entidade maravilhosa que surge para redimir o Presente. As lembranças da infância. A alegria no nascimento da irmã. A dúvida de por que a caçula não era fisicamente parecida com as outras crianças. O ódio por achar que não tinha uma irmã normal. A aceitação rápida e o amor absoluto por quem ela afirmava ser a criatura mais adorável da Terra. Muitas vezes, quando ela tentava rezar e se via numa escuridão insondável, era o riso abafado da pequena assistindo a um desenho, brincando de boneca ou puxando os cabelos do papai que a salvava de um abismo que, segundo ela mesma, era a coisa mais amedrontadora da face da Terra.


Há seis dias eu conversei com sua irmã, F., e não soube dar meus pêsames, nem olhar fundo em seus olhos para dar conforto. Só contei essa lembrança de I. A internet ficou ruim e o meet caiu. Espero que ela possa ter escutado tudo apesar de não fazer diferença alguma.


quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

falando em códigos com meus amigos imaginários

  


  Eu só precisava de alguma luz para voltar para casa. Sob a noite intempestiva, Santo André parecia um delírio de um adolescente introspectivo que não conseguia estabelecer uma resolução para os próximos dias. Eu não sabia nada sobre amor, ou empregos, ou como ganhar dinheiro e apostava que as insistentes caminhadas noturnas trariam uma espécie de luz. Eu só queria beber nos showzinhos no Catedral, aos quais eu ia sozinho porque não tinha amigos. Eu pegava um garrafa de vinho no posto de gasolina e bebia. E aí, sim, eu ficava comunicativo, falava com as pessoas nos shows. Eu odiava quem eu era quando não estava bêbado. Odiava minha cabeça que ficava em disparada em qualquer mínimo início de contato visual com alguém. Eu só me sentia bem assistindo a Dead Fish, Dance Of Days, Level Nine ou Cueio Limão no Catedral Bar aos domingos. Eu passava a semana ouvindo Blink escondido no meu quarto. Eu não sabia nada sobre o amor e passei os anos da escola perfeitamente escondido, falando em códigos com meus amigos imaginários.


  Eu olhava o fundo do copo e aguardava ansiosamente o efeito. Eu queria sentir meus sentimentos que sabia estarem enterrados sob uma tonelada de vergonha e complexos. Eu esperava que meus sonhos seriam realizados. Ter uma banda. Ou escrever um livro. Quem sabe qualquer coisa de palpável, qualquer coisa parecida com o que eu sentia ouvindo meus discos favoritos. Era muito difícil porque eu não era amigo de ninguém que queria ser escritor e eu não gostava das bandas que o pessoal da escola gostava. Eu fechava meus olhos e não conseguia me imaginar em futuro algum. Era tudo tão borrado e impreciso quanto os edifícios subterrados por trás da noite andreense. Eu tentava entender uma espécie de alquimia sagrada: como adquirir o bilhete de entrada pra vida e ai, sim, ser factível e tangível para as outras pessoas? Eu tinha um medo terrível, agonizante, de morrer sem experimentar a intimidade.


  Eu encaro o teto com uma paz sorrateira. É incrível que eu sobrevivi imaculado aos anos para poder carregar a história daqueles que não estão mais aqui. Passo outra noite com insônia sob os efeitos dos antidepressivos e, enquanto rolo o feed do twitter, sinto uma estranha empatia com o que todos os meus amigos estão passando. Quem diria que eu poderia usar algo como "todos os meus amigos" quando eu passei  adolescência fugindo de todo mundo e criando razões abstratas para não encarar os dias. Porque eu amo cada um deles mais do que minha boca suporta dizer, porque eu encontro em cada um deles uma energia que deixa tudo mais suportável e os dias parecem menos agonizantes e aterrorizadores embora continuamos a prosseguir sob a ameaçadora sombra da morte, dos amigos que se foram e dos que sumiram e eu posso jurar que encontro cada um deles na quietude empoeirada de um quartinho de pensão barata na cidade onde cresci. Eu ainda não consigo dormir muito bem, mas os monstros que invadem minha cabeça parecem cada vez mais fracos e admoestados sob a luz de um amor que é constantemente recém-descoberto. Ou talvez seja outra coisa. Talvez eu apenas descobri a maravilha de estar aberto ao toque dos olhares cândidos voltados em minha direção. E sentir que mereço esses toques e, quem sabe, até seja capaz de dar alguns deles nesses dias violentos que nos têm surpreendido. Porque eu quero tanto continuar aqui e estou extremamente ansioso pelos dias subsequentes, em que a distância poderá ser, parcialmente, diminuída quando eu me sinto, finalmente, admirado pelos olhos que sempre admirei.

quinta-feira, 19 de novembro de 2020

poemas para as ruas pedregosas III

 


Perdão


Eu guardo suas palavras assim como tenho seu amuleto 

para sempre inerente ao meu corpo. Seus olhos trágicos

na noite de despedida foram como relâmpagos anunciando tempestades

em nossa terra natal. Sempre volto à ponte em

que nos conhecemos para lembrar como você decidiu morrer

ali, sob os carros que poderiam conter nossa intimidade 

se a força da perdição não tivesse guiado seus 

passos até um esmagamento. Você teria seu perdão.


Noturno

Todas as vozes são iguais, ecos

de que alguma preciosidade foi perdida

no processo da vida, entre hotéis

e conferências, sorrisos e adulações. Eu

sempre chego esgotado em um quarto

desconhecido, observando o céu da cidade

mudar de tons como gerentes fiscalizam 

seus funcionários.


Pensei ouvir alguma voz diferenciada, cantando 

canções populares em outra frequência, o

que me trouxe a sensibilidade do 

frescor: o mundo é uma andança

contínua entre becos escuros no aguardo 

de uma voz eminente que quebre 

o feitiço estéril de estar acorrentado

aos suores noturnos. 


Construção

O sonho de destaque sempre foi 

a demanda inalcançável. Eu escrevia 

uma tonelada de páginas e enviava 

a mim mesmo. Mergulhei, nu, na 

piscina e quando saí encontrei outro 

homem perdido, andando de bicicleta, as 

canelas finas, os olhos desajustados com 

a realidade. Passamos uma noite inteira 

assistindo a filmes antigos de zumbis, 

o retrato do meu filho morto 

nos fazendo companhia. Todas as dissertações 

que eu sonhei fazer vagaram em 

torno do mesmo tema: encontrar uma 

espécie de voz que não fosse

dissonância pura, para, então, ser possível 

qualquer espécie de construção.


Aceno


Levantei o banco do carro

para olhar o cemitério encharcado 

de memórias e fantasmas. Eu 

sentia muita raiva e dor, 

tomei analgésicos até começar a 

fantasiar diálogos com os mortos 

em piscinas frias. Eu perguntava 

por que eles se mataram 

e eles respondiam que era 

muito difícil. Insuportavelmente difícil.


Voltei a encarar a realidade 

quando as pessoas que desprezei 

decidiram que, por algum motivo, 

eu merecia uma espécie de

redenção. Olhando para um enorme

quadro na sala-de-estar, 

ouvindo um rumorejar do vento 

improvável, eu aceitei a dor

no meu sistema nervoso central

de outra maneira. Segui receitas 

e receitas até chegar embaixo 

da árvore, no mesmo cemitério 

que a depressão se manifestou, 

e ouvir o Sino Dos

Ventos que nossas crianças fizeram

como um último aceno.


Salvação


Olhar para o aquário vazio 

foi como revisitar a infância. 

Minha irmã ainda estava lá, 

jogando esqueletos sobre piscinas aquecidas. 

Andamos pelo cemitério onde o 

túmulo do papai está, uma 

espécie de zona neutra entre 

o presente e o que

fomos. Ela disse que o 

corte deveria ter sido mais 

profundo, mais certeiro. Eu disse 

que eu estava melodramático e 

saí andando por essa velha 

cidade como quem anda por 

respostas. Encontrei um grande amor 

decidido a dar abrigo e 

no invólucro da questão central 

me deparei com fotos nossas, 

quando éramos crianças e adolescentes. 

A única pessoa em que 

eu posso me apoiar é 

a única que me decifrou 

de verdade: nascemos no mesmo 

dia, cometemos mais ou menos 

os mesmos erros e formulamos 

a mesma questão, ancorando, um 

no outro, uma hipótese de 

salvação.


Futuro


Para além da pedreira, para além do lixão, 

do puteiro que ficava aberto o dia todo, 

das inúmeras lojas baratas que roubávamos álcool e 

de vez em quando deixávamos uns reais a 

mais em função da culpa, há um Abismo. 

Ele é infinito. Ele é uma entidade cujo 

eco é a infância que ignorou a gravidade 

e ricocheteia os adultos insensíveis como um bafo 

quente numa tarde de novembro. Há o protetor 

do Abismo Infinito que vende joias roubadas de 

corpos jazendo no cemitério dos ricos. Os mortos 

não reclamam suas joias, eles surgem da iminência 

do Abismo Infinito, soprando, paradoxalmente, vida e futuro.


Calor


Você falou sobre a inevitabilidade da primavera e como,

mesmo enclausurado, consegue sentir o cheiro da chuva horas

antes da primeira gota. Eu disse que isso era

um dom. Você riu timidamente e disse que as quinta-

feiras são sagradas. Eu comecei a desenhar flores, árvores,

pássaros e crianças porque acho que, de certa forma, te

devo a bênção da visão. Eu vejo os dias

transcorrendo de outra forma: sem os cacos de vidro,

sem os remédios e eu juro que nem sabia

que isso era possível.


Eu voltei a tocar piano e cada nota me

lembra o rosto enclausurado, como se estivesse numa foto

três por quatro colegial, sentindo um frio terrível na

espinha, o mal-estar crônico até sentir o calor

de outro corpo ignorando a lei da física. Sob

a manta da comunhão, a glacialidade do mundo se

desmancha como se a corrente de ar mais fria

não suportasse a ideia do calor.

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

enquanto o mundo se destitui sob a luz do luar

 
  No entardecer, eu fui comprar chá na vendinha perto de casa.  Eu vi um cinzeiro engraçado e tive de comprá-lo. Eu não fumo, mas vai que recebo alguma visita que fume. Gosto de me imaginar fazendo chá para as visitas enquanto a gente conversa as coisas mais triviais ou importantes do mundo ou assiste a um jogo de basquete na TV. Mesmo antes da quarentena eu não recebia visitas. Gosto de imaginar eu e meus amigos comendo pizza e falando sobre as coisas mais triviais ou mais importantes, ouvindo Jeff Rosenstock enquanto o mundo se destitui sob a luz do luar. Ou comendo batatas-fritas enquanto reclamamos de nossos empregos de merda, enquanto a frustração coletiva forma uma espécie abjeta de união e por aquele momento a gente esquece absolutamente tudo que não o cinzeiro engraçado, a merda que estiver passando na TV e as músicas que sabemos de cor desde muito antes de nos conhecer.

  Ela disse "se você sobreviveu a um dia, você pode sobreviver a outro" num quarto de hotel muito ruim em algum ponto de uma cidadezinha mineira. Acho que era Extrema. Acho que era 2012. Nós ficamos assistindo a videoclipes até pegar no sono, até as linhas entre realidade e sonho serem indistinguíveis. Antes de se casar, ela disse que lia este blogue de vez em quando. Eu só consegui murmurar alguma coisa porque estava genuinamente incomodado com ela ter progredido tanto desde aquele hotel em 2012 e eu estar basicamente no mesmo lugar, sem emprego fixo, sem perspectiva de melhoras. Mas com um cinzeiro novo. Eu murmurei "isso é tão bom pra você, parece que você se encontrou". Ela disse, "um dia as coisas vão dar certo pra você". Eu acho que ela estava certa de alguma forma. Eu tenho um cinzeiro novo.

  Depois que eu sai da casa dos meus pais, os dias começaram a escurecer mais cedo. Os últimos dez anos têm passado como uma tosse crônica que surge sempre que esfria.

  É difícil tomar conta de si mesmo quando você não se importa com si mesmo. É difícil ficar criando auto-ultimatos sendo que os dias sempre se reduzem a uma paralisia monstruosa. Tentar arrumar sua vida parece trabalhar num emprego que odeio: cada dia de semana eu fico procurando uma abstração para me distanciar de mim, sonhando acordado com possibilidades de fuga. Alguns dias eu pisco e parece que o próprio ato de piscar foi capaz de trazer de volta uma doença mental sonolenta, esperando em algum recanto como ressurgir. Eu quebro minhas promessas exaustivas, eu passo dias sem sair de casa. E os dias morrem.

Triangle | Schammasch

  Eu queria um abraço que fosse e não essa poeira que cresce nos cantos sem que eu consiga varrê-la apropriadamente. O vácuo desdenha de você quando não se consegue nem fazer as coisas mais simples, a depressão impregna nos cômodos e nenhuma limpeza é capaz de removê-la completamente. Há sempre um sinal de sua existência. À noite, quando eu descarto o lixo, eu lembro que todos que eu amo estão longe demais; em outra época, em outro fuso-horário, em outra vida. O lixo empilhado, o odor horroroso: pensar que todos estão fingindo não colapsar não ajuda exatamente nesta solidão.

  Parece um indicativo do Desastre: uma rua deserta cuja extensão são os odores das memórias descampadas. Eu refogo o brócolis e programo exercícios para o dia seguinte. Escrever alguma coisa. Ler algum livro. Essas dispersões importantes. Eu vou ficar nisso em vez de ficar arrumando desculpas para me afundar na tristeza; em planos que remodelem minha relação com a matéria morta. Não significa que eu vou ficar animado. Não significa que realmente importa. Não significa que haverá confetes, nem que eu vá sair dançando na rua dando bom-dia a todos que encontrar. Honestamente, eu nunca encontrei muita proteção em auto-cuidado. Ninguém se importa e os dias prosseguem.
(Hoje eu fiz tudo certo; exercícios, tomei sol, limpei a casa, trabalhei. Depois, eu fui para debaixo dos cobertores passar um tempo com os pensamentos desertores).

  Vamos nos lembrar do que temos feito para acalmar nossa ansiedade. Conversar e brincar enquanto há uma sombra sempre à espreita, procurando por fendas e encontrando depressão e rostos acanhados fechando-se neles mesmos. Procurando por fendas e achando cada vez mais difícil ser alguém fácil de se relacionar. Até parar de procurar por fendas quando tudo estiver bem e parar de ver o fardo pesado de simplesmente carregar um nome.

  Ai eu fiquei rindo do cinzeiro bobinho que eu comprei.

terça-feira, 26 de maio de 2020

de manhã parecia que a noite nunca era gélida

John Chiara
  
  Eles diziam que o tumor era a representação mais cruel do aqui e do agora. Eles disseram que ele tinha aproximadamente quatro polegadas. Eu não consegui, mentalmente, concebê-lo dentro dela.

  A cada dia ficávamos mais distantes como se nunca havíamos sido amigos. Como se não houvéssemos caminhado de mãos dadas nos parques negligenciados e pichados de Santo André. Como se não houvéssemos passado noites abraçados na sua casa do interior. Contra-intuitivamente, ela queria que eu não me machucasse tanto. Não queria me usar de muleta para sentir-se menos só e eu ficar tão sozinho quando ela morresse. Ela me escreveu uma carta todo dia (eu só fui achá-las depois que ela faleceu). Toda a dor some quando eu escrevo pra você. É como se a comiseração me desse esse tempinho para escrever. E uma miniatura cósmica, que também agora era um pedaço do seu corpo, assassinava-a aos poucos. Ela viajou com o pai e eu nunca mais a vi (viva).

  Os gestos pararam de ter vida. Eles são nada. São um espaço vazio. Lembra que a gente achava graça de quem falava "me sinto vazio"? É assim que eu me sinto quando o cansaço vem, na outra parte do tempo, é só dor. O meu corpo tá inconstante. Não me obedece. Pegar uma água é um sacrifício. Lembra quando ficava escuro em Ibitiuva? E você fazia alguma piada sobre filmes de terror, eu dizia que não tinha graça e a gente se abraçava pra ninguém ficar com frio? Eu tenho pensado muito naqueles dias.

  Ela não está mais aqui. E provavelmente eu não consigo mais recorrer às nossas memórias fielmente. Ainda me vejo com ela, sentado e sentindo o quê? Eu não consigo reconstruir aquelas cenas com alguma perfeição. Na parede, um retrato nosso: uma cadeia de montes lá trás, e olhos de jovens incertos que não poderiam prever a hecatombe.

  Eu leio suas mensagens mas não quero mais responder. Queria pedir desculpas mas não consigo me sentir culpada. Só estou cansada. As palavras são tão inúteis. Espero que entenda meu lado.

  Eu aperto o papel tentando me reconectar à sua presença.

  O espelho reflete meu corpo, cada vez mais pequeno, cada vez mais encolhido. Mas eu não sinto mais medo. Sinto sua falta, é claro. Falta do Gustavo, do Felipe, da Larissa...  A gente se protegia enquanto o frio não passava e de manhã parecia que a noite nunca era gélida.

domingo, 17 de maio de 2020

o grunhido das folhas mortas

  

  As árvores cheias como estranhamente não permanecem no outono. Folhas longas e compridas, penduradas no cinza de um bairro que cheira abandono. E passeamos por aqui antes de você ficar fechado do outro lado, exilado em seu próprio país, olhando com clemência para um mundo intolerante, vestindo um branco encardido com as mãos presas em uma camisola que lembra tudo (doenças, sujeira, loucura) menos sono.

  Agora dos meus quase trinta anos, eu ainda sinto sua ausência caminhar ao meu lado, como o grunhido das folhas mortas quando são excitadas pelo vento. Os vinte anos não voltam novamente, ficam presos na encruzilhada de nossas decisões ruins, nossas madrugadas bêbados que você tão distante, tão medicado e fora de si, deve ter contemplado justapostas às cenas que o cérebro cria quando fica encarcerado. Minhas quase trinta primaveras foram lances pueris, acontecimentos dos quais não me recordo: quando alguém próximo morre e qualquer instante é marcado pela imponência da ausência, deixando folhas secas e pálidas na guia de uma calçada esburacada.

  E desde que eu passei a prestar atenção nessas árvores florescendo, nossas caminhadas surgem mais nítidas, como um folclore em que a realidade é a dimensão mais charmosa. Quase trinta primaveras parece ter um pouco de valor. Sobre essas calçadas esburacadas eu irei ver os vestígios das folhas incipientes, que (ainda) não nasceram.

quinta-feira, 14 de maio de 2020

dormindo sob céus estrelados enquanto os nossos rostos, jovens, envelheciam


  Eu acho que nunca disse o que devia ter dito antes de ter partido. O que eu realmente queria era ficar perto de todo mundo. O tempo que nós compartilhamos em nossa ilha. Os dias incríveis contemplando um horizonte que só se estendia.

  As noites nos bares que todos se conheciam. Os minutos preciosos em que rescrevíamos nossos passados. Os copos quebrados submergindo em sons de risadas, dormindo sob céus estrelados enquanto os nossos rostos, jovens, envelheciam.

  Eu queria voltar e ver o rosto de todo mundo. Eu faria qualquer coisa pra voltar a ver o rosto de todos os meus amigos.

  Em suas mãos você segurava a chave, na sua mão direita, a preciosa chave de nossa cabana escondida. Uma pequena nota que escrevemos, alheia ao tempo e a todas as outras pessoas que não nosso clube.

  Você podia ter feito o que queria, todos fomos embora e você restou aqui, tentando fazer amizades quando todos tínhamos partido. E agora eu posso jurar que te vi no céu, sorrindo enquanto eu abria, aos pontapés, a porta desse retiro esquecido. Dezessete anos depois de inaugurar essa velharia. Como nós brincamos aqui antes de tudo sucumbir, como nós brincamos aqui antes de desistir. Fingíamos saber tudo, fingíamos que seria para sempre e que a infância sobreviveria às mortes, às partidas, às indas e vindas.

  Se você quiser, eu nunca saio daqui. Se bem que é tarde demais. Eu passei a me importar tarde demais. Eu tinha o mundo e não sabia. Não sabia que não precisava de São Paulo e qualquer outro lugar era pura mentira. Vai levar um tempo pra decidir o que fazer com esse lugar. Está no meu nome e não sabia. Onde estão os rostos com quem cresci? Passou muito tempo e eu ainda não entendi como desaparecemos. Como perdemos contatos. Como o silêncio virou mais fácil. Como eu virei um adulto que sucumbe a qualquer lembrança perdida, de tempos da infância em que passávamos a tarde celebrando o que entendemos por vida.

quarta-feira, 11 de março de 2020

Que dano sacramental que isso traz


Está ficando insuportável. Repito: insuportável. As vozes em minha cabeça tomam todo o meu tempo livre e, em qualquer caminhada que eu faça, elas me defrontam sobre absolutamente tudo. E eu sempre perco. Eu sempre revisito os momentos e a vergonha - das coisas que aconteceram, das coisas que eu imaginei acontecer e das coisas que sequer aconteceram  - grita alto em meu corpo, sedimentando meu fluxo sanguíneo em ansiedade e pequenas tremedeiras. Então eu procuro por olhos cristalinos que me deem alguma espécie de Paz, alguma espécie de redenção que justifique o desestímulo de estar aprisionado pela construção dos próprios fantasmas.

Os gestos carregam uma dor sacramental, uma desconfiança da farsa que sou, portanto se ouço um "Beleza?", isso parece revestido duma ameaça explícita de revelar que não tem absolutamente nada aqui. Se eu converso e insinuo piadas, é porque eu adquiri algum tipo de vivência que me permite tentar simular todas essas coisas. Mas as vozes sempre retornam em sua constante ameaça, sua constante vergonha; altas demais, ensurdecedoras até mesmo nas paisagens mais deslumbrantes.

O terror de nunca poder conseguir retornar aos estágios mais plenos, o terror de que eles nunca existiram, mas eu precise de falsificá-los para justificar todos esses anos moribundos. Eu não mudei nada, ainda fico imaginando situações e um jeito de fugir de tudo.

(viajar é difícil, me imaginar em um luau cercado de amigos é difícil; antecipando horas os encontros e desistindo deles assim que chegam. Uma nuvem meio branca, meio espessa, escondida ali, na Trilha pela qual caminhamos quando podíamos nominar o Mundo sem o receio de sermos adultos, sem o receio de pessoas alheias rindo da gente. Apenas nós e um imenso descampado deserto)

Vivi nesta Ilha por muito tempo, mas como sair dela? Quando percebo, a areia é movediça e o chão desaba para que eu me veja no mesmo lugar novamente. Um Mar Escuro, cuja costa compõe-se de todas essas pessoas-fantasmas-demônio flagrando a nudez de quem nunca soube respirar sem o sangue na garganta.

segunda-feira, 9 de março de 2020

Esses fantasmas são o sistema nervoso

Eu tenho sentido o gosto de cromo guiar minha garganta como Rokkadi em sua descida infernal com a motosserra, fugindo de fantasmas que, na verdade, eram seus medos que, na verdade, eram ecos de sua vida passada, como um abismo de errância e sangue. Como uma armadilha, você espera suas presas estarem nos momentos mais realizáveis para torturá-las. Com M. foi assim. Ele era meu melhor amigo e terminou sem cumprir as promessas de nossa juventude porque ele simplesmente não queria mais viver. E sei que, quando coloco assim, pode parecer ofensivo a quem tenha se suicidado ou aos parentes, mas, merda, eu sei como foi passar aqueles outros dias olhando para uma parede imóvel esperando que alguém ligasse, dizendo que tudo não passava de um engano. Seus olhos negros foram as únicas coisas com que eu pude contar naqueles meses derradeiros. Seus olhos, ainda vivos, cheios de exuberância, cantando uma canção de amizade. Nós choramos assistindo ao episódio em que Lorelai recebia um milhão de margaridas amarelas e falamos um com outro, Hein, cara, isso deve ser a última felicidade, Depois disso não melhora. Coisas assim. Nós tentamos nosso melhor um com o outro. Mas o corpo morto é sempre a declaração maior de que o Fim vem. Hoje, Max von Sydow morreu. Perdeu aquela batalha pra morte que começou em 1957. O demônio, penso eu, é uma coisa bem menos sádica do que imaginamos. O demônio, penso eu, é o Cosmos lembrando sua natureza impiedosa. Como se nossos desejos tivessem alguma relevância, ganhando corpo e entrando em combustão. É sua impessoalidade que mais toca a gente, que mais nos arranca do delírio que é a vida e nos coloca em confronto com a Realidade-Última. É sua pessoalidade que me faz perder esperança e conviver com o constante desencanto pelo fato de estar sumindo. Eu recorro à linguagem para falar dessas coisas que as palavras não alcançam, mas eu espero que um ambiente ébrio consiga ganhar materialidade com a lembrança de recônditos quase inacessíveis ganhando corpo como um último lembrete de sua indiferença. Quando eu estou sozinho tentando fazer algo, eu sou revisitado por absolutamente tudo como uma espiral de imagens que me impede de caminhar. Aí, Lavras parece outra cidade amaldiçoada como todas as outras em que estive (e Deus sabe quantas foram). As cidades esquecidas da infância são paraísos impossíveis. Os propósitos nostálgicos não são mais áreas Sagradas. O acúmulo de poeira, cada vez maior, cada vez mais ameaçador, impede uma caminhada serena, uma caminhada poética, ou qualquer dessas baboseiras de aparições salvadoras que acontecem quando se está prestes a sucumbir. Eu não conheço ninguém que não esteja prestes a sucumbir.

Paddleton (2019)